Trança | Dossiê #1 – A Rainha Diaba (Antonio Carlos Fontoura, 1974): Um caleidoscópio endiabrado

Trançar¹. Processo místico, misterioso, primordial e ancestral, onde o um torna-se três, então o três divide-se, tece e, novamente, torna-se um, composto de uma unidade completamente outra da que antes era. 

Fortalece-se a individualidade para complexificar um todo. 

Repito: fortalece-se o 1 para que o 3 seja possível. 

Repito: fortalece-se o 3 para que o 1 seja possível.

Vamos ao passo-a-passo:

  1. reconhecer o um: olhar e prepará-lo, desfazer nós. 

A Rainha Diaba (1974), de Antonio Carlos da Fontoura, é um marco: um blaxploitation produzido em plena ditadura brasileira, que tem como protagonista uma travesti, a Rainha Diaba, interpretada com absoluta magistralidade por Milton Gonçalves (salve) – que inclusive foi premiado pelo papel quatro vezes no mesmo ano. 

O longa desenvolve sua trama a partir de entrelaçamentos e desenganos, entre a lealdade ou a trairagem da gangue da Rainha, chefona do tráfico da cidade, que tem seu poder ameaçado quando a polícia começa a procurar um de seus capangas e xodó Robertinho (Arnaldo Moniz Freire). Perante a situação, ela convoca Catitu (Nelson Xavier), seu fiel escudeiro (x9 do carai), para forjar um novo suspeito que seja preso no lugar do seu protegido e também descobrir quem está embaçando seus esquemas. Filme de gangue, naipe máfia, com direito a arte com cores maravilhosas, o bom blaxploitation com sangue explodindo na cara, bang-bang e assalto, gírias bregaruxas da época, trilha sonora impecável pelo genial compositor Guilherme Vaz (algo crucial para o gênero que o filme se filia) e uma captação terrível de som como todo bom filme do cinema marginal.

  1. Fazer do um três.

Podemos estabelecer três centros, sendo todos representados por protagonistas femininas fortes e contraditórias (amém, igreja) que são as grandezas vetoriais do filme, responsáveis por todas as reviravoltas e ápices narrativos.

São elas:

Vetor #1: Velocidade – Isa Gonçalves (Odete Lara) 

A Rainha Diaba (1974)

Isa começa como uma personagem secundária quase irrelevante. Ela é uma mulher da noite, cantora de cabaré, que sofre um relacionamento abusivo e violento com Bereco (Stepan Nercessian), um belo de um babaca que foi o escolhido para servir de cobaia pela gangue da Diaba. Ela é o arquétipo da mulher branca periferica marginalizada que vive sendo explorada pelo amante-cafetão. Esse tipo de personagem é muito comum no nosso cinema (ainda mais nessa época e movimento) e acaba seguindo um certo padrão no modo de representação: a vemos sempre como uma vítima, com um pão com mortadela na mão e toda arrebentada pelo “namorado”, sendo lida cruelmente como uma figura desgastada e inútil. Fica aí também a provocação: qual a função dessas mulheres nas narrativas? Por que só a vemos sofrer e apanhar com poucas roupas por um cara mais novo? Porque a construção de algo degradante sobre esses corpos? E como esse filme, especificamente, lida com isso?

Na trança, Isa representa um plano de fundo, o polo mais constante da narrativa, a atmosfera, o núcleo de personagens onde o filme se desenrola, quando vemos as consequências e ações do núcleo principal (gangue e cabaré da diaba). Para além disso, convoco a personagem para dizer da relação do filme com o arquétipo da figura dessa mulher fodida, desgastada e mal paga e como a personagem, aqui, recria uma parte dessa imagem.

Vetor #2: Força – Rainha Diaba (Milton Gonçalves) 

A Rainha Diaba (1974)

Diaba é a grande força do filme. Em uma atuação em outro tom, completamente oposto às demais, a personagem está sempre em outro ritmo na fala e na postura, sempre de maneira mais firme e lenta, a Rainha fala em seu próprio tempo, em outro jogo narrativo, que o  corpo de Milton Gonçalves propõe e subverte. Ela é a base e a negação do que o filme busca ou se filia. A pulsão e inovação vem de sua performance e da atmosfera que a rodeia e como esta se apresenta.

Já na primeira cena podemos desvendar o grande gesto do filme em relação a Rainha (ou melhor seria dizer o contrário?): primeiro, temos a abertura de colagem e glitter maravilhosa ao som de Índia, de Cascatinha e Inhana, que vale ser mencionada aqui, e vemos um bordel em sua rotina diária. Atraentes mulheres servindo homens nojentos. Violeta (Yara Cortes) entra em cena com cara de dona do quengaral e manda todas irem embora, pois os homens da Rainha estão chegando. Vemos os personagens um a um, entrando em plano com pose de dono da porra toda. Cada um que aparece nos faz pensar: o chefão é esse aí. Muito se fala na Rainha, que não aparece. O suspense vai aumentando, eles mostram a arma, agem com grande compostura. 

E a Rainha? O que ela é? Será que é a amante de um deles? Toda a narrativa indica uma tensão no ar e nos faz acreditar que talvez esse seria o caminho mais provável…“A diaba está esperando”. Carai é agora. Todos levantam com um sorrisinho no rosto. São todos seus clientes? Será? Passam por um corredor, entram em um sobrado com um cara armado na porta. As armas ficam pra fora. Corta. Em primeiro plano, dois belos pares de pernas sendo raspadas, ao fundo os Goodfella’s cabisbaixos e humildes. Uai, que passa? Vemos o belo rosto da Rainha fazendo hora com a cara desses boy todos, deitando e se espreguiçando, fazendo hora e mostrando, a nós e a eles, quem é que manda.

A personagem sempre aparece com grande evidência, seja no quadro, na orquestração do tempo da narrativa, e o mais interessante: ela sempre está sendo cuidada. Em todas as cenas, a rainha está sendo venerada, cuidada e acolhida pela “seu povo” (citando a icônica frase: Qual rainha que não pode confiar em seu povo?), outras travestis e corpos desviantes não-normativos que são, de fato, as únicas que a fortalecem na trama e na narrativa, elemento queer do filme. 

A Rainha também é o desvio. Sua presença acaba por desmontar a tentativa de apoderar-se do filme por uma perspectiva masculinizada e machista, como na primeira cena, em que se apresenta todos os personagens masculinos, um por um, como se fossem os grandes chefões mafiosos, até estarem juntos da presença da Diaba, que desbanca toda a pose de machão dos capaganda, os fazendo esperar toda produzida e maquiada cortando suas unhas lentamente. 

Vetor #3: Deslocamentos – Zezé Motta e Violeta (Yara Cortes)

#3.1: Zezé Motta 

A Rainha Diaba (1974)

Enquanto Rainha e Isa representam duas grandes bases opostas que preservam o movimento da trama  e aparecem quase como um desvio, um escape ao feminino quando o masculino tenta se apoderar da trama, Zezé Motta – em uma aparição pontual, mas extremamente significativa -, que interpreta a namorada de um dos bandidos, é mandada para fora do quarto por outro homem. Nesse momento, tudo se dilata. Por alguns minutos, a vemos saindo lentamente do cômodo, encarando olho-a-olho os capangas e marcando a presença de sua imagem, dominando o filme por alguns instantes para que eles não se sentissem tão poderosos assim. 

# 3.2: Violeta

A Rainha Diaba (1974)

Violeta é uma das capangas e braço direito (traíra) de Diaba que toca o bordel. Ela aparece poucas vezes no filme, sempre em um lugar mais servil (mesmo mantendo sempre uma postura imponente). No entanto, ao final do filme, quando as demais forças femininas, aparentemente, foram tiradas de cena, ela envenena todos seus comparsas e toma o poder. Saindo na frente de toda a prepotência dos homens da gangue, dando uma grande reviravolta. 

Ambas presenças desviam o centro do poder do filme quando Diaba e Isa não estão em tela, mantendo a direção do movimento do filme próximo à força feminina.

  1. Tecer ou fazer do três um

Separados os fios, é preciso a transmutação. É aqui que o todo se permite ao retorno para o um. Temos as três grandezas e, ao entrelaçamos-as, percebemos que o trans/çar das coisas possibilita um não desvio da trama para o masculino. O três fortalece o um, tomando posse do poder do filme e subvertendo os lugares esperados e vários dos arquétipos.

Observe: 

Isa, que seria a songa monga da história, começa aos poucos a ganhar espaço e tempo de cena. Sua imagem vai se distanciando de Bereco e começamos a vê-la cantando e performando, linda e, de alguma forma, livre, ao invés de estar em seu quarto esperando pelo boy. O centro de poder, que antes era posse do homem, virá dela. Bom, a história se mantém, ainda é uma mulher submissa naquela narrativa, no entanto, ela ganha espaço de cena para que outras camadas fílmicas registrem e reforçem mais sua força do que sua fraqueza. Como no meio para o final do filme, quando Isa solta mais a voz e nos presenteia com uma cena quase metalinguística sobre a trama, onde aparece maravilhosa, desejada e desejante, toda de verde (menção direta à maconha, grande elemento de desejo e conflito do filme) cantando a música Molambo, de Nelson Gonçalves, que narra exatamente o cerne de seu arquétipo em um auge de sua entrega a figura ou a subversão dela. 

“Eu sei que vocês vão dizer

Que é tudo mentira

Que não pode ser

Porque depois de tudo

Que ela me fez

Eu jamais deveria aceitá-la outra vez

Bem sei que assim procedendo

Me exponho ao desprezo de todos vocês (…)”

Zezé e Violeta, como foi mencionado anteriormente, deslocam o foco do filme. A postura de ambas invade a narrativa, não deixa com que os caras vençam. Elas tomam a narrativa de assalto. São o desvio, as guardiãs das frestas, que garantem com que a porta não se feche (para que?) e a abertura dos espaços se mantenha. 

E, finalmente, a Rainha é nossa grande sustentação de tudo. Sua força ergue e baseia todas as outras. Rainha é vista de maneira peculiar sempre com seu povo, um grupo de travestis guardiãs e leais a sua rainha. A Rainha nunca perde sua força. Todo ar do filme é entregue a ela e aos seus. Suas aparições, mesmo sempre econômicas e pontuais, são o grande palco e reverberação da tomada de poder e firmamento dele na trama, é quando vemos que a narrativa ganha e retoma seu sentido. Mesmo em sua morte, ela cria um espaço e faz seu nome, não somente de toda a narrativa, como das outras duas pontas da trança citada acima. Devora, torna-se UMA, sendo todas e nenhuma, a mesma sendo completamente outra. 

A Rainha Diaba (1974)

A Rainha entrega sua performance e ocupa todo o quadro e tensiona até ao máximo o tempo diegético. Os corpos marginalizados aqui esticam toda a lógica formal, vão ao limite do tensionamento para criar um espaço – que sempre é negado aos seus corpos e imagem -, um espaço minimamente suficiente para existir. 

Usam das imagens padrões e da ação da trama, do sangue e do bang-bang que o público está sedento para ver, apenas para que olhem para outro lugar, outra existência. Achou que a Rainha ia morrer com o corte de navalha de um bostinha qualquer? Não senhor. Ela existe e vai morrer com toda a grandeza, devorando a cena pela espreita, se rastejando pela beirada do quadro enquanto Violeta celebra sua falsa vitória. Rainha – uma fênix que ressurge ensanguentada, atira na vagaba e estremece seu corpo, faz sua dança-espetáculo de morte. Ela usa e subverte absolutamente o que querem de sua imagem, morre, mas vence e derrama-se por toda extensão do quadro. Ocupa. Faz com que até o último respiro de vida do personagem reverbere. É preciso ver-lhe. 

Repito:

Fortalece-se um para que o todo seja possível.

¹  Faço uso e referência a ideia e conceito explorado amplamente pelo artista Tunga. 

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