“Black-black-black, gay-gay-gay” | Tongues Untied (Marlon Riggs, 1989) & Affirmations (Marlon Riggs, 1990) | Mostra Bixaria Negra (2022)

“Faggot, faggot, faggot”, we can say it together
“But only if you let a white girl say ‘Nigga’”
Auntie Diaries, de Kendrick Lamar

Nas cenas iniciais de Tongues Untied (1989), dirigido por Marlon Riggs, um homem negro emerge em cena, da escuridão do espaço, com as mãos sobre o rosto e os olhos fixos para a câmera. Trata-se do próprio diretor. Seu corpo se movimenta de lá para cá, se curva e se levanta, numa dança embalada pela polifonia de vozes que recitam um manifesto, em tom poético, em torno da ideia do silêncio que cala ideias e discursos dissidentes.

A cena imediatamente me remete à ginga da capoeira. Não só pelo movimento de ir e voltar, mas pelo modo como o homem protege o rosto com as mãos, os braços e os cotovelos, e ainda assim mantém, pelo olhar, a conexão que foi estabelecida com o espectador. “Brother to brother” / “De irmão pra irmão”, disseram, no início do filme.

A ginga é a base de todo e qualquer jogo de capoeira porque é dela que sai uma gama de movimentos possíveis: sejam os de ataque, os de defesa, de aproximação ou mesmo fuga. O ritmo que dita a velocidade de seu balanço é também o compasso que determina a intensidade do movimento, resultado de uma longa e praticamente ininterrupta música coordenada por uma orquestra de berimbaus, atabaques, pandeiro e agogô, entre outros, somados às palmas da roda.

“Como fazer com que a música preta ou as imagens pretas vibrem de acordo com certos valores frequenciais que existem na música preta?”, pergunta o videoartista Arthur Jafa em 69 (Black Popular Culture, 1998). Tomando como base Tongues Untied e Affirmations (1990), dois filmes de Marlon Riggs recentemente exibidos no IMS carioca e paulista na Mostra Bixaria Negra, ouso tentar responder: assegurando uma estética que garanta, na montagem e na construção de uma narrativa, a simultaneidade melódica das vozes que articulam, fabricam e destroncam discursos.

Em Tongues Untied, forte ensaio contra o silêncio infligido à comunidade preta e gay norte-americana, Riggs não só expõe seus dilemas e desejos enquanto indivíduo e parte de um grupo, como escolhe não se calar diante da própria violência dentro da comunidade negra como um todo. Simbolizada nas cenas do stand-up do Eddie Murphy e nas pregações da boca de um pastor (“No juízo final, o que ele é primeiro? Negro ou gay?”), a homofobia – e, por outro lado, as performances em afronta a ela – são caracterizadas no filme em complexidade, seja pela via da reencenação e da retomada material e violenta de arquivos, seja pelos testemunhos ou performances que são reunidas de modo mais experimental.

Exemplo disso pode ser encontrado no curta Affirmations, quando o filme registra cenas de uma passeata de homens “black-black-black, gay-gay-gay” – como eles entoam em determinado momento, com orgulho, no meio da rua. Do outro lado, por sua vez, um homem, aparentemente negro, grita: “vocês não fazem parte da tradição africana!”. Se o confronto ali existiu ou não, pouco importa, porque o curta faz questão de criá-lo: por meio da montagem, em plano e contraplano, Riggs estabelece um “nós” e um “ele”, intercalando as palavras de ódio com os berros dos homens que, da rua, gritam “ei, ei, ho, ho, a homofobia tem que acabar”. Somos todos negros, sim, mas a irmandade que nos une é aqui colocada em xeque. 

Se Affirmations termina com uma espécie de profecia, onde a voice-over narra um futuro onde homens pretos poderão se amar com vigor e liberdade, Tongues Untied inicia sua sequência final com uma cena de sexo. O encontro, filmado com proximidade e ternura, tanto introduz a pandemia de HIV/aids (“esse gozo pode nos matar”) quanto, com o auxílio de imagens de arquivo, evidencia uma luta que transpassa gerações.

As imagens de abolicionistas norte-americanos são retomadas junto às filmagens das marchas de Martin Luther King e da passeata aqui descrita anteriormente. O gesto não necessariamente pacifica as relações problematizadas ao longo do filme, mas, de forma singela, acaba materializando um desejo que é, na obra, ao mesmo tempo subjetivo e social. Desejo esse representado no manifesto final, que coroa não só Tongues Untied como as demais obras do cineasta: “homens pretos amando homens pretos é o ato revolucionário”.

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