Kbela (2015) tornou-se uma grande referência para o cinema negro contemporâneo ao ser considerado balizador de muitas movimentações dentro do circuito cinematográfico brasileiro e independente. O trabalho ganhou destaque na mídia após uma campanha de financiamento coletivo que viabilizou as gravações do filme e chamou atenção ao lotar suas sessões de estreia no Cine Odeon, na cidade do Rio de Janeiro. Inspirado no conto MC Kbela, escrito pela diretora Yasmin Thayná e publicado na coletânea Flup Pensa (2012), o curta circulou significativamente em festivais nacionais e internacionais, sobretudo após ter sido programado no Festival Internacional de Roterdã, em 2017.
Para além dos discursos que o localizam como “peça importante” para o fortalecimento das produções negras no Brasil, Kbela nos ajuda a refletir acerca de uma “ideia de cinema negro” que parece ter se consolidado a partir do filme. Destaquemos alguns pontos. O primeiro é em relação à aproximação de Kbela ao Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974). A experimentação estética é comum a ambas as obras e o investimento formal de Kbela parece ter se contaminado com o filme de 1974. Mas, não só. A conexão imediata entre a produção contemporânea e a do cineasta considerado “o pai do cinema negro brasileiro” reforçou o pioneirismo atrelado à figura de Zózimo Bulbul. No entanto, a construção dessa linhagem disparada pela diretora, como podemos ver em sua coluna no Nexo, em 2017, onde afirma que “a obra de Zózimo Bulbul é uma bússola para o nosso fazer cinematográfico”, não foi tecida apenas por ela. Essa conjuntura e discursividade foram co-criadas, por exemplo, através de desenhos curatoriais como Cinema negro: capítulos de uma história fragmentada (2018) e Soul in the Eye (2019).
O segundo é que o curta de Yasmin Thayná, especialmente devido aos modos de recepção da obra, instaurou mais fortemente um ambiente de desejo de reparação sócio-racial-histórica por meio da construção de “imagens positivas” da negritude no cinema. O percurso de sua narrativa fílmica, como será investigado neste texto, nos leva a uma suspensão do sintoma da racialidade – o racismo -, na intenção de reparar imageticamente a violência racial desprendida à estética e traços negros e, sobretudo, ao corpo negro feminino. A fabulação criada em Kbela, talvez, tenha consolidado no campo cinematográfico o discurso de necessidade de espelhamento e de reconhecimento das pessoas negras nas telas de cinema. Não esqueçamos: títulos como Cores e Botas (Juliana Vicente, 2010) e Lápis de Cor (Larissa Fulana de Tal, 2013) já apresentavam essa demanda. Mas, na época do lançamento e circulação de Kbela, essa ideia ganhou ainda mais intensidade com as disputas em torno das questões de representação/representatividade no audiovisual brasileiro.
Essa demanda cara ao cinema negro reverbera também nos modos como olhamos para o seu passado. A relação entre “espelhamento” e “autorreferencialidade” estrutura a defesa de que Alma no Olho seria uma “obra disruptiva” dentro da cinematografia brasileira, ao ponto de ser intitulada como gesto inaugural do cinema negro brasileiro. O argumento criado dentro da lógica da excepcionalidade e pioneirismo não apenas legitima a eleição de um “patrono” do campo, como exclui do repertório criativo e imagético desse cinema diretores negros e/ou pardos como Cajado Filho, Waldir Onofre, Odillon Lopez, entre outros. Esse desenho nos move a indagar como essa linhagem paternalista impacta (ou não) nos entendimentos acerca do cinema negro brasileiro hoje. Não apenas no modo como elabora suas narrativas historiográficas, mas também em relação às operações formais que são desenvolvidas dentro desse campo. Às vezes, como diria Grace Passô, é preciso matar o pai.
O terceiro ponto parte da intuição de que a associação de Alma no Olho e Kbela à ideia do belo e da “positivação” da estética negra tornou-se força-motriz para criações estéticas que se afastem cada vez mais de investimentos formais lidos como “grotescos”, das “representações negativas”, das imagens “ruins”. Esse fator exclui contudentemente da historiografia do cinema negro brasileiro filmes como Na boca do mundo (Antônio Pitanga, 1978), As aventuras amorosas de um padeiro (Waldir Onofre, 1975) e Um é pouco, Dois é bom (Odillon Lopez, 1970) que, em comum, se afastam de forma significativa do quadro da “representação positiva”. Até o próprio Amor Maldito (Adélia Sampaio, 1984) é muito mais referenciado pelo “pioneirismo” da diretora, do que necessariamente por sua controversa matéria fílmica. O desejo por um ambiente “asséptico” e “reparador” possivelmente endossa elaborações artísticas cada vez menos ambivalentes e opacas.
Ainda, um quarto ponto se apresenta: apesar da constante aproximação entre Kbela e Alma no Olho, são poucas as iniciativas de elaboração crítica que tenham os colocado lado-a-lado, investigando suas proposições formais e os modos como seus discursos se presentificam (ou não) em suas materialidades. Nesse sentido, o texto dedica-se a mergulhar em ambas as obras, de modo a perceber similitudes e divergências que as habitam. Ir atrás das formas como esses filmes operam e como elaboram seus discursos estético-políticos nos permite criar um espaço de composição e decomposição fílmica que abre mão de uma lógica binarista de leitura das obras cinematográficas. Ainda, essa ação nos ajuda a complexificar e questionar alguns discursos que rondam esses dois filmes.
Violência e beleza
As paredes deterioradas de um ambiente inóspito formam o elo do primeiro conjunto de cenas do curta Kbela. A composição do tom esverdeado da fotografia com a impureza dos muros descascados e enlodados torna-se plano de fundo para nos revelar imagens desestabilizantes. Após um corte brusco da sequência que inicia o filme, somos direcionadas à imagem de uma mulher negra, partida em dois pedaços: ela está sentada num móvel de madeira ao lado de sua própria cabeça. Seu rosto emite indiferença e seus olhos aparentam desatenção. Apesar disso, a força mecânica de seus braços e mãos ganham volume e agressividade, através da repetição do movimento de despejar em si mesma cremes capilares, vinagre e azeite. Ela está tentando domar seus cabelos crespos.
No descompasso deflagrado, a instabilidade adquire amplitude com as sobreposições do som do jazz, do ruído urbano caótico e dos xingamentos racistas que são proferidos por bocas brilhantes que vagam na pretura do quadro e rasgam a imagem do mesmo modo que ferem o corpo negro e feminino. Misturando violência, automação e sufocamento, Kbela inicia seu percurso fílmico de maneira incômoda e longe das “representações positivas” da negrura.
O desnorteamento causado por esse primeiro momento do filme constrói a ideia de ausência de identidade ou de sua radical fragmentação. Como uma lente constatativa de um problema sócio-histórico, Kbela dispara um conteúdo imagético desagradável, acompanhado por uma sonoridade barulhenta e frenética, através do qual expõe os sintomas do racismo em sua dimensão físico-estética e psicológica. Uma mulher negra sentada no chão com um adereço que lembra o desenho de um buraco negro em seu rosto. Uma outra com o corpo encolhido e com um saco de papelão que ocupa sua cabeça que lhe faz ter dificuldades de respirar. Nas duas composições, a não aparição da totalidade de suas presenças e o ocultamento de suas faces reforçam a desconexão entre corpo e self (eu). Os objetos escondem os traços negros que constituem essas presenças, especialmente o cabelo, matéria principal de Kbela.
No desejo de reconstruir tais identidades e reconectar-se com as feições das peles negras, o filme interrompe sua trajetória desconcertante, com um movimento que delineia o desejo de suprimir a ferida colonial: Isabél Zuaa olha firmemente para câmera enquanto cobre a negrura de seu corpo com tinta branca; até que, com o efeito de rebobinar, seu corpo (e o quadro) despe-se totalmente da brancura. Com esse gesto, o filme inicia sua segunda parte, onde o encontro entre mulheres negras e a celebração de seus traços e belezas são caminhos possíveis para a restituição dessas existências fragmentadas. O universo africano mítico e belo, aos poucos, tomam de assalto as performances de dor e violência.
Desestabilizar a “positivação” da imagem
Assim como na obra de Zózimo Bulbul, Thayná escolhe dividir seu filme em duas partes e ativa o ponto de virada de Kbela por meio de um jogo simbólico (o uso da tinta branca) e performativo (a cena da atriz Isabél Zuaa). Em Alma no Olho, a mudança do percurso fílmico se dá quando o ator-diretor passa a reconhecer a infinita brancura do espaço em que se encontra (signo da branquitude e da colonialidade) e com a aparição de correntes (elemento performativo) em seus braços, associando sua imagem a de africanos escravizados em contexto diaspórico.
Enquanto o gesto de Kbela nos leva a progressão do “libertar-se”, Alma no Olho nos empurra para o caminho contrário, e passa a operar dentro e fora do imaginário da emancipação negra. Ainda que o gesto de “libertação das correntes” apareça no fim do curta de Zózimo Bulbul, a imaginação crítica desse texto propõe uma leitura mais ambígua para essa ação e símbolo, com o objetivo de minimamente desestabilizar os discursos que reduzem as duas obras ao gesto de “positivação da imagem negra”.
Beleza e violência
No início do primeiro curta de Zózimo Bulbul, nos defrontamos com o rosto dele que está em superclose. Intuitivamente, começamos a dar maior atenção aos seus olhos que, perante a câmera muito aproximada, encaram e vagueiam com curiosidade o extracampo. O sorriso de Bulbul toma espaço na tela e passamos, por segundos, a contemplar sua beleza. No entanto, um jogo ambíguo é ativado: a medida em que somos apresentadas às feições do ator-diretor, que ganham ainda mais destaque nos momentos em que Bulbul toca e observa seu próprio corpo, o jogo do “culto ao belo” e da valorização de seus traços contrastam com o “modo colonial” de filmar a si mesmo nas sequências seguintes.
Ao mesmo tempo que parece ganhar “consciência de si”, “pertencimento” de sua própria cor e carne, o investimento em enquadramentos em superclose impõem algum “gosto de cientificismo” na forma em como a câmera se aproxima e produz imagens desse corpo negro. Nesse sentido, o contraste entre o modo como o ator se apropria de seus traços pretos e como ele está sendo capturado pelo aparato técnico faz com que o corpo seja, concomitantemente, sujeito e objeto.
Nesse sentido, apoderar-se da câmera, como Zózimo faz, não se torna motivo para alimentar o desejo de esquecer os rastros históricos das imagens. Numa trajetória oposta, ele enquadra cada detalhe de seu corpo (mão, peito, bunda, tórax, axilas, cabeça, dentes) com imagens frontais e laterais. Os planos nos remetem a desenhos de pesquisas acerca do corpo humano, quadros produzidos à luz das teoria do cientificismo e darwinismo social do século XIX.
O gesto de abrir a boca e mostrar os dentes ativam um outro repertório imagético, associado ao cenário colonial. Ações como essas eram comuns no contexto de escravização, em que o valor do corpo negro, e a mensuração de sua aptidão ao trabalho, estava atrelado ao estado, por exemplo, da arcada dentária e do porte físico de pessoas africanas escravizadas. A persistência de enquadramentos da face e de vários ângulos da cabeça torna a pista um pouco mais intrigante, pois nos referencia à antropometria, modelo determinista que buscava interpretar a “capacidade humana” a partir do tamanho e da proporção do cérebro de diferentes povos racializados, produzindo a diferenciação racial e cultural.
Sendo a câmera o suporte dessa investigação ambivalente, Alma no Olho elabora mais uma camada de contradição a esse processo mútuo de alienação e reconexão com o próprio corpo (e sua negrura). A partir desses arquivos iconográficos, o ator-diretor nos desloca até os “Primeiros cinemas”, em que a tecnologia cinematográfica também foi utilizada como instrumento de produção e difusão de imaginários exóticos e animalescos acerca dos povos racializados – sobretudo negros, africanos e originários – ao redor do mundo, por meio de vistas de experiências excursivas situadas em espaços coloniais.
Esses registros, como afirma o pesquisador Marcelo Ribeiro, insinuam “uma consciência global da diversidade humana, vista a partir da posição pretensamente universal do sujeito europeu, compondo um mosaico de figuras da diferença, capturadas sob o signo da similaridade”. De dentro dessa operação ambígua, o corpo de Zózimo Bulbul torna-se sujeito e objeto e nele reside a coexistência entre o reconhecimento de si (self) e a produção da iconografia colonial, onde violência e beleza se chocam e se atravessam, mas não necessariamente se anulam.
O argumento defendido aqui é que esse jogo de espelhar-se e admirar-se diante da câmera, ao passo em que constrói registros representacionais de exaltação à beleza negra, se depara com uma elaboração iconográfica histórica que tensiona dentro da matéria fílmica o circuito de “positivação dos símbolos negros”. Menos do que um percurso curativo e de reparação da imagem, o trauma colonial acompanha a fabulação poética de Zózimo Bulbul, como uma ferida aberta e irresoluta. As alegorias e significações criadas partem de convenções imagéticas que nos lembram que as contas e as marcas do colonialismo e da dívida racial não estão superadas, fechadas ou resolvidas. Elas são força-motriz da inventividade e fugitividade preta, tecida a partir (e diante) do trauma.
Beleza reparadora, violência inescapável, discurso capturável
Voltemos à Kbela. Após uma longa sequência em que duas mulheres negras conversam e cantam para Yemanjá, enquanto uma corta o cabelo da outra, o curta de Yasmin Thayná aciona um jogo entre beleza e violência que minimamente se aproxima ao estabelecido em Alma no Olho. Depois do corte, ao levantar-se e largar o espelho que estava em seu colo, a performer passa a olhar frontalmente para a câmera, que ganha o ponto de vista do objeto. A imagem nos mostra o “reflexo” da mulher. Sorrindo e mexendo em seus cabelos, ela não apenas envolve a audiência com o gesto de “afirmação” de sua negrura, como desperta e alimenta a vontade das mulheres negras espectadoras para que as telas de cinema sejam “seus espelhos”.
Por meio de uma justaposição, transitamos desse enquadramento para um outro ambiente, em que vemos uma performer se movimentando do mesmo jeito que a primeira mulher estava fazendo na cena anterior: com o olhar fixo para câmera, ela acaricia seus próprios cabelos. O espelhamento se prolonga, mas a tônica da “celebração” é interrompida. Bem vestida e elegantemente maquiada, o que parecia ser um gesto de “empoderamento”, em poucos segundos, torna-se a reencenação da violência: inspirada na performance Bombril, de Priscila Rezende, a mulher passa a arear panelas de alumínio com suas madeixas, fazendo alusão às injúrias raciais proferidas aos cabelos crespos e cacheados.
No entanto, a violência que escapa dessas imagens é totalmente suspendida. Após essa sequência, a simultaneidade entre transmutação e reconhecimento do trauma racial-colonial é suprimida e dá espaço para a “representação positiva da negrura”, onde mulheres negras não apenas reconhecem e vibram coletivamente por conta de seus traços negros, como transformam-se em “rainhas”. Nessa etapa, o filme instaura em seu repertório imagético do filme um desenho afrocêntrico, que encena “o retorno às raízes”: dos cabelos, do continente africano e de si.
Os últimos resquícios do som dos cabelos da performer limpando a panela são cessados quando a garota que está pondo um turbante na cabeça da performer Maria Clara de Araújo termina de fixá-lo e dá sua amarração final: é como se o adereço isolasse o som da violência. Vagarosamente, a base de jazz que dá início à música Rainha (Céu), interpretada por Isabél Zuaa, anuncia um outro estilo para as imagens de Kbela, que passa a ter em sua fotografia tons amadeirados e dourados. Mulheres reluzentes e poderosas, com seus adornos e tecidos que remetem às estéticas africanas, são colocadas por meio da montagem em espelhamento e equivalência à beleza natural de outras mulheres negras que ocupam o filme de Yasmin Thayná.
É importante lembrar que, no momento em que Kbela surge no circuito cinematográfico brasileiro, as marcas e empresas, sobretudo do mercado estético e publicitário, reforçou (e tornou ainda mais desejante) o investimento na estética negra. É possível constatar, nesse momento, uma incisiva captura dos discursos políticos atrelados às lutas, mobilizações e manifestações culturais históricas dos movimentos negros brasileiros, em seu desejo por reconhecimento da beleza das negruras como ferramenta para a autoafirmação e inclusão social da identidade negra. A estética mercadológica pega fortemente a poética da última parte de Kbela que, embebecida pelo discurso do empoderamento e da representatividade, deixa de lado a sua vibração contraditória, para assumir uma postura que leva a um tipo de “conforto aos olhos” que, em contraste com a primeira parte do filme, beira à assepsia.
Nesse ambiente protegido dos sintomas da racialidade, é possível dançar ao som de instrumentos percussivos, onde os movimentos do corpo criam um entrecruzamento histórico-temporal, a partir da performance dos ritmos de vários lugares da diáspora negra, como o funk e o hip-hop. Ainda que aponte sonicamente para a intensa inventividade preta, os rascunhos e nuances das últimas imagens do filme estão contaminadas pelo desejo de reparação, para curar feridas e solucionar os problemas raciais, tornando o percurso final do curta o oposto radical de seu início. Kbela vai perdendo seu gosto ambíguo e desconcertante. A beleza no olho é o que permanece.
Violência e liberdade
Alma no Olho segue em pleno desconforto. A sequência que precede o ponto de virada do filme de Bulbul (momento em que passa a usar algemas em seus braços) acontece em duas temporalidades que provocam o instante de conjunção entre corpo e self do diretor-ator-personagem. Adentrando novamente na iconografia moderno-colonial, Zózimo move seu corpo animosamente para a câmera, com adereços (colar com búzios, tecido africano, pente garfo) que nos redireciona a imagens semelhantes a de Danse du Sabre I, marcadas pelo teor das expedições etnográficas. Num plano médio, articulado como contraplano da imagem anterior, Zózimo encara a performance do “outro” (e de si) até que a identificação entre as duas figuras ocorre.
Após o jogo do plano e contraplano, self (eu) e corpo se reconhecem e passam a acessar a memória histórica e diaspórica das gentes negras, elaborada através de um jogo performático com o uso de figurino e elementos cênicos. Reconhecendo a brancura que o cerca, Zózimo passa a alternar arquétipos associados ao signo negro (pessoas em situação de rua, trabalhador “braçal”, boxeador, jogador de futebol). Num outro momento, de costas para câmera e vestido com uma bata branca, uma nova simbologia é construída e diretamente associada à intelectualidade. Mas não tem jeito. Por mais que se mova entre tantas posicionalidades, as algemas permanecem em seus braços como quem diz: “não há libertação em nenhum lugar”. Seria Alma no Olho um filme pessimista? Bom, Abolição (Zózimo Bulbul, 1988) tá aí. Podemos considerar isso como uma pista?
Combinado aos sons intensos e desgovernados de John Coltrane, Zózimo Bulbul produz um conjunto de imagens que é pura cacofonia, marcado pela descontinuidade narrativa e temporal. Uma encruzilhada imagética se forma e a sincronicidade entre os tempos se revela por meio de um enquadramento emblemático: com a mão sobreposta à parede branca, vemos um bracelete de prata com búzios (signo da herança africana) e as correntes (símbolo da colonialidade) no mesmo lugar, compartilhando o mesmo braço. Mais uma pista do jogo de ambivalência que persiste em Alma no Olho.
Despindo-se das roupas e adereços que usava, voltar ao short escuro que vestia é se despir das convenções e, talvez, passar a se comportar como um condenado da terra. Levando em consideração o trajeto do filme, a ação de romper com as algemas não é símbolo da interrupção da racialidade ou de seus sintomas. É o gesto que anuncia, como afirmado por Frantz Fanon, que “a descolonização é sempre um fenômeno violento”.
A beleza como elemento histórico a ser desafiado
A questão da estética e beleza negra é algo que acompanha a construção e reformulação de nossas identidades negras diaspóricas. Se antes visto como “selvageria” e “sujo”, os traços negros e o “estar belo” (muitas vezes associado ao padrão estético branco) passou da possibilidade de “elevação moral e cultural”, como na primeira metade do século XX, para um gesto de “reafricanização” e de resposta ao mundo anti-negritude, sobretudo a partir dos anos 1970 e 1980.
Em diferentes contextos históricos, sendo um dos anos 1970 e outro dos 2010, Alma no Olho e Kbela parecem responder (ou acessar) justamente essas demandas históricas que trazem em si o fortalecimento subjetivo do indíviduo negro a partir da “valorização” dos símbolos e traços da negritude. E ganham força pelo modo como historicamente se construíram as representações e os modos de leituras das presenças negras na história do cinema brasileiro.
A aposta desse ensaio, no entanto, é justamente questionar como esse “apego ao belo” impacta nas produções contemporâneas, na forma como olhamos e projetamos nossos entendimentos em relação aos filmes e como isso impacta na maneira como reelaboramos narrativas sobre o passado cinematográfico negro no Brasil. Se fugirmos do domínio do belo, que tipo de cinema negro (também) passaríamos a defender?