Vermelho-azul | O Canto das Amapolas (Paula Gaitán, 2023) | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

O Canto das Amapolas (Paula Gaitán, 2023) inicia-se com uma série de frames em preto-e-branco que aparecem e somem rapidamente, fotografias de uma casa que está povoada de móveis, imagens, documentos e memórias. A casa tá aqui, mas é uma construção, afirma a diretora ou sua mãe, Dina Moscovici, já nos últimos momentos do filme, onde as vozes de ambas se confundem aos nossos ouvidos. A frase aponta para um atrito entre a materialidade do espaço e sua dimensão constitutiva, uma vez que a temporalidade, processualidade e imaginação entram em jogo, nos fazendo lembrar que a casa também pode ser algo inventado, assim como as histórias compartilhadas por Moscovici à sua filha.

Curiosa pelo passado de sua família, a qual é marcada pela tradição alemã, judaica, brasileira e colombiana, ouvir sua mãe é buscar uma (re)territorialização de si mesma. No entanto, ter a própria imagem refletida no espelho não é sinônimo de autoidentificação, nem de autorreconhecimento. O jeito em que a diretora nos apresenta som e imagem leva-nos a intuir que há ali alguém tão perdida quanto a origem ou veracidade dos relatos de Moscovici. À medida em que se reencontra com a mãe, ela passa a se reconectar com a cidade de Berlim, passeando por lugares de memória que figuram beleza e, ao mesmo tempo, guardam o terror de episódios históricos como o Holocausto. Como lidar com o pertencimento frente a uma história familiar marcada pelo desterro? 

As imagens correm soltas, autônomas, em associações livres que quase nunca se correlacionam com o que está sendo conversado entre as duas mulheres. Vemos jardins, lápide, céu, árvores, cômodos da casa. Por vezes, os planos são fixados em um lugar da residência, onde talvez nós não nos demorássemos tanto a permanecer com a vista. Gaitán nos convida a olhar pacientemente para uma janela que, devido ao movimento de sua cortina branca, denuncia o vento que transita pelo ambiente, solto, leve, no seu próprio tempo. Observar o modo como esse fenômeno da natureza entra e sai da casa se aproxima à maneira como as memórias de Dina Moscovici percorrem a tessitura fílmica.

A impossibilidade de ser incólume àquilo que busca dá liberdade à Gaitán para fazer intervenções diante de sua entrevistada. “Fala de novo, estou gravando.”, “Isso não é assustador, é lindo!”, “Mas ela [a avó] era judia e frequentava a igreja católica?” são algumas das frases que marcam a interrupção, dúvida ou diferença de perspectiva da diretora em relação a sua mãe. Esses momentos de não apaziguamento entre Gaitán e Moscovici dão certa comicidade ao filme e nos faz perceber, ainda, que não há nenhum desejo de construir uma imagem imaculada para essa figura materna que nos é apresentada. 

Não são os registros históricos, nem tampouco as imagens ficcionais, que se tornam aporte para a construção de uma narrativa sobre si, sua mãe e seus familiares. É o ruído e a não legibilidade que ganham espaço quando uma cacofonia visual e sonora se instauram nesse desejo de ser “historiadora de si mesma”. Apesar das fotografias e dos documentos pessoais que se revelam em frente à câmera, Paula Gaitán escolhe o mistério e a imaginação para grafar o desconhecido, deixando aparente as lacunas, incertezas e mutabilidade das memórias que acompanham e dão forma ao seu mais recente trabalho. Consciente da natureza inconsistente de sua operação historiográfica, Paula Gaitán partilha justamente a instabilidade de sua investigação com as espectadoras a partir da fricção entre imagem e som, nos impulsionando a cocriar diante do que vemos e ouvimos.

A permanência da fala converte a voz de sua mãe em som, que pode ser harmônico, ruidoso ou descompassado. A insistência sonora faz com que a sonoridade, muitas vezes, se torne mais importante do que está sendo revelado pelas palavras. O momento mais evidente desse investimento formal é quando um homem branco fala expressivamente em alemão: nós vemos frontalmente seu rosto, mas a legenda da tradução de suas frases nos é completamente negada. Nos resta, então, ouvir e sermos porosas a entonação e ritmo de seu monólogo. Essa camada de sensorialidade, que não perpassa necessariamente pelo logos, aparenta ser também um certo não entendimento da própria filha em relação ao que é compartilhado por sua mãe.

O trânsito entre revelar as imagens e mergulhar na escuridão da invenção é marcado por duas cores que desenham o campo de força imaginativo de O Canto das Amapolas: vermelho e azul. Em uma quarto de luz vermelha, uma mulher branca olha fixamente para um slide de fotografia analógica. Em imediata associação à revelação das imagens, a sequência marca a vontade dos registros físicos da memória, vestígios que poderiam elucidar a narrativa que está sendo manejada por Gaitán. Já perto do final do filme, é a cor azul que pinta a tela. Com a voz mais debilitada, na imensidão azulada, acompanhamos a mãe de Paula Gaitán afirmar: “tudo é ficção”. A inventividade ganha espaço porque tanto os indícios físicos da memória, quanto a oralidade, são fugidios.

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