Integrante da Mostra Aurora na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022) é um filme em que quatro mulheres compartilham reflexões íntimas sobre suas vidas e lançam um olhar atento à geografia do Distrito Federal. Com uma câmera na mão, cada uma dessas personagens nos apresentam formas singulares de autorrepresentação. A materialidade crua das imagens, aliada a planos extensos e duradouros e narrações em voice over, revela questões acerca do trabalho doméstico, da maternidade e da política institucional.
Os temas são postos em contraste através de um trabalho de montagem que está interessado em tensionar as narrativas que figuram as esferas da micro-história e macro-história brasileiras, especialmente a partir de dois marcos temporais: a redemocratização do Brasil, nos anos 1980, e as eleições presidenciais de 2018. Em conversa realizada pelo entrevistador Renan Eduardo, Amanda Devulsky (diretora) e Pedro Garcia (produtor do filme) compartilham sobre os processos de criação, pesquisa e montagem de Vermelho Bruto e suas percepções em relação à recepção do filme.
Renan Eduardo: Vermelho Bruto estabelece uma conexão entre dois marcos temporais: o processo de redemocratização do Brasil, pós ditadura-civil militar, e as eleições presidenciais de 2018, que marca a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder. Materiais de arquivo e narrações em voice over são entrecruzados de modo a acessarmos as experiências singulares de um conjunto de mulheres brasileiras que foram mães entre 1980 e 1990. Como se deu o processo de pesquisa do filme e como vocês se aproximaram dessas personagens?
Amanda Devulsky: Um dos impulsos iniciais do filme parte de uma questão pessoal com a cidade de Brasília. Nasci lá e me interessava entender a relação dessa geografia com seus espaços “vazios” e monumentais. Uma outra estava ligada às imagens amadoras na Internet. Acho que esses dois pontos apareceram para mim ainda na juventude, naquele momento em que estamos tentando nos reconhecer como pessoa e construir uma certa individualidade. Comecei a me entender e desentender a partir de imagens e narrativas que criava nas redes sociais. Um outro dado importante é que fui filha de uma mulher que engravidou na adolescência entre as décadas de 1980 e 1990. Ou seja, as primeiras questões do filme partem de uma dimensão bastante subjetiva e particular. No entanto, elas formaram apenas os primeiros movimentos em relação ao que estava por vir.
Conversando com Pedro Garcia e buscando entender as imagens amadoras, o que elas são enquanto material de arquivo, nós decidimos colar cartazes em vários lugares de Brasília. As pessoas começaram a entrar em contato e foi a partir daí que passamos a conversar com muita gente. Já me perguntaram algumas vezes como eu havia selecionado as mulheres que estão no filme, mas não acredito que “selecionei” alguém, sabe? Ficamos com aquelas que construímos uma relação, com quem parecia fazer sentido construir um filme junto.
Pedro Garcia: Partiu também de uma vontade delas, de quem demonstrou desejo de estar ali.
Amanda Devulsky: Exatamente! Não sei se escolhi ou se fui escolhida. Acredito que nós tenhamos nos escolhido mutuamente e firmamos um compromisso. Desde o início deixei bastante evidente que esse não era um processo simples, que estaríamos lidando com nossa intimidade, algo que é muito valioso. Que era importante querer mesmo estar ali, querer descobrir o que aconteceu.
Pedro Garcia: Nós começamos a investigação do filme em janeiro de 2016, Dilma Rousseff ainda era presidenta. O Brasil era governado por uma mulher e parecia ser impossível imaginar o que viria depois. Muitas coisas surgiram durante o processo, marcas do momento histórico e tempo estendido de feitura, como a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
Amanda Devulsky: A questão da Dilma era algo que conversava muito com Pedro. A Verberenas começou em julho de 2015 [a entrevistada, Letícia Bispo e Glênis Cardoso criaram durante a graduação na Universidade de Brasília (Unb) uma revista dedicada aos estudos de cinema feito por mulheres] e nós começamos a fazer Vermelho Bruto em janeiro de 2016. Antes da revista, já estava rolando um interesse e algumas discussões em relação à presença das mulheres no audiovisual brasileiro. Muitos debates borbulhando e tínhamos uma mulher no mais alto cargo do Poder Executivo. Nesse sentido, as questões entre gênero e política institucional parecia se desenhar.
Renan Eduardo: Em Vermelho Bruto, há um entrelaçamento interessante entre maternidade, política e trabalho doméstico. Como você, Amanda, percebe esses temas em tela? Como eles te mobilizam enquanto investigação para o cinema?
Amanda Devulsky: Nossa, dá para fazer toda a conversa ao redor dessa pergunta. Não sei nem por onde começar. Você poderia me ajudar, Pedro?
Pedro Garcia: Recentemente, alguém nos falou que alguma parte do filme não seria “política”. Acredito que com um olhar de quem considera política apenas aquilo que se manifesta através das dinâmicas de poder institucional. Para nós, o filme é política do início ao fim.
Amanda Devulsky: Não gosto de falar assim, porque tenho até amigos que são [risos], mas sempre homens brancos e mais velhos esperam que o filme “tenha mais política”, talvez por conta da sinopse, e se decepcionam com uma “não-presença da política”. Quando falamos de maternidade e política, estamos falando de um trabalho que é organizador da sociedade, um trabalho não-remunerado e completamente invisível. Ele é invisível para que justamente possa continuar existindo sem remuneração e valorização dessa força estruturante da sociedade. Estamos falando de trabalho reprodutivo e trabalho doméstico. Existem estratégias de buscar a libertação de violências relacionadas à masculinidade, através do empoderamento financeiro, do trabalho remunerado, do salário e do dinheiro. Nós vemos isso no filme. A forma como essa dinâmica se estrutura é através da terceirização… Mas, não é uma libertação individual. Há um preço social nisso tudo… Bom, é difícil falar, não tenho uma conclusão.
Renan Eduardo: Uma das personagens do filme compartilha que, apesar de ter crescido em um ambiente familiar militarista, ela tem um posicionamento político alinhado à esquerda. Parece haver um processo de humanização da figura do militar no filme. Há um descolamento dessa figura apenas enquanto uma instituição, ainda que Vermelho Bruto nos relembre de várias formas que o militarismo é uma marca recorrente na construção da história do Brasil. Como vocês se veem diante dessa tensão entre a perspectiva micro-histórica (o militar enquanto um sujeito, um pai, uma pessoa que compartilha afetos) e macro-histórica (a figura que representa uma força política ímpar no Estado e na sociedade brasileiros)?
Amanda Devulsky: No processo de montagem, percebia que nessa personagem em específico havia um incômodo muito grande com certo julgamento que poderia haver por conta disso. Comecei a tentar criar empatia pelo receio dela. No filme, isso acaba ficando curioso, porque, de todas os bebês que nasceram, ela é a única personagem que o pai se responsabiliza por sua criança. A mãe e ele se casam e ambos estão juntos até hoje. Acredito que estamos dentro de uma esfera cultural e política que têm uma visão simplista, no sentido de acreditar que a ideologia da instituição é uma replicação das pessoas que a formam. Fui transformando essa leitura em mim durante o processo. Acho que, se não fosse assim, teria sido impossível fazer o filme. Não há nenhuma intenção em ser a favor do militarismo ou não. A questão é que a simplificação desse debate, desse binômio entre o bem e o mal, de forma totalizante e moralista, não nos serve. Entendo esse dualismo enquanto estratégia política, enquanto reação a violências que vivemos. Mas, à longo prazo, não dá conta. Acho interessante que exista uma certa ambiguidade no filme sobre isso.
Pedro Garcia: Acredito que Vermelho Bruto apresenta uma certa recusa a respostas imediatas… Enquanto vocês estavam falando, fiquei pensando na minha experiência enquanto professor, lidando com adolescentes de 17 anos. A Polícia Militar é a instituição que mais mata a juventude negra nas periferias brasileiras. Quando converso com meus alunos, a esperança de conseguir uma renda é se alistar para o Exército. Quem é esse menino? É muito fácil pensarmos que “ele está errado”. Acho que precisamos saber acolher melhor as contradições. Saber olhar para elas com atenção, ao invés de correr atrás de respostas rápidas.
Amanda Devulsky: O que não significa ser condescendente.
Pedro Garcia: Nem ser tolerante com violências que são inaceitáveis. Convivemos com várias atitudes inaceitáveis. Não podemos tolerar. Mas, não tenho uma resposta imediata para isso.
Amanda Devulsky: Há outra coisa que gostaria de acrescentar, para fecharmos essa questão. Durante todo o processo, nós nos importávamos muito em não instrumentalizar as vidas, falas, imagens e sons os quais estávamos lidando. Isso tem a ver com essa ambiguidade presente no filme, com as contradições. Nós tínhamos doze horas de conversas gravadas e infinitas horas de conversas não gravadas com cada uma. Chegou uma hora que cheguei a pensar que poderia estar fazendo uma coisa super escrota com esse material… É muito poder, né? Às vezes, isso é feito: “Tenho uma ideia e um discurso sobre o mundo, irei usar as vozes de outras pessoas para validar isso”. Nunca quisemos isso. Dar espaço às contradições era preciso para nos relacionarmos de fato com o que estava ali.
Pedro Garcia: Seria muito fácil retirar o que é ou pode vir a ser incômodo. Precisamos lidar com isso, porque durante o processo estabelecemos relações.
Renan Eduardo: Em Vermelho Bruto, ao passo que há uma verborragia clara e audível em relação aos relatos compartilhados por essas mulheres, as imagens operam pelo caminho contrário: são turvas, pixeladas, ruidosas e até mesmo glitcheadas em alguns momentos. Gostaria de ouvir vocês acerca desse contraste entre imagem e som.
Amanda Devulsky: A voz era um elemento muito importante para mim. Na etapa de edição de som e mixagem, às vezes rolava a tentativa de fazer um direcionamento do som, uma tendência em querer tornar o conteúdo das falas mais compreensível. Mas, eu não queria que ficasse tudo compreensível. Havia um esforço de misturar o que está no som e na imagem. Praticamente todos os sons do filme são reaproveitados dos arquivos, das câmeras compactas, dos ambientes em que as coisas foram filmadas. Às vezes não entrava a imagem, mas o som entrou, sabe?
Há uma grande costura de registros que talvez, em outro processo, fosse descartado. Gosto muito de uma frase que é assim: “O que é bom para o lixo, é bom para a poesia”. Existiu um esforço para que as vozes, na realidade, ficassem ao fundo. Acho que isso tem a ver com a leitura que considera que esse tipo de experiência doméstica e pessoal seja menor, já que não faz parte da história oficial… Não queria que tudo fosse 100% decifrado, mas que bom que essa valorização das vozes delas parece estar muito presente no filme. Nas imagens, tudo que está lá é do próprio material. Não colocamos nenhum efeito visual. Não tem colorização, entende? Não fazia sentido.
Pedro Garcia: As intervenções no material se dão por efeitos de fusão e sobreposição. É um artifício de montagem, de colocar as imagens em relação.
Renan Eduardo: Essa intervenção parece vir da própria condição do material de filmagem, da deterioração do digital, do VHS…
Amanda Devulsky: Uma materialidade meio bruta.
Pedro Garcia: Tem uma imagem que as pessoas acham que intervimos… Aquela azulada. Ficou assim por conta da troca das câmeras do magnético.
Renan Eduardo: Vermelho Bruto tem como dispositivo esse ato entregar a câmera nas mãos de suas personagens. Esse material está em boa parte do filme. Assim como documentam o cotidiano, o âmbito privado, essas mulheres perambulam e observam o Distrito Federal. O rosto delas pouco aparecem, mas acompanhamos diálogos instigantes e formas particulares delas observarem o mundo. Como vocês percebem o uso que elas fizeram da câmera?
Amanda Devulsky: Ficou muito evidente para mim, desde o início, que cada uma se relacionava com a câmera de um jeito bastante particular. Era algo que não estava sob meu controle, achei excelente. É bom ver isso acontecer e constatar que existe um gesto do olhar, um gesto do corpo, escolhas que ficam impressas nas imagens. Enquanto espectadoras, isso acaba sendo uma das chaves que utilizamos para tentarmos decifrar quem é que está em tela.
Pedro Garcia: Você falou do rosto… Tem algumas pessoas que falam que o rosto delas nunca aparece, mas todas elas aparecem em tela, nem que seja por um breve momento.
Amanda Devulsky: É até uma fake news isso de que não aparece o rosto delas! [risos]
Pedro Garcia: Acho que essa questão também vem de um lugar de centralidade que o rosto ocupa hoje em dia. Sobretudo com isso das selfies, das imagens da câmera frontal. Isso dialoga com um curta da Amanda, Tente Não Existir (2018)…
Renan Eduardo: Enquanto vocês estavam falando, lembrei do filme da Paula Gaitán, O Canto das Amapolas (2023)… Os rostos das pessoas quase não aparecem lá, né? Paula não está nas fotografias que fazem parte dos documentos exibidos durante o filme… Ela se filma mais de costas ou recorta uma parte de seu próprio corpo. A mãe dela só é vista através de fotografias e não por meio de um plano feito pela diretora. Acho curioso estabelecer essa conexão entre seu filme e o dela…
Amanda Devulsky: Não sei, há vários pontos relacionados a isso. Mas, gosto de destruir essa fake news de que os rostos das mulheres não aparecem em meu filme. Comentei especialmente com uma delas, de que estavam falando que elas não apareciam e que isso era um problema. [risos] Em relação ao filme da Paula, acredito que existe uma dimensão do segredo, da autopreservação e da opacidade que para mim são fundamentais. Esse incômodo em relação ao rosto, é algo que talvez precisássemos olhar com mais cuidado. É importante entender que a forma como elas filmam é uma escolha delas. Que elas são pessoas autônomas e que refletiram bastante sobre o modo de construir essas imagens sobre suas próprias vidas. Elas não fizeram isso por acidente. Acho essa perspectiva meio escrota.
Essa mulher até fez um comentário, quando fui conversar sobre isso da aparição ou não dos rostos: “Graças a Deus, ainda bem que não aparece meu rosto na cena X. Como o filme é mesclado, talvez não dê para ter certeza que sou eu. Tenho receio. Vão colocar meu no Google e posso me prejudicar por causa disso!” Era preciso conseguir criar um ambiente seguro para que questões tão íntimas aparecessem. Fico pensando de vez em quando: “O que mais vocês querem? Que elas tirem a roupa?” [risos] Acho um pouco invasivo esse incômodo do rosto supostamente não estar lá. Essas pessoas já estão se revelando tanto. Esse pensamento é uma espécie de ingratidão.
Pedro Garcia: Essa é uma preocupação que está desde o início do filme: o cuidado com elas. Mais do que o desejo de revelar algo para Vermelho Bruto, estávamos sensíveis a como isso poderia afetar a vida delas.
Amanda Devulsky: Fico com um pouco de medo de falar, mas assim, foda-se o filme, sabe? As pessoas importam mais que o filme. É claro que ligo para o filme. Não o fiz por dinheiro, não tô “me dando bem” com ele. Foi muito sacrifício, trabalho para caralho e um monte de correria. Eu me importo com o filme, mas mais importante são as pessoas.
Renan Eduardo: Assim como no filme do João Dumans, As Linhas da Minha Mão (2023), percebi que Vermelho Bruto tem um tempo bastante particular de aproximação com suas personagens. Como a noção de tempo do filme foi construída até chegarmos no corte final?
Amanda Devulsky: Há várias coisas aqui e toda vez que me perguntam respondo de forma diferente. [risos] Não dá para abarcar tudo, mas talvez um dos pontos mais importantes é a relação do tempo das imagens e de estabelecer uma espécie de intimidade com elas. De modo a percebermos algumas coisas que não estão evidentes, que nem sempre estamos acostumados a reparar, sabe? Há também o tempo de relação com todas aquelas histórias. Não nos interessava uma lógica invasiva de penetração, de despir as pessoas e querer saber tudo sobre elas. De decidir o que era importante sobre elas, no lugar delas. Sobretudo quando estamos falando de mulheres brasileiras que foram mães na adolescência, mulheres de trajetórias sociais, racialidades e experiências bem distintas com a maternidade.
É muito fácil alguns sujeitos ficarem bem vulneráveis a esse tipo de “pornografia do trauma”, do tipo, “vou pegar sua dor e fazer um grande espetáculo com ela”. Como se isso fosse fazer um grande bem ao mundo. Há bastante episódios e relatos pesados no material bruto. Sei mais do que as pessoas assistiram porque tive acesso ao material todo e estabeleci relações com elas. Não queríamos que o filme focasse nisso, porque acho uma espécie de revitimização, de reduzir a vida de alguém a isso. Iria odiar se acontecesse comigo. Essas questões impactam diretamente o tempo do filme. É o tempo da relação, de lidar com assuntos complexos, ambíguos, alegres. Não tinha como fazer esse filme com menos tempo.