Fé cega, faca amolada | Dossiê #1 – A Rainha Diaba (Antonio Carlos Fontoura, 1974): Um caleidoscópio endiabrado

Tomo emprestado para este texto o título da canção de Milton Nascimento e Beto Guedes, lançada em 1975, um ano depois de A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos da Fontoura. Fé cega, faca amolada começa com uma levada de violão ecoando sozinha. Então, entram a pandeirola e o sax-soprano, depois chega a voz de Milton junto ao baixo e o bumbo da bateria. O sax quase diz o mesmo verso que a voz, mas deixa pela metade, inventa outros finais, segue a própria toada. Com a entrada da voz de Beto, a de Milton se anima a cantar coisas fora da palavra. A música vai se tornando cada vez mais populosa e variam os modos de presença de cada elemento. A base, que se sustenta e permanece, faz chão para este acúmulo de eventos simultâneos. 

Peço que reparemos A Rainha Diaba como se escutássemos essa música, notando como se irmanam em seus modos de emergir, seus arranjos de estrondo, suas delicadezas brutais. 

Por estas duas lentes, a fé cega e a faca amolada, exercitemos os sentidos.

I. 

A navalha é um instrumento de corte.

A navalha é um instrumento de corte dobrável.

A navalha dobra-se sobre si mesma para ocultar o aço.

A navalha desdobra-se ao abrir-se em lâmina.

A navalha, como o cinema, tem como impulso elementar retalhar o mundo em pedaços. 

Aparar os fios, alterar um rosto, atacar o inimigo, deixar uma marca, fazer cicatriz, a morte, enfim, entre os possíveis. A Rainha Diaba é coreografada no fio da navalha. É este o recurso que edifica suas imagens. O filme se faz em desvios. Em dobras. O ocultamento e a aparição da lâmina, a navalha em pleno movimento: justo quando pensamos saber por onde estamos indo, a direção se curva, a rota se quebra ao meio.

A Rainha Diaba (Milton Gonçalves) comanda o tráfico de drogas em determinadas regiões da cidade do Rio de Janeiro. Ao seu redor, uma pequena tropa de admiradoras, negociantes, capangas e amantes se movimenta. A Diaba controla o mercado, de dentro de seu quarto, num bordel da Lapa. A primeira cena do filme se passa na ante-sala deste quarto. Violeta (Yara Cortes) levanta a agulha do toca discos e suspende a música, anunciando: “Por hoje é só, meninas, as visitas da rainha estão chegando”. Tudo se concentra em torno da Rainha: as figuras, as afetações, todos aqueles homens num mesmo cômodo à sua espera, temor e desejo à roda de sua presença. 

A reunião acontece porque um problema desponta. A Diaba precisa fabricar uma farsa. A polícia está de olho em um de seus rapazes. É preciso, então, forjar um criminoso para desviar o foco da perseguição. A tarefa é entregue à Caititu (Nelson Xavier), dando início a uma galeria de traições que se estende pelo filme.

II. 

De onde venho, usa-se a expressão “quando é fé” como sinônimo de “de repente” 

– Ela sempre aparecia, quando é fé, sumiu. 

Associar a fé ao inesperado, à uma variação súbita, à uma certa força abrupta. 

Vincular a fé – íntima ao universo das certezas – ao terreno das dúvidas. 

O estatuto da fé aparece em A Rainha Diaba regido por essa suspeita. No meio de uma festa a Diaba anuncia: “Não sei se posso confiar em alguém numa hora como essa”. “Uma hora como essa” nunca cessa em A Rainha Diaba, sua duração inteira é esse instante em que se nota o risco iminente, o prenúncio do perigo, e é justo aí que o filme deposita sua confiança. A cena anterior acredita na cena seguinte por desconhecê-la. 

Milton Gonçalves nos faz acreditar, de repente, no espanto de cada movimento. Em seu exercício de atuação, um fabricador de crenças. Exercício que se firma numa performance oxímora. Seu corpo, seus olhos e sua boca orquestram uma doçura feroz, uma cuidadosa violência. A cruel ternura de sua voz se faz presente mesmo quando não está em cena. Percebemos o assombro manifesto nos olhos de cada ator quando o nome da Diaba é pronunciado: é o posicionamento dela que dita o cálculo das rotas e retinas. 

Cumprindo o pedido da Diaba, Caititu encontra um sujeito na medida da encomenda e dá-se início à fabricação do criminoso. O rapaz atende pelo apelido Bereco (Stepan Necessian), e torna-se mais uma vítima da fé cega, quando acredita na fama fabricada e confia que pode tomar o posto da Diaba. E Caititu atraiçoa, ao mesmo tempo, Diaba e Bereco, crente, ele mesmo, que poderia ocupar o comando das bocas. Trama com os outros capangas da Diaba que é hora de acabar com o reinado e garantir acesso direto à mercadoria. 

III.

Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada 

Agora não espero mais aquela madrugada 

Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada 

O brilho cego de paixão e fé, faca amolada

IV.

Caititu comunica Bereco sobre o confronto final, entregando a ele a incumbência da morte da Diaba. Bereco e Diaba só poderiam se encarar no desfecho do filme. Seguiam apartados, até então, afetando-se em paralelo, enquanto a arquitetura das imagens se preparava para a colisão. A última sequência se concretiza no encontro. O encontro de Bereco com Diaba e o encontro de Diaba com a navalha, que lhe atravessa o pescoço. No ato de traição cabal, sua própria arma, guardada na cabeceira da cama, lhe faz jorrar sangue. 

Dever cumprido, Bereco retorna ao grupo e é imediatamente morto por Caititu e os demais capangas. Todos festejam a morte da Diaba e a conquista do controle do tráfico. Entre eles está Violeta (Yara Cortes), a mesma mulher que levantou a agulha da vitrola na primeira cena do filme, e agora se prepara para suspender a música mais uma vez. Envenena o brinde dos caras e assiste enquanto, um a um, tombam mortos com suas taças vazias nas mãos. A música, entretanto, vai retornar mais uma vez. 

Violeta se assusta com a imagem da Diaba, que ressurge acompanhada a um som estridente de guitarra. As notas rápidas se contrapõem ao corpo lento da Diaba que se arrasta pela parede, junta-se ao dedilhado das cordas e ao som da garganta da Diaba que se engasga com seu próprio sangue. O trabalho da navalha empunhada por Bereco demora a cumprir sua obrigação. A Diaba custa a morrer. 

Violeta tenta lhe fazer uma pergunta e é interrompida por um tiro na testa. A Diaba assegura que a aniquilação é completa. Como gesto final, coroa a pilha de corpos no chão com o seu próprio corpo endiabrado, que desaba por último. A Rainha Diaba converge os acontecimentos à sua volta até o fim, até que os corpos, reunidos, não sejam quase nada senão molduras, para seu próprio sangue que ainda brota.

Share this content: