“Quando queremos lembrar de nossa mãe, assistimos a um filme”: uma conversa a partir de Nossa Mãe Era Atriz (André Novais Oliveira e Renato Novais, 2023) | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Durante a cobertura da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Renan Eduardo conversou com André Novais Oliveira e Renato Novais, codiretores de Nossa Mãe Era Atriz (2023), que teve sua estreia na Mostra Panorama. Nascidos e criados em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte, André e Renato são diretores, atores e roteiristas da Filmes de Plástico, produtora mineira de cinema, que tem como destaque os longas Temporada (André Novais Oliveira, 2018), No Coração do Mundo (Gabriel e Maurílio Martins, 2019) e Marte Um (Gabriel Martins, 2022). 

Nossa Mãe Era Atriz presta tributo a Maria José Novais Oliveira (conhecida carinhosamente como Dona Zezé), mãe da dupla de diretores. O curta rememora a carreira dela como atriz, utilizando-se de imagens de arquivo, com cenas de bastidores, ensaios, materiais brutos de filmes e viagens de Dona Zezé à trabalho. Nessa conversa, André e Renato compartilham sobre a inserção de sua família na produção cinematográfica brasileira, coletividade na Filmes de Plástico e as memórias e lembranças que conduzem a relação do primeiro trabalho codirigido entre os irmãos.

Renan Eduardo: A Filmes de Plástico, além de ser uma empresa produtora de Contagem (Minas Gerais), é um coletivo de cinema. Como vocês percebem que a participação no set uns dos outros, por exemplo, contribui para a construção estética, formal e, até mesmo, de dinâmica de trabalho do grupo?

André Novais Oliveira: No início, era assim mesmo: quando um estava dirigindo, os outros estavam ocupando outras funções. Isso continua até hoje, quase sempre estamos juntos, mas de forma variada. Não é todo filme que participo quando não estou dirigindo e vice-versa. Uma coisa que é bem importante para a produtora é que todo mundo participa de todas as etapas de realização, como uma questão de coletividade. Se eu estou escrevendo um roteiro, todo mundo vai ler os tratamentos, dar opinião, fazer reuniões… Isso funciona muito bem. Nos acostumamos a trabalhar dessa forma. Seja em relação aos roteiros, cortes, questões decisivas e burocráticas para a produtora: sempre estamos juntos, fazendo reuniões, todo mundo participando ao mesmo tempo. Estamos sempre nós quatro juntos: eu, Gabriel [Martins], Maurílio [Martins] e Thiago [Macêdo Correia].

Renan Eduardo: E como é isso para você, Renato? Como você se enxerga na Filmes de Plástico?

Renato Novais: Posso dizer que vi isso acontecer, sabe? Mesmo não estando perto dessas produções iniciais, eu sempre ouvia André e a nossa mãe falarem. No começo, nos viamos pouco. Mas, com o tempo, comecei a conhecer a galera e percebi esse lance do André, de fazer várias funções de dentro do mesmo filme. Muita gente pergunta sobre isso e falo que todo mundo fica sambando dentro do filme do outro! É uma colaboração mesmo, sabe? Qualquer coisa que sai da Filmes de Plástico, vem com uma certa identidade, porque passa por eles quatro.

Renan Eduardo: André, seus filmes sempre tem uma relação bem próxima com a sua família. Como foi estar com ela dentro do set? Como se deu, por exemplo, o primeiro convite à Dona Zezé, mãe de vocês, e como foi se desenrolando a relação entre trabalho e família? Depois queria ouvir o Renato sobre isso, porque com o tempo, assim como Dona Zezé, ele foi se aproximando cada vez mais da Filmes de Plástico e passou a estar envolvido com a produção cinematográfica de outros diretores…

André Novais Oliveira: Antes da Filmes de Plástico, fiz alguns curtas. Em várias funções, mas também como diretor, desde a Escola Livre de Cinema. Tiveram estreias dos filmes, algumas sessões, e meus pais e meu irmão, sempre quando podiam, acompanhavam esses momentos. Então, já de início, quando fazíamos os filmes e tinha alguém atuando que era nosso amigo, isso se tornou algo próximo, principalmente para os meus pais. É como se fosse algo natural, entende? Por exemplo, no Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), meus pais foram na estreia e se acostumaram com Gabriel e Maurílio atuando nos filmes. Quando veio o convite do Ela Volta Na Quinta (André Novais Oliveira, 2015), eles não pensaram que era uma coisa “totalmente absurda”. 

Antes disso, teve Rua Ataléia (André Novais Oliveira, 2021) que, apesar de ter sido montado dez anos depois, fiz as imagens em 2011, algo que antecipou, em alguma sentido, o Ela Volta na Quinta, porque estava tentando entender como meus pais e meu irmão se relacionavam com a câmera. O convite do filme surgiu em 2000 e nós gravamos apenas em 2013. Nesse tempo, já não tinha essa coisa de achar que filmar é um “absurdo”. Também tinha, acho que da parte da minha mãe, uma vontade de fazer cinema. Ela não falava muito, mas foi surgindo, principalmente em Ela Volta na Quinta, que demoramos muito para filmar depois que ganhamos o edital. Lembro dela ficar muito ansiosa: “Quando vamos gravar? Eu quero filmar!” Era algo bem legal, foi acontecendo aos poucos. Do Ela Volta Na Quinta para o Quintal, minha mãe e meu pai já haviam feito alguns outros filmes, foi um caminho natural mesmo.

Renato Novais: Acho que a primeira coisa que temos que entender é que, antes de tudo, nós eramos muito cinéfilos. Pegávamos quinze à vinte filmes para ver no final de semana. Quando André decidiu fazer a Escola Livre de Cinema, ele fez o primeiro curta dele, uma homenagem a Aluisio Neto, já fiquei assim: “Caralho, meu irmão já tá dentro! Já tá fazendo!” E eu ficava pensando: “Se o Dé me chamar para fazer uma pontinha ali, tô dentro”. Depois, vi o Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2010) e foi uma explosão na minha cabeça, me cativou bastante. Tinha certeza que no dia que André me chamasse para fazer uma pontinha, eu iria. Pintou o roteiro do Ela Volta na Quinta, André explicou que tinha um roteiro sobre nossa família e pediu para lermos. Tinham poucas cópias, não me lembro se meu pai [Seu Norberto] chegou a ter a dele.

Nós lemos no mesmo dia e combinamos que, em seguida, iríamos trocar uma ideia. Ao mesmo tempo que pensei “caralho, que foda!”, fiquei assim: “Nossa, para quem queria só uma pontinha, vou fazer um papel grande!” Topei na hora. Mas, queria saber a opinião da minha mãe e do meu pai. Fiquei com medo deles ficarem inseguros e não toparem. Minha mãe estava maravilhada: “Que dia começamos? Vamos fazer! Vai ser do caramba!”. Meu pai também. Ali foi o início de tudo. Ela Volta na Quinta foi feito com uma equipe reduzida e com pessoas que já frequentavam nossa casa. Para nós foi uma diversão. Foi o primeiro em que estive diante das câmeras, foi muito prazeroso. Era meu irmão filmando, as pessoas que nós já conhecíamos e admirávamos de outros trabalhos e já estávamos ligados na Filmes de Plástico. Foi uma mistura de diversão com trampo. Acredito que tenha dado muito certo por conta disso. 

Renan Eduardo: André e Renato, vocês já trabalharam juntos em várias ocasiões, mas, em Nossa Mãe Era Atriz (2023), foi o primeiro que compartilharam a codireção. Como se deu esse processo de criação e trabalho?

André Novais Oliveira: Eu já tinha ideia de fazer um filme sobre a minha mãe, mas isso ficou mais forte depois do convite que recebemos para homenagea-la na 1ª Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte (2021). Alessandra Brito e Layla Braz entrou em contato e pensamos numa sessão para fazer essa homenagem. Na época, estava com o tempo mais livre falei para o Renato que deveríamos tentar fazer o filme, derivado de um roteiro que falava desde o início da vida dela, com uma narração em off. Não sabiamos muito bem como íamos fazer, mas queríamos colocá-lo no festival. Só que percebemos que não ia dar tempo e engavetar o projeto. Desde o início, nós percebemos que seria muito difícil trabalhar com aquelas imagens, com todos aqueles arquivos. Havia também muita coisa perdida. Havia muitas imagens em dois notebooks meus, que nem estavam funcionando mais, e só depois de levar para manutenção que conseguimos resgatá-las. O filme surgiu mais o menos assim. 

Renato Novais: De início, nós iriamos fazer um filme sobre a vida dela. Eu faria a voz em off. Isso ficou na cabeça, até porque queríamos atender o festival. Mas era pouquíssimo tempo. Estávamos no ápice da pandemia. Estava trabalhando online, foi um momento horrível para mim. Governo Zema, Bolsonaro. Tudo era desfavorável, sacou? Sou professor, foi bem desgastante. Mexer nesse filme era reviver as imagens de nossa mãe. Foi muito difícil, porque estávamos bem sensíveis durante a pandemia. Não foi legal para ninguém. Depois que o festival acabou, nós saímos desse aspecto de “urgência” e começamos a pensar melhor à respeito do filme. E percebemos que seria impossível de dar conta da vida dela, porque daria um filme de quatro horas. Nossa mãe tem muita história. Ela contava tanta coisa para nós… 

Teve muita coisa que não exploramos, porque o foco era pensar na carreira dela de atriz. Mas, por exemplo, ela tinha uma ligação muito forte com o futebol, especificamente com o Cruzeiro, e também foi árbitra. A infância dela em Teófilo Otoni… Mas fizemos o recorte a partir de 2013, acabou sendo menos complicado. Corremos atrás dos filmes em que ela atuou, das pessoas que filmaram ela e a dirigiram. Todo mundo forneceu material. A partir do primeiro ou segundo corte decidimos colocar as narrações em off. Pensamos em não ser algo maçante e nem ser só uma homenagem.

A questão principal é sobre termos uma senhora preta, que começou a atuar na faixa de seus 60 anos. Que não teve uma carreira qualquer. Em cinco anos, nossa mãe conseguiu algumas coisas que muitas pessoas, em um tempo maior de cinema, não conseguiram. Pouco tempo antes dela falecer, eu ligava para casa e falava com ela quase todos os dias. Tinha dia que ela falava assim: “Não dá para conversarmos agora, estou estudando um roteiro”. Uma pessoa de mais de 65 anos assumir um posto sabendo de sua responsabilidade, é algo louvável demais. Foi muito bonito perceber isso.

André Novais Oliveira: Ela estudava o roteiro, decorava textos. Ela tinha uma coisa com decorar o texto, mas falava de uma forma tão natural na hora de filmar, que chegava a ser impressionante. Isso era um diferencial dela.

Renato Novais: Não é porque é minha mãe não, mas não estamos falando de qualquer atriz. Ela fez papéis muito legais. Ela Volta Na Quinta, por exemplo, é uma história espinhosa, e minha mãe caiu de cabeça, mergulhou mesmo. Tem várias cenas, muito bonitas, que não entraram porque não couberam. Mas, já daquele momento, percebemos a potência que ela é, do que ela foi. 

Renan Eduardo: Ainda sobre o Nossa Mãe Era Atriz, vejo que a montagem é central para o filme. Como se deu o trabalho entre vocês e o Higor Gomes?

André Novais Oliveira: Higor Gomes parece ter entendido o espírito do filme desde o começo. Eu já o admirava enquanto diretor, gosto muito dos curtas dele. Ele trabalho muito tempo sozinho nesse filme, foi no ritmo dele. Acho que ele codirigiu com a gente em algum sentido, ele dava algumas coordenadas. Tivemos influência de alguns filmes do Cinema Novo, Eryk Rocha, Rodrigo de Oliveira, sem nenhuma entrevista talking head. Tinhamos um material que a base. Só que, ao longo do tempo, fomos encontrando outras coisas durante o processo. Quando Higor mandava um corte, ficavámos um tempo em muito contato com o material, dava muita emoção, a gente demorava para responder, ficávamos meses sem trabalhar. Repetíamos muito isso. 

Renato Novais: Higor foi fundamental. Acho justo falar que ele é um codiretor. Muita gente que passou por nós, durante a produção do filme, admirava nossa mãe. Higor é uma dessas pessoas. E, foi bonito, porque ele chegou a conhecer ela. Higor estava no meu aniversário, naquela cena final. Cinco dias depois ela faleceu. Higor entendeu a carreira dela, mas também teve uma relação com nossa mãe. Acho que eles se conheceram em algum momento no [Cine] Humberto Mauro…

André Novais Oliveira: Higor foi assistente de câmera em Temporada (André Novais Oliveira, 2018).

Renato Novais: Ele deve ter tomado café lá em casa, fez alguma resenha, isso deixou a coisa bem familiar. Higor segurou uma onda. Foi a terceira vez que vi o filme, aqui em Tiradentes. Nos dois últimos cortes, fiquei destruído, era período de pandemia. Foi difícil. Ela faleceu em 2018, nós começamos a trabalhar nesse filme em 2021. Tava meio recente ainda, né? Foi difícil reviver esse material, as fotos. Nós não estávamos fazendo um exercício para esquecer. Só que era muito difícil ver ela, ainda mais ela falando. Essas coisas mexem para caramba. É complicado ir e voltar para esse lugar. A última cena do nosso curta é do Velho Oeste, um outro filme que não está finalizado, onde minha mãe e meu pai estão dançando. Me derramei de tanto chorar quando vi aquilo. Foi do caralho. Lembro da minha mãe nesse dia, mas havia esquecido da cena. André e Mateus resgataram ela e ficou brilhante. 

André Novais Oliveira: Indo atrás desses materiais, parece até meio maluco pensar que, em algum momento, nós iríamos chegar a ver todas as imagens que nossa mãe fez nos sets. Ficávamos felizes a cada imagem que encontrávamos, mas, ao mesmo tempo, era triste pensar que estavam acabando as imagens dela. Era saudade. Uma coisa muito peculiar na nossa família é essa coisa da memória. Quando queremos lembrar da nossa mãe, assistimos a um filme, ao invés de ir a um álbum de fotos. Após a exibição aqui em Tiradentes, tive um sentimento muito forte de fechamento de ciclo. Esse filme mata a saudade. Fizemos um filme para todo mundo, mas também para nós.

Renan Eduardo: Por fim, qual o legado que Dona Zezé deixa para a Filmes de Plástico? 

André Novais Oliveira: Dona Zezé é como se fosse uma bandeira do que entendemos como atuação. Falamos de atores não-profissionais, tem gente que fala de não-atores… Dentro da Filmes de Plástico há uma gama de pessoas que são exemplos de atores não-profissionais. Nossa mãe é o principal deles. Todo mundo que trabalhou com ela, fala do carisma de Dona Zezé. Sempre amei minha mãe, mas quando ela começou a entrar em contato com o pessoal do cinema, vi o quão carismática ela era, sabe? Meu pai e meu irmão também isso. Foi tudo muito natural. Muitas pessoas se tornaram amigas dela. Quando morava na casa dos meus pais, as pessoas iam lá em casa, galera de cinema, mas era para conversar com ela! Era muito engraçado ver isso. 

Renato Novais: Minha mãe encontrou uma forma de agregar todo mundo, sabe? A galera costuma brincar que Fantasmas custou a macarronada que nossa mãe fez lá em casa. O orçamento do filme foi isso! Minha mãe adorava a casa cheia, ela fazendo café, qualquer tipo de comida. E falando, claro, porque ela era uma contadora de histórias nata. Acho importante falar desse termo “não-ator”. Escutei muito isso no começo da minha carreira e até aceitava. Até porque não me considerava como tal. Mas, depois, com um tempo, e principalmente agora que estou sindicalizado, não aceito mais não. Dou varada, mano, sou ator profissional. Esse período da nossa mãe no cinema não foi qualquer coisa. Muitas pessoas chamaram ela para atuar e não era por ela ser nossa mãe. Havia ainda tantos personagens para ela fazer e ela acabou indo embora assim, sabe? Se ela ainda estivesse aqui, ela não ia aceitar ser chamada de “não-atriz” ou “atriz não profissional”.

Renan Eduardo: O título do filme é um gesto afirmativo, nesse sentido, né?

Renato Novais: O filme vai deixando isso evidente. Tem até uma parte que ela tá indo filmar com o Ricardo Alves Jr e uma pessoa pergunta se ela é atriz e ela responde que não. Mas, eu sempre falava: “você diz que não é atriz, mas tem prêmio de atuação!” No fundo, acho que a ficha dela tinha caído. Ela era uma aposentada, mas abraçou um ofício em que ela se deu muito bem e todo mundo gostou. Ela era atriz mesmo, desde Ela Volta Na Quinta. Quem fala que não é só vacilão mesmo.

André Novais Oliveira: Em 2007, nossa mãe teve um derrame e os médicos falaram que foi um milagre ela não ter ficado com sequelas graves. Depois disso, passamos a ter muita preocupação com ela e isso juntou a uma vontade dela de viver intensamente. O cinema foi o encontro disso. Ela foi com força e determinação. Isso é muito bonito.

Renato Novais: Verdade. No final, nós não sabíamos que dimensão isso tomaria. Ela falava das dificuldades que tinha, das coisas que gostava. Depois que acabou o Ela Volta Na Quinta, ela sempre perguntava quando ia ser o próximo, queria mais. Mesmo se fosse uma participação pequena, ela encarava de uma forma bonita e gostosa, com orgulho do que ia fazer. Tem uma pequena participação dela no Elon Não Acredita Na Morte (Ricardo Alves Jr, 2016): o personagem principal entra no elevador para ir para casa e Dona Zezé dá um bom dia para dele. “Bom dia, Elon!” Ela achava o máximo! Vibrava toda vez que tinha um oportunidade e se despia de qualquer insegurança. Faltou tempo para minha mãe fazer mais coisas.

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