Um olho decumbido de um corpo.
Nunca é Noite no Mapa (2016) é um curta especulativo que se apropria das imagens do Google Maps após Ernesto de Carvalho, diretor e narrador do filme, ter sido capturado por um dos carros responsáveis por produzir registros fotográficos das cidades. A narrativa se desenvolve com a apropriação das imagens límpidas, claras, diurnas, sem ruídos ou defeitos – ora triviais, ora simbólicas – da ferramenta de GPS. A trama concentra-se em elaborar fabulações e reflexões sobre a ideia de “mapa”, a partir dos espaços onde o narrador navega.
A imagem captura Ernesto para dentro do Google Maps. A prisão desse corpo se dá dentro do registro de transparência, da nitidez exigida nesse tipo de suporte. Portanto, para escapar do registro, o diretor-narrador usa sua própria voz como artifício de contestação, ou seja, se posiciona de fora do registro visual. Para fugir da “viatura-mapa”, Ernesto cria uma intervenção sonora que resulta em um embate frontal às imagens, devolvendo o olhar através do som.
A devolução do olhar que Ernesto aposta é dar concretude ao mapa, expôr a viatura que se infiltra na cidade e captura as imagens para dentro do sistema informacional. Contudo, isso não se dá de forma simétrica. Enquanto o mapa se apresenta para o mundo como uma janela transparente e desimplicada daquilo que registra, Ernesto ofusca essa transparência, desnudando sua imparcialidade. Essa operação se dá principalmente com a viatura policial presente na imagem do Google Maps. O que era, até então, um olho descumbido de um corpo, o diretor faz ser visto com fisicalidade, expondo seu caráter material, dialético, palpável, impregnado de conflitos.
“Todos são iguais perante o mapa?”, Ernesto questiona em voice over. Se o mapa antes era apresentado como um “olho que tudo vê” – uma entidade desprovida de materialidade, imune às intempéries que invade e documenta as transformações e deformações urbanas -, Ernesto se apropria disso para ocupar e invadir o território das imagens do Google Maps. Um campo de batalha passa a ser desenhado através do embate entre imagem e som, onde as disputas se passam, sobretudo, pelo campo do simbólico.
Ao roubar as imagens da ferramenta de GPS para construir seu filme, Ernesto ocupa um espaço dentro e fora do mapa, através de sua narração. A princípio, o olhar que se apresentava de forma passiva – a perspectiva do mapa -, passa a ser lido como um agente direto, não passivo, que está imbricado ao seu objeto. O filme provoca uma questionamento ao espectador em relação a posição voyeurística que ele pode assumir diante das imagens, assim como produz uma reflexão acerca do “mito da imparcialidade” de um dispositivo de vigilância burguesa, que parece ser mais um aliado das forças deformadoras da cidade – o capital, as empreiteiras, os desastres ambientais.
Essa ideia de expor o mapa enquanto aliado às forças de poder capitalistas e aos interesses higienistas dos projetos de modernização das cidades acontece em uma sequência específica: além de registrar um baculejo feito por uma viatura policial, vemos o processo de transformação de uma favela que, com o decorrer do tempo, é totalmente destruída. O diretor-narrador nos mostra que o carro do Google Maps não havia conseguido entrar na região antes dela ter sido demolida. A operação do impedimento deixa a ver possíveis tensões que acontecem de dentro do dispositivo. Só após a demolição que o mapa finalmente consegue avançar e documentar aquele território.
Nesse sentido, o diretor-narrador nivela três agentes: o carro do Google Maps, a viatura policial e o governo municipal. Todos são categorizados como dispositivos burgueses de controle, vigilância e co-responsáveis pelas deformações/transformações urbanas e são retratados como protetores da propriedade privada e da ordem dominante.
No entanto, as tensões e assimetrias no modo de devolver o olhar ao mapa também acontecem de dentro da operação fílmica. A captura de pessoas negras sendo revistadas pela polícia entra em contraste com o que Ernesto apresenta no início do filme, que é o motivo de sua investigação – a sua imagem é capturada pelo Google Maps, mas não pelo aparato policial. As especificidades raciais desses corpos aparecem e se diferenciam de Ernesto. Eles não são apresentados da mesma forma que o cineasta foi – não sabemos seus nomes, não vemos seus rostos e muito menos sua origem, mas suas peles pretas não escapam da viatura policial, nem do mapa, nem do olhar de Ernesto.