Usar a câmera para guardar memórias, assim como faziam os mais velhos: uma conversa com Pará Xyapy (Patrícia Ferreira) e Kuaray Poty (Ariel Ortega) | CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

Nota da editoria: A entrevista que você conferirá abaixo havia sido pensada para ser feita presencialmente, na cidade de Ouro Preto, com a presença de Pará Xyapy e Kuaray Poty. No entanto, por motivos de agenda dos realizadores, o colaborador Renan Eduardo precisou fazê-las separadamente. As perguntas foram mantidas nas duas ocasiões, o que nos fez decidir por montar as respostas de Pará Xyapy e Kuaray Poty conjuntamente, preservando os diálogos estabelecidos entre entrevistada(o) e entrevistador, assim como as intervenções ocorridas durante a conversa com cada um deles. 

Pará Xyapy (Patrícia Ferreira) e Kuaray Poty (Ariel Ortega), realizadores da etnia M’bya-Guarani, foram os homenageados da CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto. Com uma filmografia vasta em seus 15 anos de atividade, ambos iniciaram seu percurso no cinema através do projeto Vídeo nas Aldeias, em 2007. A câmera, que tornou-se uma grande aliada para as ações de militância indígena, é utilizada por Pará Xyapy e Kuaray Poty também como um dispositivo de experimentação, de produção de memórias, um aparato para documentar saberes, ritos, mitos e suas demais práticas culturais.

Co-fundadores do Coletivo M’bya-Guarani de Cinema, os companheiros de trabalho e de vida são autores de títulos como M’bya Mirim – Palermo e Neneco (2012), Desterro Guarani (2011), ao lado de Vincent Carelli e Ernesto de Carvalho, Mario Reve Jeguatá – No Caminho com Mário (2014) e Bicicletas de Nhanderú (2011). Na entrevista realizada pelo colaborador Renan Eduardo, em Ouro Preto, Pará Xyapy e Kuaray Poty compartilharam suas percepções sobre o cinema, seus modos de filmar e refletiram brevemente sobre suas trajetórias nessas duas últimas décadas.

Renan Eduardo: Os debates da CINEOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto têm apontado para a questão da preservação de filmes como modo de preservação, registro e memória de grupos sociais, da construção do “nós”, enquanto “povo”. Na cultura ocidental, essa relação com a memória sempre foi mediada por diferentes dispositivos de registro – livro, pintura, câmera. Já nas culturas indígenas, ainda que alguns desses suportes estejam presentes, a oralidade tem uma função importante para a preservação e transmissão de memórias e saberes. Pensando no cinema que é feito por vocês, Pará Xyapy (Patrícia Ferreira) e Kuaray Poty (Ariel Ortega), como enxergam essa relação entre a oralidade, a fala, o dispositivo e o registro?

Pará Xyapy (Patrícia Ferreira): A gente já conviveu com isso por muito tempo, né? A forma que fomos retratados, seja em fotografias ou em vídeo, foram contados pelo olhar de fora. Então, por muito tempo, passamos a contar a nossa história através do olhar de fora e isso trazia uma memória muito abalada, digamos assim. Principalmente, para o povo, para mim. Seja nos livros, porque moramos em uma cidade histórica [São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul]… A gente tem esse registro de histórias nos livros… A gente lê muito através do olhar dos padres jesuítas.

Renan: Você considera isso um olhar colonizador, Pará?

Pará: De certa forma, sim. Mesmo contando a história do que aconteceu nas missões… Mas, e depois? Continuou isso, seja na fotografia ou no audiovisual: a contar histórias através do olhar não-indígena. Quando a gente teve a oportunidade de trabalhar e contar nossas próprias histórias, foi com uma outra ferramentas que não são as nossas, mas nós já havíamos convivido com isso. Com os outros [os não-indígenas] que chegavam na nossa aldeia ou quando éramos entrevistados nas missões. Então, ao mesmo tempo que era uma coisa nova, a gente já havia convivido com isso. 

A partir do momento que começamos a trabalhar com o audiovisual, percebemos essa dificuldade. Porque as pessoas já estavam desconfiadas de como que trabalharíamos com as mesmas ferramentas que foram usadas para roubar tanta coisa da gente. Então, para nós, foi um pouco difícil explicar para os mais velhos que esse trabalho traria um outro olhar e que, principalmente, educaria as pessoas. Porque, agora, nós estamos contando através do nosso próprio conhecimento, do nosso próprio olhar, olhando de dentro para fora. De alguma forma, a gente consegue explicar e transformar isso [o cinema] em nosso aliado de lutas, né?  

O conhecimento, que é o que os mais velhos tinham, era passado para nós através da oralidade. Então, acho que essa coisa de gravar imagem e áudio e passar para as pessoas mais novas complementa isso. Como é no meu caso: trabalho na escola, então, às vezes, passo documentários, não só feitos por nós, mas também por outros povos indígenas. Porque, querendo ou não, nossa realidade hoje, na nossa aldeia, é diferente, né? As crianças acordam, já vão para escola, não tem mais esse tempo de acordar, tomar mate, ficar na roda da fogueira para contar os sonhos e ouvir conselhos e histórias. Isso mudou bastante, a escola traz essa mudança. Então, demorei um pouco para entender como trabalhar a oralidade junto com o audiovisual.

Então, comecei a refletir como que eu poderia trabalhar melhor a oralidade, a memória, e ter como aliado o audiovisual. No início, foi difícil para mim, porque ou trabalhava na escola ou era realizadora. Eu não entendia como funcionavam as duas coisas. Mas, depois disso, consegui muito bem estar nesses dois trabalhos. Conciliar, porque eles se complementam. Trabalhar na escola, dar aula e trabalhar com vídeo: foi nessa dinâmica que percebi que a oralidade e o audiovisual se complementam muito. Como disse, as crianças e os jovens hoje em dia já tem celular, né? Tem celular, tem computador, tem televisão. Essas imagens que a gente vem fazendo servem como memória, como fortalecimento de nossa própria cultura. 

Então, acho que o cinema chegou no tempo certo. Porque os mais velhos já estavam reclamando assim: “ah, os mais novos não sentam mais para nos ouvir”. E, os mais novos: “ah, os mais velhos não falam mais”. Era uma coisa que acontecia bastante. Culpar o outro por não acontecer mais isso, né? Não estávamos mais encontrando esse espaço para conversar. Então, acho que o papel do audiovisual também entra nessa questão. Para ajudar nessa conversa, entre os mais novos e os mais velhos. Ele nos fortalece como povo, porque ele guarda a valiosa memória das pessoas que já não estão mais aqui. Então, os mais novos têm essa oportunidade de ver e ouvir de novo.

Mario Reve Jeguatá – No Caminho com Mário (2014)

Renan: E você, Kuaray, como enxerga essa relação entre a oralidade, a fala, o dispositivo e o registro?

Kuaray Poty (Ariel Ortega): Quando era criança, eu aprendia sobre a nossa história, nosso passado, a espiritualidade, sentado à beira da fogueira. Só que esse tempo foi se transformando e a gente começou a ter contato com a câmera. A câmera funciona como um velho, da mesma forma que era no passado, ensinado como um registro, para guardar memória, né? A ser passado de novo. Acho que funciona muito bem para a gente que é da cultura oral. A câmera funcionou muito bem. Como os velhos contavam antigamente, hoje em dia a gente é uma câmera, né? Apesar de que é uma ferramenta ocidental… A gente purificou a câmera para nossa cultura… A gente transformou isso para que ela faça parte do nosso dia-a-dia, com o objetivo de guardar nossa memória, assim como os velhos faziam. 

Renan: No filme M’bya Mirim – Palermo e Neneco (2012), que foi exibido durante o CineOP, vocês, antes da cartela inicial, purificam a gabiroba. Fiquei pensando nessa imagem com essa relação de “purificar a câmera” que você trouxe. A gabiroba é purificada, mas parece que só após purificar esse fruto é que o filme, de fato, começa… 

Kuaray: Sim, porque para a gente tudo tem uma estação, um ciclo né? Toda vez que chega o novo ciclo, novos frutos, antes de consumi-los, antes de usá-los, você tem que purificá-los. Tudo é sagrado para a gente. Todos os alimentos, as árvores, as coisas. Tudo tem o seu dono no mundo espiritual. E a câmera também. Como a gente vai usar numa coisa muito importante da nossa causa, para contar nossa história, ela também tem que ser purificada. É como dar reconhecimento para as divindades. E elas nos dão inspiração. Para nós, todos os trabalhos tem que ser inspirados… A fala tem que ser inspirada, não pode ser vazia, para causar efeito, né? 

Renan: Você falou sobre a purificação e essa relação com o sagrado e me lembrei de um dos personagens em Desterro Guarani (2011), que fala sobre a “caminhada sagrada”. Fico pensando que, muitos desses filmes, passam um bom tempo registrando os povos indígenas de suas comunidades em caminhada. E esse cruzamento entre territórios, com frequência, tem relação com terras indígenas que foram tomadas e hoje são propriedades privadas. Você poderia falar um pouco sobre isso? 

Kuaray: O Guarani sempre foi de caminhar, né? Porque todo esse território, América Latina, Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, antes da chegada dos europeus colonizadores, nossos antepassados transitavam livremente. Não existia essa coisa de propriedade. Não existiam cercas. As divindades nos colocaram aqui para vivermos tranquilos, em paz, né? Mas isso foi mudando muito rapidamente e, quando a gente percebeu, os colonizadores já estavam aqui. Com um outro modo de vida, um outro modo de pensar sobre o território. 

Renan: O estabelecimento das fronteiras, né?!

Kuaray: A criação das fronteiras. Nossos documentários tentam mostrar um pouco dessa caminhada. Não faz sentido só fazer em uma aldeia. O Guarani é da caminhada. Então, a gente sempre registra nossas viagens, as estradas, vendo os nossos territórios ancestrais, né? Que hoje em dia, a maior parte, é usada pelo agronegócio. Então, a gente tenta registrar um pouquinho para mostrar para os jovens que tudo aquilo era nosso território. E para a sociedade brasileira também… Acho importante, porque ainda somos vistos como invasores. A gente está ali sabe, a sociedade não-indígena não entende isso. Que a gente estava antes do Estado existir. O Estado Brasileiro, né? Por isso que a gente sempre mostra um pouco dessa caminhada. 

Renan: Isso se conecta com uma outra pergunta que gostaria de fazer. Vi você falando no debate “Ariel e Patrícia: dois cineastas e um percurso” sobre essa questão da dissolução das fronteiras, da caminhada, que tem até a um pouco a ver com o próximo filme que vocês irão lançar (que foi rodado na Argentina). E, pensando nessa ideia de “estado brasileiro” e de “povo brasileiro”, como você enxerga o cinema de vocês, M’bya Guarani, frente ao que chamamos de “cinema brasileiro”?

Kuaray: Primeiramente, queremos recontar a nossa história através do cinema. Porque o cinema ocidental, obviamente, quer contar a história dele. Quando retratam os povos tradicionais, sempre querem romantizar muito. Eles querem ainda ver o indígena “do passado”, né? E, quando a gente tá fazendo nosso cinema, ao contrário do cinema não-indígena, a gente retrata a realidade, partindo de um olhar de dentro, não um olhar de fora. Então, o nosso modo de fazer cinema já é outro. Porque é outro tempo. E quando as entrevistas, as falas, tem outro tempo, a gente respeita o tempo. Acho muito necessário que a gente se aproprie cada vez mais desse “fazer cinema”, porque eu acredito muito que, no futuro, meus filhos e meus netos terão outra relação com a sociedade ocidental. Acho que o cinema contribui muito com isso. 

Pará: A gente diz que, para nós, não existem fronteiras nos territórios Guarani. Quanto aos trabalhos que nós estamos fazendo, a gente não vê essa diferença. Por mais que a gente vá para o outro lado do rio. Não estamos indo para outro país para fazer filme. Nós estamos indo para outra aldeia. Quando a gente chega em outras aldeias que a gente vai, às vezes a gente não conhece quem são as pessoas, mas sabemos que são os nossos parentes que estão ali. Então, é só respeito pelo trabalho. A história que a gente quer contar sempre vai ter o lado de cá e o lado de lá para contar. Então, acho que o cinema também não tem fronteiras.

Renan: Pará, você afirmou que enxerga o audiovisual como uma ferramenta educadora. Pensando nas transformações do Brasil, do momento em que vocês começaram a filmar até hoje, como você percebe a posição do seu cinema frente a essas mudanças?

Pará: Politicamente falando, desde que começamos a trabalhar, a gente presenciou a questão da demarcação da terra, por exemplo. Isso não mudou. A gente viu, principalmente, no Rio Grande do Sul, mais de 30 aldeias. Acho que apenas oito são demarcadas. Essas terras demarcadas totalizam menos de 300 hectares. Comparando com o Amazonas, que é terra demarcada, é muito pequena. Então, muitos falam que é muita terra para o índio. Para nós, isso é muito difícil de ouvir. Desde 2007, a gente não vê nenhuma diferença, não vê essa mudança nas políticas sobre a demarcação da terra. 

A mudança que consigo ver é a de depois que a gente começou a filmar em nosso município. As pessoas começaram a nos enxergar de um modo diferente, depois que começamos a trabalhar. Porque não tinha conversa, não tinha espaço livre para transitarmos naquela cidade. Mesmo sendo uma cidade turística, justamente por contar a história dos Guaranis e dos padres jesuítas, muitas pessoas não conheciam quem era esse povo que estava ali… E nos chamavam de qualquer jeito, das piores maneiras possíveis. Hoje, a gente já tem uma conversa, principalmente com as pessoas que trabalham no município e levam seus alunos para visitar a aldeia. Então, é uma coisa que conseguimos ver essa diferença depois que começamos a trabalhar. Por isso, acreditamos muito na educação das pessoas através dos filmes.

Desterro Guarani (2011)

Renan: Kuaray, você afirmou em uma mesa [mencionada anteriormente], aqui do CineOP, que enxerga o audiovisual como uma ferramenta de transformação. Nessas duas últimas décadas, o que você percebe de diferente no país e em seu trabalho?  

Kuaray: Quando a gente começou em 2007, existia muito preconceito lá na cidade, no município onde a gente vive e eu queria mudar isso. Quando a gente fez o primeiro filme  [Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, Uma Caminhada, 2007], começamos a mostrar ele nas escolas. Vejo que isso impactou muito. As pessoas, os personagens falando, deixando nossa mensagem. Existia preconceito porque não nos conheciam, né? E todo o nosso trabalho, de fazer registros mais históricos, com vontades mais históricas, contribuiu para as nossas lutas em relação aos nossos territórios. A gente tem conseguido muito resultado com isso também. O lugar onde vivemos hoje, São Miguel das Missões, foi reconhecido como lugar de referência para o povo Guarani. Foi a gente registrando, mostrando a importância daquele espaço. Onde era a antiga missão jesuítica, por exemplo… Foi um material importante para colaborar com a nossa luta, nossas reivindicações. E acho que continua funcionando até agora. 

Renan: Queria fazer uma última pergunta… No filme Mario Reve Jeguatá – No Caminho com o Mário, a cena em que uma das crianças está ouvindo Vida Loka – Parte I, dos Racionais MC’s, me chamou muita atenção… Você poderia comentar sobre isso?

Pará: Aparecem muitas músicas no nosso trabalho, né? Essas músicas que a gente coloca é o que as pessoas da aldeia ouvem, né? Então, não foi diferente em No Caminho com Mário. Como um jovem que está começando a se descobrir como jovem, ele começa a ouvir a música com que se identifica. Porque eu acho que, principalmente os mais novos da idade do Mário, eles já estão inseridos assim com a idade deles, com os não-indígenas, né? [O filme] é a vida naquele momento que ele se enxerga.

Renan: Essa cena é bem emblemática para mim… Não sei o que você acha, Kuaray, mas fiquei pensando: seria possível traçar uma relação entre aldeia e quebrada, entre aldeia e periferia? Seja dentro ou fora do cinema…  

Kuaray: Sim, com certeza. Sinto que é a mesma realidade daqui, só que no contexto urbano, um contexto maior. Algumas vezes, já pensei assim: “será que, no futuro, algumas aldeias que estão mais perto da cidade vão se transformar numa favela?” Fico pensando nisso… Num futuro muito distante… Porque as terras vão diminuindo e a população vai aumentando… Mas, acho que tem tudo a ver. A aldeia tem uma organização diferente, mas eu já fui em algumas favelas e parece que funciona do mesmo jeito da aldeia, só que mais caótica… 

Renan: Em Mario Reve Jeguatá – No Caminho com o Mário, tem aquela cena da lan house também, que foi uma coisa muito comum na quebrada, né?

Kuaray: Sim, acho que é muito parecido. Fico muito impressionado também, mas não sei. Não tenho certeza, mas fico imaginando, algumas vezes: quem sabe, um dia, algumas favelas que estão no contexto urbano podem se tornar uma favela.

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