Se as imagens são vestígios, todos os sons são evidências | SOLMATALUA (Rodrigo Ribeiro-Andrade, 2022) | 11º Olhar de Cinema

“Eu saúdo os primórdios da existência, saúdo o criador, saúdo o sol nascente, saúdo o sol poente”. Essa frase inicial de SOLMATALUA (Rodrigo Ribeiro-Andrade, 2022) firma o ritual de invocação do visível, onde a ideia de sol se conecta com o conceito de visibilidade. Mas, é justamente no jogo entre a luz e a escuridão que o filme se ancora, entre aquilo que deseja revelar e esconder. Luz são as matérias imagéticas manipuladas pela montagem, de modo a conduzir a narrativa para um crescendo (um aumento gradual da intensidade), uma progressão onde cenas ambíguas se tornam cada vez mais apreensíveis ao olhar. Escuridão são as investigações sonoras que operam por uma recorrência múltipla de pulsos, ou do vai-e-vem dos ritmos africanizados e estritamente experimentais. 

A primeira imagem sonoro-visual é um apelo ao gesto do filme. Uma pessoa negra devolve uma parcela de água para o mar. O líquido que cai de um pequeno recipiente não se esgota: pela repetição, a montagem produz um ciclo infinito. O som experimental, ao trabalhar com vozes sobrepostas e batuques, confere caráter ritualístico à imagem. Esse corpo negro, que não conseguimos identificar o rosto, está parado sempre na mesma posição, vestido com um traje vermelho. Segurando o recipiente com água, a presença negra torna-se, pela montagem e pelo choque com as experimentações sonoras, um princípio que transcende a natureza física de sua própria corporeidade. Em SOLMATALUA, as matérias imagéticas e sonoras se sucedem e entrecruzam-se, suscitando uma à outra. 

Imagens históricas, representações culturais do “ser negro”, cenas cartográficas de uma favela no Rio de Janeiro e fragmentos de cinemas das redes sociais são manipulados e explorados ao máximo pela montagem. Na justaposição de arquivos distintos é instaurada uma dose de segredo. Em SOLMATALUA, toda a imagem é vestígio, rastros deixados por um olhar racializado, que não segue um padrão quanto à câmera utilizada, ao tipo de arquivo ou ao conteúdo do que está em cena.

O filme mistura, por exemplo, uma cena de um pássaro parado em um pedaço de madeira no meio do mar com cenas de becos e vielas de uma periferia; de vozes eloquentes que vão direto ao assunto, comentando sobre a experiência negra na diáspora, às experimentações com densidades sonoras que possuem bases sólidas nos ritmos africanizados. Sons e imagens em movimento caminham juntos enquanto vibrações táteis, uma vez que a irrupção do campo visual ocorre em sincronia com as manifestações sonoras. Sem ser elucidativo, trata-se de uma experiência sensorial dura e hipnótica, tanto para os olhos quanto para os ouvidos.

Ainda no início do curta-metragem, há uma cena onde a câmera se aproxima gradualmente do sol até que esse ilumine toda a imagem, até não conseguirmos ver mais nada. Em seguida, nos deparamos com um homem parado de costas para o mar. De imediato, lembro dos múltiplos vislumbres do sol no curta-metragem Love is the message, the message is Death (Arthur Jafa, 2016). Pela justaposição de imagens de violência ao corpo negro com as de manifestações culturais da negritude, Jafa propõe uma segunda ordem de visibilidade, através da montagem, para esses arquivos que foram vinculados na mídia.

Em SOLMATALUA e Love is the message, the message is Death, a ausência de uma verdade interpretativa que totalize o sentido das imagens lança, pelo procedimento de montagem e pelo trabalho de interlocução com a música negra, a proposição de que a história não é a imagem, mas o que se diz sobre a imagem. Isso se dá pelo trabalho de esgotamento dos arquivos, uma vez que exploram todo o potencial das imagens pela montagem e constroem novos significados – e ambiguidades – por meio de justaposições. Ambos os filmes jogam com a estética das imagens ruidosas e com arquivos de baixa fidelidade para operar uma memória polissêmica. Essas estratégias servem para codificar o que há de mais importante para o cinema negro: a opacidade. 

No livro “Black Popular Culture” organizado por Gina Dent em 1992, está um texto, nomeado como “69” – uma transcrição de uma palestra de Arthur Jafa. No texto, Jafa cria um neologismo para tentar dar conta de uma experiência negra alinhada às artes: polivencialidade. A polivencialidade significa tons múltiplos, ritmos múltiplos, perspectivas múltiplas, multiplicidade. SOLMATALUA é, em essência, um filme polivencial. As imagens e ritmos construídos não almejam dar conta de condensar o que se espera de um olhar negro para o experimentalismo ou um significado único. E, para tanto, o sol é uma evidência física disso: a matéria que dá visibilidade também cega.

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