A vitalidade da memória de uma época: uma conversa com Antonio Carlos Fontoura | Dossiê #1 – A Rainha Diaba (1974): Um caleidoscópio endiabrado

Após quase 50 anos de realização de A Rainha Diaba (1974), o filme de Antonio Carlos Fontoura foi digitalizado em 4K por meio de uma iniciativa coletiva do Janela Internacional de Cinema do Recife com o Cinelimite, a Mapa Filmes e o Laboratório Link Digital. Exibida na Mostra Ladrões de Cinema, durante a edição especial do festival pernambucano em 2022, a nova cópia do longa protagonizado por Milton Gonçalves nos mobiliza a fomentar e criar materiais e perspectivas críticas dessa peça importante para a cinematografia (cuir) brasileira. Em entrevista para Lorenna Rocha, editora-chefe do camarescura, Fontoura compartilhou suas memórias sobre o processo de criação de A Rainha Diaba e seus pensamentos acerca da digitalização e do reencontro da Diaba com as espectadoras e espectadores contemporâneos.

Lorenna Rocha: Antonio, queria começar a entrevista trazendo um comentário que você fez durante uma conversa realizada no contexto de exibição de A Rainha Diaba (1974) pelo Cinelimite. No debate mediado por Glenda Nicácio, você recordou que realizou o filme aos 33 anos, num momento muito bom da sua vida. Queria saber como foi fazê-lo na década de 1970 e como o período afetou a criação do filme… 

Antonio Carlos Fontoura: A década de 1970 foi um período muito libertário no mundo inteiro e acredito que essa liberdade tenha sido muito importante para meu processo de criação. A Rainha Diaba foi um filme em que me senti bastante livre como criador, não me limitei em nenhum momento ao fazê-lo. Me entreguei realmente ao tema, à história, à minha função de diretor, para tudo que estava implicado ali dentro. Recentemente, passei por uma situação engraçada: um festival de São Paulo, que quer exibi-lo, pediu uma foto minha para a divulgação. Aí, comecei a olhar minhas fotografias e pensei: “Não vou mandar uma foto minha de agora não! Quem fez esse filme foi um garoto de 33 anos, em 1973.” [risos] Então, mandei uma fotografia daquele garoto dos anos 1970, porque foi ele quem descobriu essa história toda. 

A gente vai mudando, né? É bacana ver que o filme é uma memória de uma temporada, de uma década, de um sentimento. De uma memória minha, daquela pessoa que fui na época em que o fiz. Vejo as fotos do set, de tudo, e percebo que A Rainha Diaba foi feito com muita alegria, muita liberdade. Tanto que, por exemplo, levei onze semanas filmando. Hoje em dia não se faz mais um longa-metragem de tantas semanas… A coisa estava realmente fluindo. A gente não tinha essa pressa de acabar rapidinho, mas de viver cada momento.

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: Interessante seu comentário sobre a década de 1970, porque, nesse mesmo período, estávamos enfrentando uma conjuntura política muito delicada no Brasil: a ditadura civil-militar. Fico pensando se esse contexto afetou a produção ou distribuição de A Rainha Diaba. Vocês enfrentaram alguma situação com a censura, por exemplo? Um filme bastante desviante para a época. Lembro até que você comentou no Janela Internacional de Cinema do Recife que o filme era tão “porra louca” em algum sentido que nem os censores o tinham entendido… Você poderia falar mais sobre isso?

Antonio Carlos Fontoura: Não acho que era “porra louca”, mas fora da caixa, entende? Provavelmente, a censura estava preparada para interditar filmes com protestos mais nítidos, mais diretos e políticos, com mensagens do tipo “estamos sendo massacrados”. O meu massacre era um bando de travesti massacrando uma mulher! Bom, felizmente, acho que eles não conseguiram ler A Rainha Diaba. O tipo de abordagem dele pode ser dito como político, não tenho dúvidas. Mas não era claramente um “filme político”. Na verdade, era muito precursor, quer dizer, era um filme LGBTQIA+, numa época em que ninguém falava disso. Aquilo que você chamou de “desviante”, né? Acho que isso permitiu que ele passasse pela censura. 

Não tive nenhum problema durante as filmagens, até porque raramente ele acontece. Poderia ter acontecido com a censura, mas em nenhum momento o filme foi censurado. A única coisa que entendo como censura nele foi um acontecimento externo. Quer dizer, não foi exatamente de censura… Mas, quando A Rainha Diaba ficou pronto, fiz uma sessão para uns amigos, cineastas, etc, e uma dessas pessoas era o João Gabriel, um diretor francês refugiado aqui no Brasil. Ele ficou perplexo com o filme. João tinha muita ligação com o Festival de Cannes e ligou para uns amigos dele, dizendo que tinham que colocar A Rainha Diaba na competição. Então, o cara que organizava o festival pediu para que lhe fosse enviada uma cópia. 

Como eu não estava com a visão de que o filme poderia ser obstado por alguém… Deveria, né? Mas não tinha e acabei entregando para o Itamaraty fazer o envio. Eles bloquearam, não enviaram. Devem ter pensado: “Essa não é a imagem do Brasil que queremos que esteja em Cannes.” O que aconteceu foi que o organizador do festival me escreveu dizendo que não tinha chegado a cópia e foi aí que me toquei. Depois acabei conseguindo mandar por outros caminhos. Infelizmente, quando A Rainha Diaba chegou lá, já havia passado a etapa de seleção para a mostra principal, mas acabei sendo selecionado para a Quinzena dos Realizadores. Acho que essa foi a única interferência indireta do governo, da ditadura, daquela barbaridade toda.

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: Quando estava lendo alguns textos sobre A Rainha Diaba, percebi que é muito comum fazerem uma aproximação entre e o Copacabana Me Engana (1968), sobretudo quando tenta-se falar um pouco sobre sua trajetória enquanto diretor. E eles são filmes muito diferentes, né? Parece dois Antônios, com interesses bem distintos. Como é então esse deslocamento do asfalto, de Copacabana, para os subúrbios cariocas?

Antonio Carlos Fontoura: Acredito que se você pegar os oito longas que fiz, parece que foram feitos por oito pessoas diferentes. Não sei se todos os cineastas são assim, talvez não. Mas, cada filme que fiz reflete um momento da minha vida. Tem uns tantos outros que não fiz, né? Os que conseguiram ultrapassar as dificuldades de produção, dinheiro, do momento, de tudo, foram feitos. Entre 1968 e 1973, período que realizei os dois filmes, teve um que não fiz e, de alguma maneira, também não explica nada, porque é diferente demais de Copacabana Me Engana e A Rainha Diaba.

Em 1971, havia um projeto que nunca cheguei a fazer chamado A Cangaceira Eletrônica. Uma história de cangaço na Brasília contemporânea, acho que ele seria bem estranho também. Nele havia uma coisa muito interessante, que reverberava minha forte ligação com as artes plásticas. Quem criou o cenário e o figurino do filme foi Hélio Oiticica, que era muito meu amigo. 

O tipo de trabalho que Hélio trouxe ao A Cangaceira Eletrônica estava muito relacionado ao que ele fazia nas artes plásticas. De alguma maneira, isso refletiu em A Rainha Diaba. É a única transição que vejo, porque, curiosamente, Hélio teve um papel dentro de A Rainha…. Não trabalhei com ele no filme, mas também não chamei um diretor de arte, estava ali com outro artista plástico ocupando a função, pintor tanto quanto o Hélio, e isso foi muito importante para o visual de A Rainha Diaba.

Lorenna Rocha: Queria te fazer uma pergunta bem simples: quem é a Rainha Diaba? Na entrevista com a Glenda Nicácio você afirma que, antes de tudo, é o Milton Gonçalves. Mas tem uma história bastante curiosa, que é como você chega ao enredo e a essa personagem. Você poderia compartilhar isso conosco?

Antonio Carlos Fontoura: Muita gente diz que me inspirei na Madame Satã para criar a Rainha Diaba, mas isso não é verdade. Não me passava pela cabeça a Madame Satã. Inclusive, se você for ver, a Madame é uma figura mística. Quer dizer, é uma figura importante, mas ele-ela não era um bandido como a Rainha é, não era um traficante, não era nada disso. A Madame Satã era uma figura do mundo da Lapa que, na verdade, era quase uma espécie de Leão de Chácara de boate. Aquelas boates da Lapa era ele-ela que tomava conta! O que que ele-ela tinha de semelhante? Era homossexual, era violento e era lutador, mas não era uma criminosa como a Rainha Diaba é. Pelo que eu saiba, Madame Satã nunca foi traficante. 

Não era uma inspiração, até porque, a Rainha Diaba, de certa maneira, surge quase que acidentalmente no filme. Meu projeto não era sobre a Rainha. Se você ver todo sangue que o filme tem… O que eu queria de fato fazer era A Guerra da Maconha. E a grande questão dele era: “Quanta gente matou ou morreu por esse meu barato aqui? Qual é o tamanho dessa violência?” Esse era o tema. No entanto, quando fui escrever o roteiro, percebi que não tinha o suficiente. Copacabana Me Engana era um filme sobre a minha esquina, né? Alguém até já falou que era tipo um nouvelle vague brasileiro, você, seus amigos, as pessoas ali… A Rainha Diaba é o oposto disso. 

A partir de um conceito, um desejo, uma necessidade de falar sobre isso, pensei que precisava de alguém que me ajudasse a escrever o roteiro, uma pessoa que tivesse mais visão desse submundo das drogas e do crime. Senão ia ficar uma coisa muito “de fora”, sabe? Através da Odete Lara – que também está em A Rainha Diaba -, com quem havia me casado, mas já não era mais nessa época, conheci o Plínio Marcos. Falei para ela: “Odete, quero que você me apresente aquele seu amigo, Plínio Marcos, porque sei que ele conhece esse mundo”. Conheci o Plínio por conta de Os Dois Perdidos Numa Noite Suja e Navalha na Carne e via que ele tinha proximidade com essa temática. 

Fui a São Paulo encontrá-lo, que disse: “Olha, posso te entregar uma história em cima das coisas que você está me dizendo, mas queria te fazer uma pergunta.” E respondi: “Sim.” E ele continuou: “Quando era garoto, eu circulava muito nas docas de Santos, onde o controle da maconha era feito por uma figura que a gente chamava de ‘Rainha Diaba’. Ela era uma bichona muito violenta, que controlava a mão de ferro o tráfico das docas. Posso colocá-la como sendo a personagem principal da tua história?” E eu falei: “Claro!” Então, se a Rainha Diaba veio de algum lugar foi das docas de Santos e não da noite da Lapa. Curioso isso, né?

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: É curioso, sim! Essa questão de tentar se aproximar de algo que você tinha um distanciamento… Particularmente, acho o filme hiperviolento. Mas, não estou fazendo um julgamento moral quando falo isso, muito pelo contrário: acredito que tem algo muito singular em toda essa coisa excessiva, todo esse sarcasmo, o jeito de falar dos personagens que por vezes não se entende muito bem… A Rainha Diaba tem um traquejo particular, que acaba modificando radicalmente esse ambiente de violência. Para mim, a cena mais marcante de todas é a da tortura, porque nos coloca num lugar super complexo. Estamos acompanhando uma mulher sendo extremamente violentada e é inescapável rir de tudo aquilo, por toda confusão, todo o burburinho presente, feito quando uma das personagens fala “Ai, Diaba! Ela me cuspiu de novo! Acho que ela não gostou de mim!”.

Antonio Carlos Fontoura: Tem um subtexto muito interessante naquela cena, ela foi muito discutida. Porque são travestis, torturando uma mulher. Isso é interessante porque é uma outra camada né?! Não são homens… A gente até apelidou que elas eram as Diabetes, as discípulas da Diaba. Isso dá uma outra conotação para a cena.

Lorenna Rocha: A violência nessa cena, de alguma forma, não parece estar ligada a um desejo por verossimilhança…

Antonio Carlos Fontoura: O filme não está ligado à verossimilhança! Isso talvez tenha ajudado ele a passar [pela censura]. Porque, se você for analisar A Rainha Diaba à distância, ele não se passa em nenhum lugar muito específico, mas num mundo que é próprio do filme. Você não vê exatamente o Rio de Janeiro ali. Se passa num mundo próprio que, ao mesmo tempo, é o Brasil. 

Lorenna Rocha: Queria continuar a conversa sobre a questão da representação da violência, a partir da relação entre Bereco (Stephan Necessian) e Isa (Odete Lara). A personagem de Odete Lara, após ter sido violentada pelo seu namorado, vai ganhando contornos muito interessantes. Na verdade, todas as personagens femininas e travestis têm uma contundência bastante particular. Apesar de estarem em um ambiente muito masculinista, da bandidagem, do roubo, do tráfico, elas podem até parecer que estão num lugar secundário, mas não estão! Cada uma a sua maneira movimenta a narrativa. Lembro, por exemplo, da aparição de Zezé Motta. Queria ouvir você sobre essas personagens, para além da Diaba.

Antonio Carlos Fontoura: Quem sobrevive e não sobrevive ao mesmo tempo é a Diaba. Acho a virada no final muito boa, porque, de todos aqueles homens, quem fica é uma mulher [Violeta, interpretada por Yara Cortes] que acaba envenenando eles todos. Não me lembro o nome dela agora, mas ela é uma atriz sensacional. No final, a Diaba vai lá e acaba com ela, ressurgindo quase que magicamente. Acho fantástico, porque Violeta é uma mulher muito forte, mais do que todos aqueles que acabam matando uns aos outros, porque é ela quem fica. “Eu sou a rainha do mundo! A única rainha sou eu!” Não é, porque a própria Rainha vai lá e acaba com ela, mas acho interessante essa força. A Odete [Lara] vai se empoderando ao longo do filme. É muito bacana a relação dela com o Bereco, porque as duas canções que ela canta explicam o motivo do porque ela está com ele…

Lorenna Rocha: São cenas muito bonitas, inclusive…

Antonio Carlos Fontoura: Sim! “A mulher que ao amor não se entrega, não merece ser chamada de mulher”. A personagem ganha uma firmeza com isso…

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: Há um senso de coletividade muito singular no filme. Durante o Janela Internacional de Cinema do Recife, conversei muito com Rita Vênus [uma das curadoras do festival] sobre A Rainha Diaba em comparação com o Madame Satã (Karim Ainouz, 2002). Parecia que havia uma diferença importante entre a Diaba e a Satã, enquanto personagens trans. Para nós, era muito evidente a coletividade que acompanha a Rainha do início ao fim do filme, enquanto o longa do Ainouz apresenta a personagem interpretada por Lázaro Ramos de forma muito individualizada. As Diabetes abraçam, tramam e festejam com e contra a Rainha. Acho linda aquela sequência da festa que a Diaba tá toda tristinha e temos aquele corredor das súditas… Como você lê essa dimensão coletiva de A Rainha Diaba? É uma reverberação do processo de criação do filme?

Antonio Carlos Fontoura: Tem uma frase ótima nessa cena… Ela dá uma festa para o povo dela, né? E quem é o povo dela? São todas aquelas convidadas para festa. Naquela hora, ela se assume como rainha. Não é nem bandido, nem criminoso, é a Rainha, com uma coroazinha na cabeça recebendo os convidados da cidade inteira. Tem convidados da Zona Sul, da Zona Norte, do subúrbio… Até que uma hora, quando a festa ganha corpo, ela se entristece e diz: “Essa é a última festa que estou dando, porque acho que meus servos estão me traindo.” E complementa: “Eu não sei se vocês podem me ajudar”. E alguém diz: “Qual é a rainha que não pode confiar no seu povo?” E todos juntos conseguem descobrir quem é que está bagunçando o coreto da Rainha. 

Essa coisa que vocês detectaram no elenco também estava na equipe, que era formada toda por amigos. Por exemplo, a maior parte das Diabetes não eram atrizes, eram cabeleireiras de não sei quem… A gente foi catando! Não existia produtor de elenco, entende? Íamos descobrindo nas quebradas uma pessoa para fazer. Assim foi com meus amigos de Ipanema, da Zona Sul… Juntamos muitos tipos de pessoas numa vibração semelhante. Não foi um filme que envolveu sofrimento para ser feito, teve prazer, alegria. Talvez por isso tenha levado tanto tempo para ser feito.

Lorenna Rocha: Teve uma outra coisa que você comentou nessa entrevista com a Glenda, afirmando que odiava essa ideia de cinema de autor e de autoria. E que havia feito A Rainha Diaba de uma forma muito intuitiva. Acho que esse ambiente de festa colaborou para esse negócio que vai sendo feito ali no calor do momento, né?

Antonio Carlos Fontoura: Pensando enquanto diretor, não fiz o filme realizado plano à plano, pré-decupado. Ao contrário, descobri a linguagem de A Rainha Diaba no próprio set de filmagem. É verdade que para conseguir isso tive um equipamento muito bom, algo que eu nunca tinha tido, que era um carrinho com quatro rodas e armação de ar comprimido, que você desliza ele pelos set… Mas, nem era isso que eu buscava no filme. Na verdade, eu ia para o set como uma Super 8, “bolando” a cena com a câmera como se tivesse filmando os atores e explicava tudo ao meu assistente de direção. Não era um filme autoral, no sentido de já estar com ele pronto na cabeça. Eu tinha um roteiro e isso nunca joguei fora. Mas, ele foi apenas a planta para realizar A Rainha Diaba. O filme foi feito no set, sendo criado a cada momento… Acho que por isso ele tem essa vitalidade.

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: Acho que vitalidade é uma ótima palavra para falar de A Rainha Diaba e da atuação de Milton Gonçalves. “A Diaba antes de tudo é o Milton Gonçalves”, você disse. Então, como é olhar para esse ator? Um ator negro, que estava fazendo um papel que lidava com a questão da marginalidade, mas de um jeito completamente desviante…

Antonio Carlos Fontoura: Muito desafiador! Era uma personagem extremamente desafiadora e a coisa que mais admiro no Milton é dele ter aceitado esse desafio. Eu o conheci como ator de teatro. Ia muito àquelas peças do Teatro de Arena que ele fazia. Sabia que era um ator excepcional, porque sempre mostrava talento, originalidade. Uma capacidade de ser ele mesmo em cena, ao mesmo tempo que era o que tinha que ser em função do texto dramático. Mas, quando o chamei, o admirava tanto, que pensei: “Será que ele vai aceitar? De repente vai queimar meu filme…” Até porque o Milton Gonçalves não foi a primeira pessoa quem convidei. 

Primeiro foi o Procópio Mariano, que também está em A Rainha Diaba. Ele é o personagem negro que faz o elo entre a Rainha e a polícia. Quando convidei o Procópio, um excelente ator, ele falou: “Eu não posso fazer porque ando muito de ônibus e quando entro no ônibus já chamo atenção. As pessoas já olham para mim como aquele ‘preto e gordo’… Se eu fizer esse filme, vão comentar ‘olha lá aquele viado gordo!’. Eu não posso, não vou encarar, não quero encarar.”

Já com o Milton, aconteceu o contrário. Ele falou que comprou o personagem de cara! Mas, alguns momentos antes, Milton conversou com a família para saber se haveria algum problema em fazer a Rainha. E a família respondeu: “Vai fundo!” Então, ele se entregou. Ele é um ator extraordinário, criou o personagem. Todo grande ator é assim. O que fiz foi adequá-lo a todo aquele universo que estava sendo criado por mim. Ele era a Rainha Diaba, eu não estava dirigindo o Milton Gonçalves, estava dirigindo a Rainha, ele já era ela.

Isso aprendi quando fiz Copacabana Me Engana, porque tinha um mito muito grande, que era o Paulo Gracindo. Ele fez o Alfeu, amante da Odete Lara. No primeiro dia que fui dirigir ele, falei assim: “Pô, esse cara é um gigante, né?” Eu era um garoto, tinha 28, 27 anos… Fiquei pensando que tinha que dizer algo para ele sobre seu personagem. Então, cheguei num canto e falei: “Paulo, preciso te dizer algumas coisas sobre o Alfeu”. Ele segurou no meu braço e falou: “Não se preocupa não, meu filho, eu sou o Alfeu”. O Milton era a Rainha Diaba. Esse episódio de Copacabana Me Engana ficou em mim e meu relacionamento com os atores passou a ser assim. Nunca quis engessar um ator dentro da minha história.

Lorenna Rocha: É bonito isso, né? Até porque atores e atrizes têm um papel fundamental na construção coletiva de se fazer um filme… 

Antonio Carlos Fontoura: Sem dúvida é uma criação coletiva. O diretor é o maestro daquela história toda, mas cada um toca sua flauta.

A Rainha Diaba (1974)

Lorenna Rocha: Depois de quase 50 anos que o filme foi lançado, como você tem pensado sobre essa oportunidade de A Rainha Diaba retornar às nossas vistas, de uma maneira tão vigorosa, com essa nova cópia em 4K? Como é vê-lo depois de tantos anos? No Janela de Cinema, por exemplo, o público era bem mais jovem e você ficou bem feliz com isso… Como tem sido para você? O que tem pensado sobre essa oportunidade de entregar o filme para um outro público, um outro Brasil?

Antonio Carlos Fontoura: Acho sensacional! Isso que está acontecendo com A Rainha Diaba, que é muito especial, poderia estar acontecendo com muitos outros filmes feitos naquela época. Essa oportunidade juntou várias pessoas que tornaram possível reviver o filme. Tudo começou com o William Plotnick, que fez um revival de A Rainha Diaba no Cinelimite. Ele me contactou, disse que ia fazer um festival com a temática queer lá nos Estados Unidos e perguntou se poderia colocá-lo na programação. E eu falei que poderia, claro! Ele ficou tão encantado comigo que disse assim: “Você precisa ser ressignificado e conhecido no mundo inteiro!” Débora Butruce, que esteve interessada desde o começo, e foi consultora de preservação da digitalização de A Rainha Diaba. A parceria com o Janela Internacional de Cinema do Recife, do Kleber Mendonça Filho, com a Link Digital, usando o scanner de um outro colega de cinema, o Zelito Viana, fez com que chegasse até nós essa maravilhosa versão em 4K.

Não chamo de restauração, porque acho que filme não é peça de museu para ser restaurado. Isso é minha opinião. O filme é uma obra de arte que você está reinventando de certa forma. Porque as tecnologias mais novas permitem muitas modificações. O filme ficou mais impactante nessa versão… Primeiro, que agora ele pode circular pelo mundo inteiro. Depois, porque nos permitiu fazer marcações de luz que, na época, era muito difícil de fazer. Era um negativo, um quadradinho, você colava em outro e depois passava numa coisa… Era muito mais difícil explorar ao máximo o que o negativo tinha capturado. 

Não acho que nos chegou uma cópia restaurada, mas uma nova versão de A Rainha Diaba. É uma reinvenção de tudo que o filme já tinha. Isso deveria ser feito com tantos e tantos filmes. Antes até tinha editais que funcionavam pelo Fundo Setorial do Audiovisual. Havia um edital que você entrava com seus filmes e podia dizer as razões para querer recuperá-lo. Na época, inscrevi A Rainha Diaba e outros. Mas o edital “caducou”, não foi para frente. Era tanta gente querendo recuperar os filmes… Mas é uma coisa muito importante de se fazer. Não só com meus filmes. Gostaria muito de ver outros novinhos em folha.

Lorenna Rocha: Esse gesto dá um ar novo para o filme, né? Nessa perspectiva, uma última pergunta: O que você espera para A Rainha Diaba hoje?

Antonio Carlos Fontoura: Espero que ela circule ao máximo. Que entre e se entregue a todas as portas que forem abertas para ela. E que seja amada por todos.

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