Sudão do Sul em Vertigem | Sem Caminho Direto Para Casa (Akuol de Mabior, 2022) | 11º Olhar de Cinema

O cinema contemporâneo brasileiro possui uma série de documentários políticos em primeira pessoa realizados a partir do ponto de vista de herdeiros, como No Intenso Agora (João Moreira Salles, 2017) e Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019). Por mais que, a partir de registros familiares, pretendam ensaiar acerca de eventos históricos e processos políticos, muitas vezes, filmes como esses acabam revelando mais sobre quem os faz do que necessariamente sobre a questão política e material que abordam. Algo parecido ocorre em Sem Caminho Direto Para Casa (Akuol de Mabior, 2022), que esteve na mostra Novos Olhares, no 11º Olhar de Cinema. 

Akuol de Mabior é herdeira de políticos do alto escalão do Sudão do Sul. Seu pai, John Garang, foi o primeiro vice-presidente do país e líder da SPLM, Movimento Popular de Libertação Sudanesa, um dos exércitos que lutaram na Segunda Guerra Civil Sunadesa (1983-2006), a mais duradora do continente africano. Sua mãe, Rebecca Nyandeng de Mabior, é vice-presidente do país desde 2020. No início do filme, a diretora faz um breve panorama histórico da região, onde esse complexo conflito armado torna-se acessório para apresentar a sua família e a si mesma. Ou seja, os interesses e motivações da guerra são tratados como algo secundário. A partir de fotos da família, a diretora traça uma rápida e rasa conexão entre ela e a história do Sudão do Sul, ainda que sinalize que sua relação com o seu território de origem seja quase inexistente. 

É no mínimo questionável que o filme tente dialogar com os problemas políticos do Sudão do Sul, mas não fale de petróleo ou de imperialismo uma vez sequer. Nada é dito, por exemplo, sobre as forças políticas envolvidas no processo de separação que fizeram o Sudão do Sul ficar com 75% das reservas de petróleo do Sudão. Mabior também não tem interesse em falar do que faz o país produzir entre 150 e 170 mil barris de petróleo por dia, enquanto 80% da população vive em situação de extrema pobreza. Além de não dar mais densidade a tal discussão, a diretora prefere confluir com os discursos das narrativas oficiais, utilizando-se de imagens do jornalismo local para reforçar a ideia de que a culpa da crise política atual seria da pandemia de COVID-19 e da guerra civil. Mais ainda, todo o discurso construído sobre a atuação política dos pais de Akuol de Mabior é alijado do povo afetado por ele e traduzido em falas abstratas sobre “liberdade” e “paz”.

Mabior apresenta sua mãe com a proximidade que a condição familiar permite, em entrevistas matinais na cama logo após acordar ou durante a preparação do jantar. A narração em off construída pela diretora permeia a montagem, que trafega entre fotos do acervo pessoal da família e imagens de arquivo sobre o Sudão do Sul. A família de Mabior aparece sempre em evidência, o que articula uma relação borrada entre a vida pessoal e a vida pública desses sujeitos. Ao  acompanhar o retorno de sua mãe ao Sudão do Sul para contribuir nas tratativas de paz e estabilidade política da região,  o documentário se transforma num dispositivo de aproximação de Akoul de Mabior com seu país natal, ainda que esteja centralizado na figura materna.

Sem Caminho Direto Para Casa (2022)

A persona de Rebecca Nyandeng é construída enquanto guerrilheira e uma “mãe de família” presente na vida de seus filhos. Essa imagem da maternidade também é construída na relação entre ela e seu país. Ainda, a vice-presidente do Sudão do Sul é lida como alguém que luta por liberdade e como um grande exemplo de libertação feminina. Ao mesmo tempo, ela defende o papel tradicional atribuído às mulheres – como mãe e esposa. Essa contradição é tensionada pelo filme, mas Akuol pouco questiona a posição de Nyandeng enquanto agente político, até mesmo porque ela celebra a posição de poder de sua mãe.

A proximidade com que Akuol de Mabior filma sua mãe é inversamente proporcional à forma como ela filma seu povo e seu país. As ruas do Sudão do Sul são capturadas quase sempre de dentro do carro que leva sua mãe de um lugar a outro. Em um momento isolado, ela faz menção a uma mulher que serve chá na beira da estrada para ajudar sua família, filmando-a de longe. Um contraste significativo em relação à forma como ela registra sua mãe e as movimentações políticas sul-sudanesas. 

Ao acompanhar o processo de retorno de Rebecca Nyandeng ao Sudão do Sul, o filme acaba deixando escapar algumas marcas do período político: o acesso livre e irrestrito de Mabior a sua mãe acaba quando Nyandeng torna-se vice-presidente e passa a ter reuniões de portas fechadas com o presidente Salva Kiir. É a partir daqui que a mãe se transforma em figura pública. Ainda que deixe marcada essa diferença, não parece ser do interesse de Akuol de Mabior tensionar o significado político que faz de Rebecca Nyandeng a “Mãe do Sudão do Sul”. Esse processo é apresentado com muito entusiasmo e o filme, que até então apresentava com certa minúcia a identidade complexa de Nyandeng, passa a romantizar o papel dela como governante. 

Na última parte de Sem Caminho Direto Para Casa, Mabior resolve abordar uma questão ambiental forte: as enchentes que assolaram o Sudão do Sul em 2021, afetando mais de 760 mil pessoas. Mais uma vez, ela parte da relação familiar para lidar com os conflitos políticos do território, mas algo “escapa” desse núcleo. Enquanto sua mãe e sua irmã se dedicam a analisar os impactos das cheias e organizam possibilidades de suporte aos afetados, é ao acompanhar a entrega de mantimentos numa das áreas de risco que o filme lida com uma cidadã comum pela primeira vez. A sul-sudanesa confronta a diretora e debocha de Mabior por ela ser filha de John Gatang e não saber falar o idioma local, o Dinka. Diante disso, e da distância estabelecida com o povo do Sudão do Sul, Akuol de Mabior admite que “não sabe o que é ser sul-sudanesa”, e que seus medos e inseguranças estariam abaixo dessa realidade. Ao mesmo tempo, o filme continua tentando equiparar a figura de Rebecca Nyandeng com o povo, se esquivando das complexidades e das faltas que correm pelas ruas do país. 

Assim como em Democracia em Vertigem e No Intenso Agora, o filme de Mabior recai num discurso de desesperança, parecido com o entoado por Petra Costa e João Moreira Salles em suas tentativas de aproximar os processos políticos de seus registros pessoais (e vice-versa). Em certa altura do filme, Akoul de Mabior afirma que “parece que não há paz do outro lado da liberdade”. O discurso pessimista nos revela um cinismo de classe que, ao mesmo tempo que tenta apresentar o mundo partindo de si, finge não ter relação nenhuma com ele, não encarando-o como ele é.

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