Uma resistência silenciosa | Rewind & Play (Alain Gomis, 2022) | 11º Olhar de Cinema

“Tem de fazer parecer ao vivo, é a maneira moderna”, comenta um homem que está dirigindo as gravações de Thelonious Monk para o programa Jazz Portait. As mãos do artista negro ganham destaque por meio de um superclose e o som de sua música é o que toma conta da tela. Mas, há um ruído, uma série de cochichos incompreensíveis que invadem o quadro. A medida em que vai se distanciando, o movimento de câmera ao redor do piano começa a revelar as feições e concentração do pianista, ao mesmo tempo que deixa escapar a estrutura de um ambiente que deseja registrar “uma das mais importantes estrelas do jazz”, mas se comporta com grande desrespeito em relação ao artista. Em Rewind & Play (2022), o diretor Alain Gomis manipula os arquivos da entrevista realizada em 1969, de modo a desafiar a autoridade do entrevistador (e da própria estrutura televisiva), demarcando a resistência opaca, silenciosa e irônica de Monk frente a essa situação desconfortável e contraditória.

Na primeira sequência do filme, o entrevistador branco começa a fazer uma breve introdução sobre o artista afro-estadunidense. No momento em que a imagem passa a focar no rosto do entrevistado, a fala do entrevistador é interrompida e o silêncio, acompanhado pelos olhos atentos e expressivos de Monk, suspende a enunciação desse agente. Algum tipo de tensão é desenhada nesse instante, lançando uma provocação sutil às assimetrias de poder existentes na relação entre ambos. Além disso, a supressão da voz do entrevistador surge como um apelo para olharmos com atenção para a imagem, para Thelonious Monk. 

As perguntas destinadas ao pianista parecem sempre vir acompanhadas de um grau de intimidade por parte do entrevistador. Ele busca informações de situações cotidianas do artista para compartilhar com sua audiência. Com um ar de que lhes são conhecidas, como a história da instalação de um piano na cozinha do apartamento de Monk, o mesmo se dá para o modo como o entrevistador comenta sobre Nellie Smith, a companheira do artista. A forma como manifesta essa intimidade, no entanto, parece uma tentativa, por parte do entrevistador, de borrar a hierarquia entre ele e seu entrevistado, aproximação a qual Monk estranha. Isso se evidencia com as respostas secas e resistentes dadas pelo artista, que meticulosamente desarma a arapuca formada pelo estúdio televisivo. A montagem, por sua vez, acompanha tal rispidez, sem medo de se fazer aparente em seus gestos de manipulação da imagem. Bruta e inacabada, ela opera de modo a fazer vibrar essa opacidade, torná-la contraditoriamente visível, deixando perceptível a relutância de Monk como ferramenta de confronto a esse cenário incômodo.

Rewind & Play (2022)

A entrevista, que é realizada em francês e traduzida para o inglês, é acompanhada por uma camada de repetição por conta da dinâmica de tradução. Esse poder de comunicar aquilo que foi dito por Monk, faz com que, muitas vezes, o entrevistador busque manipular as respostas do pianista, pedindo para que Thelonious Monk as repita incessantemente. Mais do que o desejo de enquadrá-lo aos moldes televisivos, a demanda articulada pelo entrevistador parece buscar atingir algum tipo de expectativa criada em relação ao artista. Mas, não só: a repetição aparece como um pedido de coerência no diálogo, perante esse homem negro que resiste ao traduzível, ao capturável. 

A montagem recorta a imagem, picota, repete, chamando atenção aos trejeitos de Monk: olhos atentos, suor escorrendo pelo rosto, dedos inquietos. Ela amplifica o incômodo instaurado, mas de modo a desarquitetar os dispositivos que buscam congelar a imagem de Monk. Nesse sentido, a revisitação ao arquivo do Jazz Portait se desenha como um contra-ataque, um gesto de redistribuição de violência: ao escancarar o não-entendimento do entrevistador perante Thelonious Monk, o incômodo se desloca para a imagem daquele, ao ponto de reposicionar simbolicamente sua figura. Em uma dessas tentativas do entrevistador em fazer com que Monk fale o que ele deseja ouvir, o jogo de montagem se estabelece de um jeito que o entrevistador passa a responder a suas próprias perguntas. A situação torna-se cômica e o registro do risível decreta certa falência à imagem do entrevistador, desestruturando, no limite, o próprio aparato televisivo.

Os rasgos a essa estrutura sufocante se dão, ainda, por aquilo que resta, que, na verdade, é o fundamental: a música. A entrevista é intercalada por números musicais que, assim como as respostas monossilábicas de Monk, resistem às câmeras, à imposição do entrevistador, ao desrespeito daqueles que estão dentro do estúdio e não parecem olhar para o artista negro. Em Rewind & Play, são muitas as vezes que as canções de Monk aparecem sobrepostas às enunciações do entrevistador, a sua tentativa de controle à figura do artista negro e, inclusive, à própria imagem na tela. Se, muitas vezes, o silêncio é um recurso utilizado para nos atentarmos ao artista Thelonious Monk, a sua destreza e expressividade na forma como toca seu instrumento de trabalho, são as notas do piano, cada vez mais altas e graves, que produzem uma resistência sônica, que desestabiliza o entrevistador e intervém no registro do arquivo, assim como faz a presença opaca de Monk.

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