Fazer lembrar, fazer esquecer | Rumo (Bruno Victor e Marcus Azevedo, 2022) | 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Num momento de revisitação expressiva das leis que viabilizam as cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, a estreia de Rumo (2022), de Bruno Victor e Marcus Azevedo, aparece como um instrumento singular de intervenção no debate público sobre o tema e nos faz rememorar a historicidade das lutas dos movimentos negros brasileiros para garantir o acesso e a permanência de pessoas racializadas nas UFs. Depoimentos de estudantes negros e negras que vivenciaram o processo de implementação da Lei de Cotas Raciais na Universidade de Brasília (UnB) e memórias ficcionalizadas de recém-egressas são articulados com materiais de arquivo do Coletivo EnegreSer, formando uma tríade narrativa para fazer ver as disputas políticas e ideológicas travadas dentro da instituição brasiliense. 

Intitulando-se como um docficção, os primeiros momentos do longa-metragem nos levam até a casa de Leni Rabbi e Sierra Veloso, que interpretam a si mesmas, mas dentro de um contexto familiar. Mãe e filha nos são apresentadas como estudantes de diferentes gerações que compartilham um sonho em comum: ingressar na UnB. O núcleo se desenvolve com certa comicidade – e isso se dá, sobretudo, pela espontaneidade dos diálogos entre elas – e muitas doses de cumplicidade e afeto. O clima de leveza, no entanto, é ocasionalmente interrompido pelas memórias de participantes do Coletivo EnegreSer e pelas filmagens de assembleias e outras atividades institucionais ligadas às discussões sobre a implementação das cotas raciais na Universidade de Brasília. 

O dispositivo fílmico que conecta o passado vivido e capturado pelas câmeras do EnegreSer ao núcleo ficcional de Rumo são fitas VHS. Mãe e filha são arrancadas de seus cotidianos para um espaço com tons de futuridade. Lá, encontram um sofá em meio a um campo verde e um céu azul bem aberto, com um móvel e uma pequena televisão à sua frente. As personagens estão vestidas com roupas azuis e acessórios prateados que remetem à estética afrofuturista. Sentadas, aquilo que inicia-se na televisão torna-se o que está impresso na tela para as espectadoras da sala de cinema. Além do material de arquivo, tanto a dupla quanto o público acessam, de forma não-linear, os relatos de estudantes negros e negras que relembram momentos específicos de suas trajetórias acadêmicas, dificuldades de socialização na UnB e refletem acerca do momento histórico que testemunharam.

O contraste entre o ambiente tenso, irresoluto e violento expresso pelo material de arquivo e a atmosfera apaziguada produzida pelo núcleo ficcional, se não  diminui a força da significação e a importância do esforço de historicização que o filme se propõe a fazer, também não intensifica a energia abrupta e impressionante que o material audiovisual produzido pelo EnegreSer contém. Confrontos diretos entre estudantes negros e professores universitários brancos, votação para a pautação da questão das cotas dentro da UnB e declarações racistas de estudantes e intelectuais brancos da época são apresentados em planos abertos, onde o conflito orquestrado pela racialidade vai tomando cada vez mais forma a medida em que os corpos e as falas desses polos opostos vão ganhando intensidade. 

A violência redistribuída pela reação de jovens negros e negras no material de arquivo deixam as contradições, negociações e conflitos políticos expressos nas imagens. Além disso, delineia-se de forma tangencial a complexidade que envolve pessoas negras de classe média no âmbito universitário, uma espécie de não-lugar (porque não é pobre, também não é branco, mas se é preto) que o filme assume enquanto questão e escancara como algo que está longe de ser resolvido. A frontalidade e amplitude das imagens de arquivo produziram um fenômeno peculiar no Cine Brasília, onde o público vibrava, aplaudia e gritava algumas palavras de ordem como se tivessem, naquele momento, vivenciando episódios que, na verdade, aconteceram há mais de 20 anos.

A escolha de terminar o longa-metragem com imagens e depoimentos autobiográficos da entrada de Leni e Sierra na UnB deu um caráter de superação do problema (racial e universitário), quando as imagens impactantes do material de arquivo nos dizem radicalmente o contrário. É curiosa a escolha de, através do imaginário do afeto, querer dominar uma força violenta que está contida nas imagens que o próprio Rumo escolheu como matéria fílmica. O vício contemporâneo de criar “imagens positivadas” das experiências negras parece, no caso do filme brasiliense, conter a força insubmissa presente nos processos políticos fomentados e encorporados por cada um dos jovens negros e negras que aparecem naqueles vídeos.

O esforço imensurável de um corpo coletivo que se mobilizou para promover políticas de ação afirmativas dentro da UnB ganha, no fim de Rumo, um gosto de passado. Não no sentido de historicização, mas como algo que já não se encontra enquanto confronto ideológico e material no aqui-e-agora. A escolha pela positivação da narrativa desloca o gesto do fazer lembrar para um contraditório mecanismo de fazer esquecer: da violência, do conflito, do que ainda está não-apaziguado.

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