Infantaria e infância são palavras que dividem o mesmo radical: infan. No dicionário, enquanto a primeira significa “tropa militar cuja característica principal consiste em combater à pé, em qualquer tipo de terreno e sob quaisquer condições meteorológicas”, a segunda é descrita como um “período da vida, no ser humano, que vai desde o nascimento até o início da adolescência”. Apesar de sua proximidade sonora, há uma evidente distância de conceituação entre ambos substantivos. No entanto, em Infantaria (2022), de Laís Santos Araújo, é possível encontrar zonas de confluência entre eles.
No curta alagoano, acompanhamos um núcleo familiar majoritariamente negro formado por uma mãe (Ane Oliva) e seus dois filhos, Eduardo (Francisco Nunes) e Joana (Ana Luiza Ferreira). O pai das crianças não está presente na casa onde acontecerá o aniversário da menina e a ausência dele parece ser sentida por Eduardo. Enquanto a pequena se anima perguntando pelas garotas que irão a sua festa, o irmão pergunta pelo pai. Joana brinca com esmaltes, veste fantasia de princesa da Disney, sonha com o seu príncipe encantado e espera ansiosamente pela menarca. Por outro lado, Eduardo empunha uma arma de brinquedo e busca incessantemente a presença do pai. Em um diálogo com o irmão, Joana o questiona: “Por que todo homem de cabelo raspado você pensa que é seu pai?”. A distinção de signos e comportamentos associados ao “masculino” e “feminino” entre Joana e Eduardo, assim como a forma particular que cada uma delas lida com a ausência do pai, intensifica as diferenças de gênero entre as crianças.
Mesmo compartilhando a fase de transição para a adolescência, irmão e irmã aparecem como se estivessem em posições radicalmente opostas de um círculo cromático. A experiência de deixar de ser criança é traduzida no ato de se transformarem, respectivamente, em “homem” e “mulher”. Isso fica explícito, por exemplo, quando Eduardo ameaça denunciar Joana ao pai por, segundo suas palavras, “comportamentos estranhos”. Na ocasião, a menina derramou um esmalte vermelho em sua calcinha, fazendo alusão à menstruação, e ficou segurando a peça antes de dormir. A ação lida pelo garoto como “estranha” ou “ameaçadora” pode ser percebida como um inocente desconhecimento dele em relação ao assunto – menstruação – ou até mesmo como reflexo de misoginia. Numa cena posterior, Eduardo aponta uma arma de brinquedo na cabeça da irmã, pega a calcinha que estava na mão dela e joga no rio. A masculinidade de Eduardo, nesse sentido, é manifestada de maneira intrusiva e reativa ao que ele entende como “feminino”.
A oposição entre os irmãos continua na festa de aniversário de Joana. A mãe elogia o cabelo cacheado da menina e diz que ela deveria mantê-lo solto. Eduardo afirma que o cabelo da garota está horrível. Depois de desdenhar dos cachos da irmã, ele corta os seus próprios cabelos sozinho. A ação torna-se um gesto de rejeição ao feminino – o som da banda marcial militar que toca neste momento nos mostra que, havendo uma infantaria, Eduardo não estará na mesma tropa que elas. Mais adiante, ainda no aniversário, as personagens tiram fotos na decoração da festa: na primeira fotografia estão apenas Eduardo, a mãe e Joana, e esse é um dos poucos enquadramentos onde podemos vê-los todos juntos. Fica nítido, no entanto, que há uma diferença no jeito em que as duas se comportam em relação à Eduardo. O menino parece estar ali à contragosto.
O conflito entre Eduardo e Joana também é demarcado territorialmente: no quarto em que dormem, há uma cortina dividindo o espaço de cada um. A diferença da decoração estabelece fronteiras: a parede da cama do menino é preenchida por desenhos de tanques de guerra, bonecos de soldados, armas e aviões militares, o lençol de sua cama é ilustrado por uma estampa camuflada; Já no espaço de Joana, há um mosquiteiro rosa, fotografias de mulheres e pequenas esculturas de anjos. Em meio a essa zona de guerra com lados opostos, chega Verbena (Karolayne Raíssa), uma adolescente que tentará fazer um aborto com a mãe das crianças.
A adolescente aparece como um elemento intrusivo. Apesar de não ter sido convidada para a festa de Joana, Verbena surge pelo rio, nas águas onde Eduardo havia jogado a calcinha melada de esmalte vermelho. O espaço festivo é ameaçado pelo risco dos efeitos colaterais da pílula abortiva que Verbena tomou e pelo mau humor do garoto. Entretanto, apesar do violento processo de adequação aos papéis sociais de gênero que Joana e Eduardo estão atravessando, a leveza e inocência presentificam-se nas cores contrastantes de figurinos e cenários, nas brincadeiras das crianças que dançam e estouram balões. A festa de 10 anos de Joana é a brecha que os personagens possuem para brincar e celebrar em meio a zona de guerra. Menos para Verbena, que dança timidamente no sofá, com um olhar de melancolia.
A cama de Eduardo, encostada na parede que representa o imaginário da guerra e da afirmação do masculino para o menino, é manchada pelo sangue de Verbena. Mesmo com a cortina e a decoração dividindo o espaço das crianças, a adolescente borra as fronteiras da divisão de gênero estabelecidas ao usar a cama do menino, o que faz com que ele questione a mãe sobre o que está acontecendo na casa. Apesar dos elementos do militarismo e da guerra estarem decorando o lado do quarto de Eduardo, em Infantaria, esse campo de batalha parece ser ocupado pelas mulheres. São elas que estão na linha de frente e em estado de batalha: saem de madrugada para conseguir remédios e se juntam no quarto para cuidar das que foram atingidas pelo combate.
A presença da mãe em oposição a ausência do pai também funciona como uma certa analogia ao modelo de muitas famílias brasileiras. É através disso que Infantaria posiciona o quanto a imposição de gênero e suas performances binárias são violentas. Desde a infância, os papéis “femininos” e “masculinos” constroem uma verdadeira zona de guerra, na qual há um papel muito rígido e definido a ser seguido. Estabelecido o embate, são as meninas que são as maiores vítimas dela. E como em toda guerra há lados, há também os desertores, nesse caso, Eduardo, que após sua irmã tomar uma pílula abortiva mesmo sem estar grávida, reage ligando para o batalhão do pai para denunciar ela, sua mãe e Verbena. Assim como na cena de Eduardo cortando o cabelo, a trilha sonora volta a ser uma música militar. A guerra iniciada com Eduardo colocando a arma de brinquedo na cabeça de Joana foi deflagrada e teve seu conflito final.