Caixa Preta (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022) e Ôrí (Raquel Gerber, 1989) parecem compartilhar, em sua forma, semelhanças e diferenças que nos interessam como chave de leitura para o média exibido durante a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Enquanto no longa de Raquel Gerber os estudos de Beatriz Nascimento são o fio condutor para o mapeamento não linear e fragmentado do pensamento social e organização política negros brasileiros entre os anos 1970 e 1980, em Caixa Preta, a não linearidade é construída por samples de fotografias, artes visuais, materiais audiovisuais, vozes, ruídos e canções que devoram as imagens pré-fabricadas, puras e/ou imutáveis da blackness (pretitude).
No cubo onde imagem e som estão prestes a pegar fogo, a materialização da caixa preta na sala de cinema demanda do corpo da espectadora uma malandragem enérgica para lidar com a incerteza do que está a aparecer diante de nossos sentidos. Entrar na experiência fílmica torna-se desafiador quando a negridão da projeção se impõe à nossa frente. A tela preta, um silêncio da imagem, como afirma o montador e pesquisador Fábio Rodrigues Filho, pode ser uma “paisagem visível” que é “incidente da ausência”, “uma interferência cacofônica” ou “uma possibilidade de expressão imagética”. Todas esses modos de expressão se manifestam, em maior ou menor medida, durante os 55 minutos do médiametragem de Bernardo Oliveira e Saskia.
No entanto, ao em vez de tentar localizar quais imagens emergem dessa pretura visual, gostaria de propor uma navegação entre escuridão e luminosidade que, acompanhada (ou desorquestrada) pelos vetores sonoros presentes em Caixa Preta, rasura, decompõe e nos mobiliza a mergulhar nos “mil milhões, mil milhões, mil milhões…” de existências afro-diaspóricas, chegando, no limite, a um abandono do lugar racial (negro) de onde toma seu ponto de partida.
Brigar pela arte
A música de Arlindo Cruz, Sambista Perfeito, tem um de seus versos sampleados pela voz off de Bernardo Oliveira. A frase “brigar pela arte” é repetida algumas vezes com pausas que, ao contrário de ser uma proposição para dar um respiro ao filme, nos permitem ser desnorteados pelo conteúdo luminoso da tela. Uma composição se apresenta: no plano de fundo, rastros de uma multidão agitada e desconfigurada pelo uso de filtros que desfocam a imagem; em sobreposição, uma tela em que aparecem duas pessoas negras em posição de luta. O desfoque do corpo coletivo, somado ao verso — que, por repetição, transforma-se em palavra de ordem — e à representação visual de um confronto, antecipa gravações de um mar de pessoas correndo, se pisoteando e se amontoando dentro do Supermercado Guanabara.
A tela branqueia-se e fica preta novamente. A narração do multiartista Negro Leo com pensamentos existencialistas sobre o universo e o humano cruza-se com a tela tripartida, que, por diversos ângulos, faz ver a expressão de animosidade daquela multidão que está no supermercado, representação de certa sede por sobrevivência, a qual deriva-se da escassez, desigualdade social e pobreza. A ligação entre capital, arte e neoliberalismo percorre tal composição de modo a nos entregar um sussurro às avessas, instaurando um jogo de des-codificação de mensagens anticapitalistas. Des-codificar, no entanto, não significa que há vontade por revelação ou entendimento do que está sendo apresentado através da projeção cinematográfica.
A conjunção dos diferentes materiais resulta em um burburinho (ou barulho) que entra em diálogo direto com o pensamento radical negro. Com imagens saturadas e pixeladas, a dupla de artistas aposta no impuro e incerto para propor uma quebra na maneira em que são apresentadas as discussões em torno da racialidade, fazendo um entrelaçamento entre escravização, negrura e capitalismo. Tais relações nos faz lembrar dos estudos de Denise Ferreira da Silva sobre o Evento Racial e a inseparabilidade da expropriação de corpos, sangue e pensamentos negros (e indígenas) como base arquitetônica do modelo econômico-ideológico-social que continua a nos empurrar e soterrar em diferentes plantations.
O uso de mídias precárias, não licenciadas e sem créditos não é apenas um hackeamento de dados, mas do modo de fazer cinema, respondendo, por assim dizer, aos modelos industriais que apostam na pureza, legibilidade e compreensão como componentes de sua prática. Enquanto artistas multidisciplinares, a combinação entre crítica, produção, edição de vídeo e som, ou seja, dos diversos lugares de trabalho ocupados por Bernardo Oliveira e Saskia, incidiu na criação de uma obra em que a lógica do sampleamento, da música eletrônica e do hip hop tornam-se ferramentas para uma proposição estética. Menos do que elaborar uma narrativa ou estarem afinados com os códigos cinematográficos, são os ritmos e as intensidades sonoras que engajam as elaborações formais de Caixa Preta.
A precariedade simbólica (e material) que circunda a realização do média se une, de certo modo, a outras produções audiovisuais contemporâneas como Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2015). Neste curta, uma série de arquivos nos lança a questionar, entre outras coisas, a noção de autoria do filme. Se a não propriedade das imagens já aparecia como evidência diante da perspectiva anticapitalista presente em Caixa Preta, a matéria desse filme nos engaja a pensar como ela opera na construção de coletividades (negras).
Circularidade hipnótica, coletividades desenraizadas
Caixa Preta é o desdobramento de um projeto de Bernardo Oliveira, Saskia e Negro Leo, intitulado Ciranda do Gatilho. A busca por circularidade, desde-já expressa no nome desse trabalho coletivo, é uma constante no média lançado em 2022. Entre macumbarias, sambas, funk e jazz, roda e círculo tomam forma de diversas maneiras, mobilizando, inclusive para quem assiste, esse jogo de entrar e sair do filme, em seus intervalos de escuridão ou instantes mais fortes de luminosidade. O caráter fragmentado de Caixa Preta nos permite, ao mesmo tempo, acreditar, desistir e compactuar com essa experimentação audiovisual. Uma fragmentação que se distancia de Orí, pois está mais interessada no colapso do que na materialização de uma tese evidente.
Em uma das sequências do filme, a “roda de engatilhamento contínuo” é impulsionada pela escuridão, acrescida de um som instrumental, até que se permita ver, em tela, nuances de cinza e branco que nos endereçam até um arquivo onde uma colônia de formigas se move agilmente em círculo. A intensidade da ação forma o desenho de um buraco negro. O zoom in no vídeo pode até nos deixar ver, com detalhamento, cada corpo individual que forma aquele todo. Mas, devido a rapidez da cinesia, é a imagem do coletivo que permanece. Sem parar de girar, o buraco negro parece criar um círculo hipnótico que, junto à sobreposição sonora — com apitos, falas, atabaques e ruídos — nos lembra um estado de transe.
Os cortes e mudanças bruscos de registros imagéticos e sonoros não interrompem o ambiente criado. Pelo contrário, é de dentro desse caos que Bernardo Oliveira e Saskia apostam num mundo difuso, desconexo e profundamente implicado, onde todas as coisas, sons e imagens coexistem conflituosamente (ou não) no mesmo lugar. O círculo hipnótico e o transe são fundamentos, então, para uma navegação infinita e caótica — entre arquivos, dados, sons, Atlântico Negro… — que vê blackness por todos os lugares. Essa perspectiva expandida na forma de se relacionar com o mundo visível e não visível torna possível aproximar a prática da Jurema, por exemplo, à pregação afrogospel performática e calorosa da pastora Ana Lúcia. Não por equivalência, de forma alguma, mas pela aposta em que, desse mundo implicado, emerge negruras que são capazes de fazer queimar os modos mais binaristas e deterministas de estar diante do que existe (ou não) atravessando os nossos sentidos. Em Caixa Preta, a blackness nos é apresentada como operação, modos de fazer que passam pelo coletivo, corpo, sensorial, presença e experimentação contínua.
Quando a voz em off, repetitivamente, afirma “Eu sou o Terceiro Milênio”, não há autodeterminação, tampouco perspectivação para uma futuridade individual. “Eu sou” aqui figura um intrigante nós, que vai se configurando durante a continuidade da narração: “Eu sou Negro Leo, eu sou Saskia, eu sou Juçara Marçal, eu sou o Terceiro Milênio”. Ser muitos em um, não para ser uno, nem pelo desejo de buscar representatividade ou espelhamento naqueles que são anunciados, mas como manifestação do infinito que constitui, cabe e extrapola a blackness. A infinitude, por sua vez, provoca sensação de desenraizamento. Em Caixa Preta, há circulos, mas não há vontade alguma em reconhecer qualquer tipo de origem.