‘Às vezes, você tem que criar sua própria história’ | Esta Casa (Miryam Charles, 2021) & A Mulher Melancia (Cherly Dunye, 1996) | 11º Olhar de Cinema

Em Esta Casa (Miryam Charles, 2021) e A Mulher Melancia (Cherly Dunye, 1996), uma cadeira de madeira no centro do quadro, posicionada em frente à câmera, é utilizada como dispositivo fílmico para que as espectadoras entrem em contato com os procedimentos elaborados pelas diretoras para compartilharem as histórias que desejavam. Se o recurso nos chama atenção por ser utilizado nos filmes de maneira semelhante e com finalidades parecidas, o uso da primeira pessoa do singular e de materiais de arquivo, assim como o investimento em documentários ficcionalizados nos estimulam a realizar essa análise fílmica conjunta.

Esta Casa (2021)

“Estamos tentando escrever uma história impossível”

A diretora canadense Miryam Charles parte do falecimento de sua prima para elaborar questões sobre o luto, o tempo e a experiência afro-diaspórica, desenhando uma ligação entre Haiti, Quebec e Estados Unidos. Tessa (Florence Blain Mbaye) retorna em seu “corpo adulto que nunca existiu” para compartilhar particularidades de sua vida. A jornada da adolescente e o reencontro dela com a mãe bagunçam as noções de espaço e tempo. A enunciação fragmentada, descompassada e repetitiva dos acontecimentos e informações sobre as duas configuram a tentativa de contar sobre um evento traumático. Já em A Mulher Melancia, Cherly Dunye se coloca em frente às câmeras e investe na metalinguagem. No filme, acompanhamos a diretora em seu processo de criação e pesquisa para a realização de um documentário sobre a vida de uma atriz negra estadunidense dos anos 1930 e 1940, a qual ela não tinha quase nenhuma informação. 

Cada uma dessas histórias são conduzidas e tangenciadas por materiais bem distintos. Dunye pega filmes sem autorização na locadora onde trabalha, realiza entrevistas nas ruas e com especialistas para saber mais sobre a “Mulher Melancia” (Lisa Marie Bronson) e visita arquivos nos EUA para esbarrar em algum vestígio que a auxilie em sua investigação. Em Esta Casa, por sua vez, relatos pessoais, memórias e fotografias antigas fazem parte do conjunto de matérias que tentam traduzir e, em alguma medida, reencenar as sensações e sentimentos que circundam e extrapolam a morte de Tessa. Nos dois longa-metragens, a narração em voice over está presente, de modo a nos aproximar das reflexões mais íntimas de cada personagem, assim como mediar os eventos que acontecem em cada trama.

A Mulher Melancia (1996)

“Às vezes, você tem que criar sua própria história.”

A constelação fílmica estabelecida aqui nos faz ensaiar acerca dos usos da ficção. A citação de Cherly Dunye, exibida por meio de uma cartela nos créditos finais de A Mulher Melancia, marca a ruptura da fricção entre “real e ficcional” em relação à existência (ou não) da Mulher Melancia, ou melhor, Fae Richards. Ela afirma que o filme é uma ficção, o que de alguma forma suspende justamente a maior força do trabalho: manter-se na dúvida. Apesar disso, é importante reconhecer que o percurso do longa de Dunye perfura o status da oficialidade da história (e a do próprio cinema). Ao produzir uma contranarrativa sobre a presença de atrizes negras em Hollywood no século XX, A Mulher Melancia incita o lugar da invenção no processo de construção historiográfica, confrontando o valor das fontes documentais. Isso se dá pela forma como documentos são forjados e reinventados para deslocar as narrativas oficiais, não com o intuito de reencenar o poder para a legitimação de novas hegemonias, mas para fazer ver histórias não contadas.

Essa tensão é marcada pelo contraste como Fae Richards é lembrada, pois ela está sempre associada e reduzida à figura de sua amante, Martha Page, diretora branca com quem fez diversos filmes. Além de poder ser encontrada em vários livros e ter sua obra localizável, a personagem de Martha Page também ambientaliza os conflitos entre Cherly e Diana (Guinevere Turner), sobretudo no que toca as relações amorosas interraciais. Isso se dá com muito humor, sobretudo pelos diálogos entre Dunye e sua amiga Tamara (Valarie Walker), que a coloca em estado de alerta em relação à namoradinha branca. Assim, acompanhamos o processo de investigação do documentário de Dunye, ao mesmo tempo que os fatos encontrados através da pesquisa histórica faz com que a diretora-personagem passe a se questionar sobre o afeto trocado com Diana.

Em Esta Casa, onde vida e morte não se separam, a ficção possibilita transgredir a linearidade do tempo e faz possível a ocupação de qualquer espaço. Lá, como diz Tessa, tudo é possível. Fotografia vira mapa, viagem se faz pela imaginação e pelo desejo de retornar ao território de origem, o Haiti, e cuidar do jardim é evocar a presença da filha que se foi tão precocemente. Ainda, a fabulação aparece como investimento formal para romper com o circuito de violência, mais como afastamento de sua replicação do que por sua imediata supressão. 

A sequência que deixa isso mais aparente é quando Tessa está relatando sobre sua morte. O dispositivo teatral é ativado e o lugar da encenação acontece num palco de teatro. Estamos na sala de espera do hospital, quando um médico branco aparece e dá a notícia do falecimento de Tessa. O choro da mãe marcado pelo registro que excede o naturalismo interrompe o status realista. A jovem está em segundo plano, em frente a um leito coberto por um pano branco onde estaria o seu corpo. A voz do profissional de medicina narra para as mulheres de sua família a causa da morte: enforcamento. A mãe chora ainda mais fortemente e o som é aumentado e em segundos interrompido. 

O silêncio, ao mesmo tempo que torna a imagem e o relato da morte (que está associada a um caso de violência sexual) mais fortes, recusa a reencenação do sofrimento daquela mulher-mãe. O encontro entre mãe e filha, o trânsito entre países, o lamento pela perda de uma ente querida e a esperança que motiva uma mãe continuar viva após a morte de sua filha fazem com que o filme carregue em si um pessimismo vivo, um desejo por continuar caminhando apesar de tudo. 

Esta Casa (2021)

“A recusa de sermos entrageiros para gerações vindouras”

Ainda que tenham registros de linguagem e matérias bem distintas, Esta Casa e A Mulher Melancia compartilham o desejo de produzir memória, da crença na lembrança como possibilidade de manter viva as histórias que estão contando para as suas espectadoras. O confronto com o tempo-espaço, a imaginação como método de reposicionamento das narrativas (históricas!) e a elaboração das ausências e traumas atravessam as duas histórias, forjando não apenas o passado, mas todas as temporalidades que as abrigam. Tramas que são criadas e inventadas a partir de si, de experiências individuais, mas que almejam coletivos e identidades. Mas, sobretudo, apostam na inventividade como ferramenta que abre possibilidade para qualquer coisa. É, Tessa, inventar histórias faz com que tudo seja possível.

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