Em um dos primeiros planos de Mugunzá (Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2022), a câmera nos conduz a observar uma mulher negra que está deitada no chão. A vermelhidão do vestido de Arlete (Arlete Dias), tão marcante quanto a cor de sangue, dá uma pista referente ao conjunto de memórias e violências que perpassam pela vida dela. No entanto, o lirismo e a melancolia presentes na primeira canção interpretada pela personagem dá um tom de delicadeza a esse corpo que parece tão revirado quanto os móveis de sua casa. O contraste do vermelho pulsante de seu vestido e dos detalhes do cenário com o doce canto de Arlete configuram, por assim dizer, a linguagem escolhida para manejar – e tornar evidente – os múltiplos eventos, desencontros, amores e traumas que tornaram aquela mulher justamente quem ela é. Se o filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa poderia ser facilmente lido como um longa sobre protagonismo feminino e negro, pois Arlete quem conduz a narrativa e repetidamente anuncia o desejo de contar sua própria história, as pessoas que entram pela porta da casa-bar-altar-Orun da personagem friccionam tal automatização do pensamento. Uma armação que reorienta nossos olhares para lugares menos imediatos e óbvios do que essa trama aparenta ser.
Nêgo, o Pai, o Prefeitinho, o Prefeito, o Pastor: a cada entrada – ou invasão – do espaço-corpo de Arlete, vemos a presença de Fabrício Boliveira. A estratégia que aponta a diferença entre os diversos personagens vividos pelo mesmo ator se dá pelo figurino e pelas mudanças nas modulações vocais e corporais de cada um dos homens que estão (ou estiveram) na vida de Arlete. O elo entre os cinco personagens interpretados por Fabrício Boliveira não se dá apenas pela visualidade, mas pela própria narrativa do filme: Joana, ex-companheira de Arlete, foi assassinada dentro de sua casa pelo o ex-marido, o Prefeito, o qual sente uma raiva profunda e persegue Arlete por ter “roubado” sua esposa; Nêgo, ex-marido dessa personagem, encontra a ex-companheira em estado de luto e tenta se aproveitar da fragilidade dela para ensaiar uma reaproximação. Mas, é a partir do flerte com Prefeitinho que Arlete monta sua arapuca de sedução, justiça e vingança. A aproximação ao filho de seu maior inimigo é o que a leva até a cozinha para fazer uma receita antiga e especial de mungunzá que envenenará quase todos a sua volta. Arlete, no entanto, não poderia dar continuidade ao seu plano sem antes ter as bênçãos do Pastor, que lhe promete salvação em troca de dinheiro, mesmo enxergando-a como uma grande e antiga pecadora.
A permanência de Boliveira como intérprete dessas múltiplas masculinidades negras (o ex-marido fuleiro, o pai traidor, o esquerdomacho sedutor, o dono da cidade e o evangélico enérgico) poderia ser visto como um simples diálogo ou consequência do modo de produção da Rosza Filmes, que, diante do baixo orçamento para realização de seus trabalhos, prioriza locações únicas e uma equipe reduzida de atores e atrizes. A precariedade que acompanha a filmografia de Glenda Nicácio e Ary Rosa, mobilizando as linguagens cinematográficas da dupla, produziu um interessante contraponto para a leitura de Mugunzá: a similitude visual desses personagens, ou seja, a manutenção de Boliveira em diferentes registros representacionais, dá espaço para uma crítica contundente às masculinidades, deslocando o foco imediato do protagonismo per si da personagem Arlete.
Os arquétipos masculinos interpretados pelo ator entrelaçam expressões do cotidiano à performances de poder que denunciam a masculinidade como uma instituição. A repetição visual que se produz devido ao corpo-imagem de Fabrício Boliveira faz ver a persistência de formas masculinas de estar no mundo que tolhem e violentam, cada um à sua maneira, a individualidade de Arlete. Seja na família, política ou casamento, esses homens negros são construídos a partir de imagens caricaturais que, de alguma forma, reproduzem um jeito muito branco de ser, em suas tentativas de performar o poder. No filme, a mediação crítica desse debate se dá através da subjetividade de Arlete, personagem que vive um luto diante de nossos olhos. Podemos, ainda, estabelecer uma outra conexão: o fato da personagem apresentar-se como uma mulher lésbica poderia ser reduzido a uma ideia de recusa a figura do masculino, por meio de uma oposição ou ódio. Mas, as canções e lembranças de Arlete em relação à Joana, e até mesmo durante o encontro espiritual entre ambas, não nos permite reduzi-las a isso. O encontro de Arlete e Joana foi produzido por amor e, ainda, é por conta dele que Arlete mergulha nesse estado inicial de melancolia, que deriva do melodramático ao cômico, e faz da personagem muitas em uma só: um pouco Medeia, um pouco Vaga Carne, um pouco Mata Teu Pai.
O tempo de Arlete já não tem dias ou horas e passa a ser marcado pelos eventos e festividades que acompanham sua vida. A cada festa há a infeliz oportunidade dela se encontrar com uma das figuras masculinas que a assombra. A fratura que acompanha o corpo dessa mulher reverbera na fragmentação da narrativa e do investimento estético de Mugunzá. Nos entraves entre Arlete e todos esses homens, a sequencialidade e continuidade das ações são interrompidas por uma montagem que une distintas performances dos personagens, ainda que estejam ocupando um único espaço cênico e interpretando o mesmo número musical. Ainda que a canção e o conflito permaneçam iguais, podemos ver os personagens em diferentes posições e formas de presença que comunicam o desencontro e a tensão que configuram a relação de Arlete com tais masculinidades.
Destacar a possibilidade de olhar para o masculino em Mugunzá parece ser um caminho salutar para não enclausurar o filme – e suas personagens – na lente única do empoderamento e representatividade feminina e negra. Ainda que estejamos diante de um mergulho profundo nas emoções, dúvidas e angústias de Arlete, olhar com atenção para os personagens interpretados por Fabrício Boliveira não exclui os gestos de autodeterminação dela, tampouco seu desejo de falar por si mesma e preservar sua própria história. Pelo contrário, os engradece concomitantemente, pois a curva do filme é justamente perceber como essa mulher – preta, lésbica, gorda, mãe – olha para esses homens que, embora múltiplos, são profunda e estruturalmente semelhantes.