Deixa arder | Dossiê #1 – A Rainha Diaba (1974): Um caleidoscópio endiabrado


Hugo Gomes entrou para a história da Internet com o comentário acima, publicado no Facebook, viralizando e sendo compartilhado nos mais diversos contextos e situações. Essa citação parece precisa para iniciarmos um texto acerca de um filme como A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos Fontoura. A irreverência com que o longa trata seus personagens, desde o início construídos como complexos e erráticos, combina com a ironia da postagem citada: onde o cuir imiscui-se em violência e encontra, para além da dissidência, o sangue.

Há uma cena em específico no longa-metragem que parece traduzir com rigor tal conjuntura: refiro-me ao momento em que a Diaba (Milton Gonçalves), desconfiada de tudo e de todos que a cercam, decide agir para descobrir a identidade daqueles que conspiram contra ela. A sequência chama atenção não apenas por colocar mulheres, pessoas não-binárias e travestis no primeiro plano, expostas aos holofotes e contracenando entre si, mas por assumir um risco moral de representar, em meio aos anos da ditadura civil-militar brasileira, uma pesada cena de tortura.

“A gente podia fazer alguma coisa?”, alguém pergunta à Diaba. “Qual é a rainha que não pode confiar no seu povo?” Cercada de seu bando de travestis e pessoas trans, gays e outras personagens de gêneros e orientações dissidentes, Diaba opta por recorrer à tortura para saber o que deseja. Sua vítima? Isa Gonzalez (Odete Lara), namorada de Bereco (Stepan Nercessian). 

Até certo ponto de A Rainha Diaba, a personagem de Odete Lara é apresentada como uma mulher frágil que é rotineiramente violentada. O filme não se furta, por exemplo, de mostrá-la apanhando do namorado, em um irreverente e perigoso jogo entre a entrega de uma paixão desenfreada e a submissão aos piores códigos de um relacionamento heteronormativo. 

Fragilidade, entretanto, não é um substantivo adequado para descrever o início da sequência que desemboca na controversa, sarcástica e complexa cena de tortura. Registrada com esplendor, Isa emerge de uma cortina de bar, com vestido brilhante e peruca, ambos verdes – representação quase literal da erva cujo tráfico gira a roda de morte que ronda todo o filme. Na cena em questão, ela interpreta Molambo, canção de Nelson Gonçalves, com toda a carga emocional que a música lhe exige:

Eu sei que vocês vão dizer

Que é tudo mentira

Que não pode ser

Porque depois de tudo

Que ela me fez

Eu jamais deveria aceitá-la outra vez

“Ficou pra impedir que a loucura fizesse de mim um molambo qualquer”, ela se apresenta, enquanto contorna as mesas do bar e flerta com o público que a assiste, olhando cada um nos olhos. Grandiosa, Isa continua no palco, vista num contra-plongée que a posiciona em frente à luz do espaço. Enquanto ela se movimenta, tampando o holofote com a peruca, cria-se um jogo de luz e sombra que coroa o simbolismo da cena; uma espécie de halo, quase angelical, que orna Isa e sua performance com sugestão de pureza, ardor e saudade que logo será quebrada.

Assim como a música constrói ambientações, é ela quem também quebra o clima de celebração para anunciar um outro que está para chegar. Com um som estridente, como um alarme que está prestes a prenunciar o perigo, a montagem corta bruscamente para a figura da Diaba após mostrar Isa saindo da casa de shows. A Rainha está dentro de um carro, cujo interior está totalmente ocupado por suas comparsas, e acende um cigarro no escuro. Isa é logo sequestrada com o anúncio do mesmo som, não sem antes o filme mostrar o rosto de suas captoras. 

Num gesto rápido – e nem por isso menos significativo – rostos dissidentes surgem entre luz e sombra, brilhando com maquiagem e suor. Em menos de três segundos, com uma panorâmica breve e trêmula, o filme descentraliza o protagonismo da Rainha na tortura que vai se iniciar e compartilha-o com as demais garotas que ali estão. A motivação da cumplicidade que o grupo possui vai além da obediência cega e da admiração a uma figura descrita e retratada como poderosa. Ainda que, assim como na cultura ballroom, os membros de uma casa devem respeito e temência à sua “mãe”, o bando da Diaba parece ter suas próprias motivações e interesses ao segui-la. Não apenas por respeito, como já dito, mas por dividirem códigos de vivências, expectativas e violências que as unem enquanto uma comunidade. Unidas, são mais fortes, afinal.

Isa, por sua vez, está do outro lado – e o filme explicita essa diferença. Mesmo compartilhando de uma certa posição de vítima numa sociedade marcadamente machista e patriarcal, ser uma mulher cisgênero naquele espaço lhe garante alguns privilégios perante as demais. Um ato de coragem do filme, de alguma forma, se apresenta. Pois, ao escolher infligir a tortura contra uma pessoa que também é diariamente violentada, Fontoura explora as contradições de seus personagens, abandonando qualquer registro possível de sororidade e afeição. O que importa ali é o poder e a manutenção dele – situação que ainda é pincelada com um pouco de inveja, quiçá, ciúmes. 

Ora, não é à toa a intenção de desfigurar o rosto e o corpo de Isa. E nem leviana a escolha de realizar essa tortura num salão de beleza. O lugar para o cuidado pessoal, com seus códigos de feminilidade muito bem demarcados, se transformar num espaço de violência nessa representação controversa do prazer da tortura. O babyliss que cacheia é também a arma que queima. Frustrações, desejos e uma dose de sadomasoquismo caminham juntos para fazer, dessa sequência, uma síntese do próprio filme – longa-metragem onde o brilho e a luz, a todo momento, rapidamente se convertem em sombra e escárnio.

Manicure, pedicure, limpeza de pele e massagista: esses são os dizeres presentes na placa do salão enquanto Isa é arrastada escada acima, para rapidamente ser presa numa cadeira com o fio de um secador de cabelos. Há toda uma performance no modo como as personagens se olham no espelho e se entreolham com cumplicidade, conferindo o penteado; nos próprios gritos de Isa, barulho gutural dessa angústia que não cessa, em pleno pavor e medo; e no andar calmo e debochado da Rainha, que comanda toda a situação. Prazer e violência são misturados ao extremo entre os gritos da torturada e os risos das torturadoras, que não escondem a satisfação de presenciar e promover o sofrimento alheio.

Isa ainda resiste, de certa forma, insistindo em não entregar o amante. O cuspe no rosto de uma das captoras (“cospe, piranhuda, cospe!”) antecipa a queimadura que será marcada com uma guimba de cigarro. E os gritos e risos aumentam, aceleram, confluem, compondo essa trilha que pulsa horror. Embora exista um excesso que pincela toda a cena com uma cinematografia que beira ao fake, a violência ali registrada não deixa de ser gráfica. E a câmera se aproxima da cena, numa ânsia por detalhes, assim como alterna planos que ora registram a Rainha e as torturadoras, ora apresentam Isa, num gesto que nivela todas as personagens nessa espécie de pacto macabro e performático.

Talvez seja essa a artimanha de A Rainha Diaba, a estratégia, planejada ou não, que faz o filme resistir e ser redescoberto por novas audiências após décadas. No momento em que, felizmente, se multiplicam obras realizadas por minorias sociais, como pessoas negras, mulheres e pessoas de gênero e orientação dissidentes (evito colocar o cinema indígena nesse bojo, por enxergar nele outras lógicas de registro e proposição), também se consolida o afã de uma “boa representação”. O que é justo. Cansadas de representações estereotipadas, racistas e preconceituosas, esses filmes contemporâneos têm o direito de querer e fazer diferente. Mas, nessa ânsia de pintar um mundo ideal, as zonas cinzentas de um mundo que se autoproclama “preto no branco” acabam sendo deixadas para trás.

Num momento em que a tortura era instrumento da repressão orquestrada pela ditadura civil-militar brasileira, representá-la desse modo é subverter toda e qualquer expectativa sobre os limites da crueldade. Isso não necessariamente se dá pela verossimilhança, como condenam alguns discursos, muito presentes nos últimos anos, de que a violência infligida por e em corpas dissidentes não deva mais ser representada no cinema. Aqui, não se trata, contudo, de classificar tal representação como mais ou menos aceitável. Mas sim de, estranha e paradoxalmente, fazer entender tais “gays trambiqueiras”, que sofrem e que fazem sofrer, como pessoas dotadas de uma individualidade – e coletividade – que não é facilmente enquadrável, muito menos representável.

É esse cinza, a complexidade diante a dualidade, que impulsiona A Rainha Diaba, filme paradoxalmente colorido, vivaz, brilhante. Assim como não existe representação perfeita, não deveriam existir modelos de representação mais acertados que outros. O cinema não necessariamente precisa espelhar o mundo, como escreve o professor Michael B. Gillespie. E na criação do mundo da Diaba, o registro da tortura, que de certa forma figura uma prévia do banho de sangue que encerra o longa, vem mais como uma faísca nesse filme que está em iminente estado de explosão.

Deixa arder.

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