O trabalho como uma herança ambígua: uma conversa a partir de Bem-vindos de Novo (Marcos Yoshi, 2021) | CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

Nascido em uma pequena cidade do interior de São Paulo, Marcos Yoshi mudou-se para a capital do estado para cursar Audiovisual na Universidade de São Paulo (USP). Brasileiro e nipo-descendente, o cineasta tem um particular interesse em contar e documentar histórias de sua família e do fluxo migratório entre Brasil e Japão da comunidade nipo-brasileira, fenômeno conhecido como dekassegui.  

Em sua pesquisa de mestrado, também pela USP, ele dirigiu e atuou nos filmes Aos Cuidados Dela (2020), exibido na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, e Bem-Vindos de Novo (2021), que compôs a Mostra Contemporânea da CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto. Na entrevista realizada de forma remota pelo colaborador Renan Eduardo, Marcos Yoshi compartilhou sobre o processo de realização de seu primeiro longa-metragem, suas percepções sobre os trânsitos migratórios de seus pais e avós, neoliberalismo e os sentidos da ideia de ciclo e repetição em seus trabalhos.

Renan Eduardo: Marcos, acredito que Bem-vindos de Novo (2021) tem um caráter meio cíclico. Tem a ver com o título, inclusive. Ele aponta para uma ideia de repetição, de retorno, que pode ser tanto para o Brasil quanto para o Japão. Você enxerga essa ciclicidade no seu filme? Poderia comentar um pouco sobre isso? 

Marcos Yoshi: Eu acho que tem uma espécie de sacada ou ironia no título, né? Um “bem vindo de novo” a partir da perspectiva do Japão, de voltar ao Brasil, ou a possibilidade dos meus pais voltarem do Brasil. O título aponta para essa circularidade que, no final das contas, é uma característica da imigração (de nipo-descendentes). E, como você pode ver no filme, eles vão para o Japão com a expectativa de ficar três anos, juntar uma grana, voltar para o Brasil e tentar fazer alguma coisa. Só que, muitas vezes, as condições no Brasil não são propícias. O processo cíclico dessa imigração é algo que acontece com muita gente. Muitas pessoas estão aqui [o diretor está no Japão] há 20 anos dentro dessa lógica: tentativas de voltar [para o Brasil] e não conseguir. E tem uma circularidade mais ampla, né? Que é apontada no filme de uma maneira menos direta, sobre os meus avós que foram para o Brasil. O que dá um outro sentido ao filhos e netos deles retornarem ao Japão, um percurso contrário que fecha essa espécie de círculo imigratório. 

Renan: Ainda pensando na imigração, o seu filme parece que tem uma espécie de ressaca tanto dos seus pais, quanto dos seus irmãos. No sentido de uma lenta digestão, uma coisa meio amarga que tá direcionada para o “entre“… 

Marcos: O que seria para você esse “entre”?

Renan: Esse “entre” é um entre ciclos. Tanto o intervalo de seus pais voltando para o Brasil, quanto eles retornando ao Japão. Fico pensando nessa ideia de ressaca, no sentido de algo mais lento, desacelerado… 

Marcos: Eu acho que o filme tenta processar uma experiência que aconteceu durante muitos anos. Esse processamento demanda trabalho e tempo. O filme tem um ritmo mais cadenciado, mais lento. E, em certo sentido, é reflexo de uma coisa que já rolou dessa forma. Acho que tem uma pauta meio fria à respeito das coisas que aconteceram. De quais foram as consequências e quais foram os sentimentos que cada uma das partes, e cada uma das pessoas envolvidas, nutriu ou teve durante esse processo. E que nunca foram diretamente abordados. Foi algo que ficou muito claro durante a pesquisa e a realização do filme. Com outras pessoas que passaram por uma situação semelhante, pude perceber que elas tinham vivido tudo isso, mas que nunca houve um momento no qual essas questões foram colocadas na mesa.

Nesse sentido, acho que há uma ressaca mesmo do que já aconteceu. É engraçado porque o desdobramento do filme acontece quando os personagens dos meus pais decidem retornar ao Japão. É quando o filme fica mais a cabo dos acontecimentos do presente. E isso assume um caráter de repetição. Ou seja, eles apontam para algo que já ocorreu outra vez, né? Aqui, talvez, esteja um pouco dessa ironia e desse sentimento de ressaca. Algo como: “Putz, estamos aqui de novo vivendo tudo isso? É isso mesmo?” Mas, ao mesmo tempo, nós estamos em outra condição, com outra idade, numa outra etapa da vida. 

Bem-vindos de Novo (2021)

Renan: Pensando numa resposta que você deu um pouco antes, vejo que seu filme entra em contato com a questão do neoliberalismo nos dois países. Existe um esforço muito grande, por parte de seus pais, de se manterem economicamente estáveis, né? Seu pai passou por postos de trabalho que são marcas das mudanças econômicas que assolaram o capitalismo nas últimas décadas: microempresário, operário de fábrica, microempresário novamente, motorista de aplicativo. Esse era um tema que você queria trabalhar desde o princípio? O que você pensa sobre isso?

Marcos: Eu acho legal você trazer essa questão, porque acho que ela está conectada com uma ideia de classe presente no filme. Não é algo tão explícito, mas está ali, né? A respeito de uma classe média brasileira, uma classe média baixa brasileira, que tentou sobreviver ou tentou tocar a vida e oferecer as melhores oportunidades para os filhos. Vejo que esse processo neoliberal está bem ligado à ideia de fracasso individual, a qual o personagem do meu pai encarna. Acredito que todo projeto de imigração tem, no fundo, um desejo de sucesso, de sair dessa experiência “bem sucedido”. Mas, à nível individual, o que acaba acontecendo é que a própria imigração gera esse sentimento de fracasso. Além disso, meus pais estavam numa zona bastante sensível, que foi o processo de reabertura econômica no Brasil, a partir da década de 1990. E, pensando na situação do Japão e do trabalho deles em si, estamos falando de um modelo de sociedade que já está no estágio de “alto desenvolvimento do capital”…

Renan: Os anos 1990 são fundamentais para a formação desse processo, né?!

Marcos: Você diz no Japão?

Renan: No mundo como um todo.

Marcos: Esse processo é sintonizado com o processo de globalização, né?! Principalmente, a globalização nos termos do capital, para poder migrar como quiser de país para país. No Japão, particularmente, é um momento de abertura da mão-de-obra imigrante, de forma um pouco mais legalizada, sempre no espectro de “precisar de mão-de-obra não qualificada”. A condição aqui estava mais engessada. Meus pais nunca iam construir uma ideia de ascensão social ou coisa do tipo. O que norteava o Brasil era justamente o desejo pela ascensão econômica. Mas, no Japão, não. Era muito mais ligado a algo do tipo: “a sua condição é de operário e isso não tem muito como mudar”.

Renan: Queria te fazer uma outra pergunta, ainda nesse sentido. Vejo que você produziu um arquivo sobre sua família, partindo de dentro dela, que dialoga e se expande com questões políticas, econômicas e raciais que dialogam com um determinado tempo histórico. Como você vê essa relação com o arquivo no seu filme e com as outras estruturas que estão tangenciando sua história pessoal?

Marcos: O Adirley Queirós fala muito sobre essa ideia de produzir arquivos. Então, pensando no filme, é como se houvesse duas camadas: os VHS, que o filme utiliza, e o próprio filme como arquivo, documento de seu próprio tempo, de uma localidade específica. A respeito dos VHS, é muito doido pensarmos que, provavelmente, era a primeira vez que os imigrantes que foram para o Japão, na década de 1990, tiveram acesso a essa tecnologia. Eles se deslocaram para o país que produziu essas câmeras. Então, tem uma própria reflexividade econômica e material desses arquivos feitos no Japão. É uma dimensão que não está muito presente no filme, mas acho doido pensar sobre isso, sabe?! Até mesmo de pensar o VHS dentro da história dos materiais de arquivos: ele se apresenta como essa tecnologia que é feita num país específico e se torna uma espécie de imagem de uma geração.

Já sobre o processo de construção de arquivo que é o próprio filme… O arquivamento desse momento da família partiu de um certo sentimento de que tudo o que minha família experienciou, aconteceu de forma semelhante em outras. Parecia tão doido não contar, não materializar aquilo. As pessoas que relatam sobre esses momentos parecem compartilhar uma espécie de dor. Tudo isso tem uma dimensão do absurdo. Acho que isso acontece muito dentro da imigração.

O impulso inicial era conseguir dar conta de contar essa história no seu aspecto macro e micro. Num nível mais intelectual, conseguia vislumbrar e entender que essa história fazia parte da história do Brasil e do Japão. Ao mesmo tempo, dentro desse campo, tinha coisas muito específicas, muito pequenas, que me interessavam, me emocionavam. E fazia parte do gesto do filme e dessa [macro] história. Acho que isso transparece bastante na forma que tentei filmar os corpos, há um interesse pelo micro, sabe? Que não tá distante do campo político, discursivo e da política.

Aos Cuidados Dela (2020)

Renan: Você vem produzindo uma pesquisa no cinema que transita entre o documentário, a autobiografia e a questão nipônica. Em Aos Cuidados Dela (2020), você tem um olhar bem singular para sua avó e para a relação estabelecida entre você, ela e a casa dela. Pensando nesse curta-metragem, conjuntamente ao Bem-vindos de novo, como você observa essa sua investigação e quais aproximações ou distanciamentos você consegue apontar em relação aos dois filmes?

Marcos: Aos Cuidados Dela surgiu dentro do processo de criação do longa, que levou cinco anos para ser realizado. Depois de filmar minha avó algumas vezes e de ter feito várias etapas de filmagem com ela, os produtores perceberam que ela era uma grande personagem. Eles começaram a falar algumas coisas como: “pô, pensa aí num curta ou em alguma coisa que a gente possa fazer especificamente com a sua avó, já que o longa está centrado mais na experiência dos meus pais”.

O que veio muito forte, na época, era o fato de que, sempre que eu perguntava a respeito da história dela… Minha avó fala português de uma forma “precária”, vamos dizer assim. Ela mistura muito com o japonês. Se a gente pensar num recorte histórico, é o jeito de falar de uma geração. Ela sempre repetiu as mesmas histórias. Só que o jeito dela de contar não dava conta do que era. Apesar dela contar de uma forma engraçada, espirituosa, sentia que não dava conta de traduzir o que tinha sido sua experiência enquanto uma mulher imigrante japonesa no Brasil.

Então, comecei a pensar num filme que pudesse trabalhar essas questões que ela me falava, de modo a dar expressão do que havia sido ou do que foi essa experiência. A minha participação no filme como um dos personagens era algo que estava pressuposto, afinal de contas, não tinha como ser um ator ou qualquer coisa assim, né? Porque, quando eu perguntava as coisas para ela, era o neto dela. Essa dimensão entre filme e realidade, para ela, não existia muito. Ela foi uma pessoa que trabalhou para caralho desde criança dentro de uma estrutura patriarcal. Acho que isso está ali no curta. Minha avó é a força motriz que impulsionou a realização do filme e, junto com ela, queria fazer algo que homenageasse a presença dela no mundo.

Já a conexão que vejo com Bem-vindos de Novo é a dimensão do trabalho. Essa questão é uma espécie de “herança ambígua” que recebi, que meus pais receberam e que vem da geração dos meus avós. O curta é um filme que tá tentando traduzir o que foi a experiência da minha avó de uma maneira um pouco mais direta. Já o longa está partindo do que foi a experiência dela para chegar no que é (e no que foi) a experiência dos meus pais, na minha própria experiência.

Renan: Você percebeu que a feitura do filme mudou a relação com seus pais? Como eles receberam o filme? O contato com eles te fez repensar o modo como você estava filmando ou pensando o longa?

Marcos: Vou começar pelo final. Acho que todo mundo, ou pelo menos…  Não sei. Talvez esse seja um papo que eu precise ter com outras pessoas que já fizeram filmes… Conversei um pouco com a Maria Clara Escobar a respeito disso: todo o processo de realização do filme tinha essa ambiguidade entre ver meus pais e filmá-los. Às vezes, sentia que queria vê-los porque queria fazer o filme com eles, sabe? Uma coisa que parecia estar instrumentalizando a relação. Era algo como: “preciso ver meus pais porque eu preciso filmar com eles determinado acontecimento, sabe?” Tinha uma certa urgência, por assim dizer, de que, numa situação de não estar fazendo o filme, provavelmente, eu não iria naquele momento específico, viajar 600 km para o Mato Grosso do Sul, para filmar determinado acontecimento. Acho que essa ambiguidade está no filme, pois ela atravessa nossa relação.

Durante todo o processo, eles sempre foram muito abertos para o que eu estava fazendo. No entanto, com toda a carga da história, tinha uma certa dose de culpa, uma dose de “vou dar uma força lá para o meu filho, ele tá fazendo um filme, eu quero que esse negócio seja bom, que o filme aconteça, que seja um sucesso”, tudo isso. Mas, tem um outro lugar, que é o ponto de vista deles. Meu pai sempre me perguntou: “E esse filme? O que é?”. O fato de termos demorado muito tempo para concluir o filme ajudou no processo deles de entenderem o que estavam fazendo ou o do que é um filme. Acredito que, antes, eles ficaram por muito tempo achando que “é a pesquisa de mestrado do meu filho, ele vai passar lá para a professora dele e tá tudo certo”. Um outro entendimento foi sendo construído aos poucos. 

Quando eu estava para fazer o corte final do filme, na etapa anterior, precisei mostrar para eles. Viajei até a casa da minha irmã mais velha, onde eles estavam morando, e o exibi. Meu pai ficou visivelmente incomodado e achou que estava muito exposto. Era uma reação imediata, por exemplo, naquela cena que ele chora, comentou: “Isso aí eu acho que ficou muito pesado, hein?”. Já minha irmã e minha mãe chegaram e falaram: “É isso mesmo tudo certo”. A partir do olhar delas, como filha e como esposa, talvez como mulheres, entenderam que “tá tudo certo, você estourou, mas tá tudo certo, é normal.” Como se fosse uma espécie de aceitação dessa fragilidade ou desse sentimento que ele demonstrou, sabe? Minha irmã e minha mãe salvaram essa situação.

Pouco a pouco, com o filme circulando, mandava para eles quando ia ter exibição, quando alguém escrevia alguma coisa sobre. Compartilhava com eles. E aí, acho que as outras ideias que o filme trabalha foram sendo incorporadas. Essas leituras de que a história deles faz parte de uma história do país, de algo muito mais amplo, foram ideias bastante complexas para eles entenderem. Ou que o meu pai sacasse, por exemplo, que estava reproduzindo comportamentos patriarcais. Ou o que significa ele ter a liberdade de poder exibir a vulnerabilidade dele e o que isso significa para um homem. Acho que essas e outras ideias foram, pouco a pouco, sendo colocadas, conversadas. O filme permitiu que esses papos acontecessem. No final, acho que melhorou a nossa relação. Ao ponto de nós podermos falar sobre coisas complexas, coisas importantes. Não sei como seriam se o filme não existisse.

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