“Nós gostamos de fazer filmes e gostamos de fazê-los juntos”: uma conversa com Glenda Nicácio e Ary Rosa | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Nota da editoria: Este texto foi publicado no catálogo da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2023, onde Glenda Nicácio e Ary Rosa, co-fundadores da Rosza Filmes, foram homenageados. A transcrição foi realizada por Regina Cássia. Decidimos republicá-lo no dossiê “Inventar coletividades, disputar o cinema”, da câmarescura, para tornar o texto mais acessível ao público.

Um trabalho que não é divisão: é soma. A trajetória da Rosza Filmes é marcada pela coletividade, por uma produção multifacetada e pela busca incessante de fazer cinema. Em 13 anos de companheirismo e trabalho, Glenda Nicácio e Ary Rosa – junto a sua equipe, elencos e o Recôncavo Baiano – convocam o cinema brasileiro a descentralizar seu olhar e investir em possibilidades cada vez mais colaborativas em seus modos de produção. Café com Canela (2017), Ilha (2018), Até o Fim (2020), Voltei! (2021) e Na Rédea Curta (2022) fazem parte dos caminhos da produtora que une inventividade à formações educativas, singularidade à história da cinematografia brasileira e proposições estético-reflexivas que se alimentam também de uma linguagem popular e pedagógica. Nesta entrevista, os diretores e fundadores da Rosza Filmes compartilham memórias que mesclam amizade e labor, sobre seus processos criativos e aquilo que os movem em torno – e para além – do cinema.

Lorenna Rocha: Glenda e Ary, vocês foram colegas de turma, dividiram casa juntos durante vários anos e um dos frutos mais visíveis dessa vida compartilhada é a Rosza Filmes. Como o entrelace da amizade com o trabalho impacta nas produções fílmicas e na história que tem sido construída a partir da Rosza?

Ary Rosa: Em 2010, aqui em Cachoeira, chegou gente de várias partes do Brasil que havia realizado o ENEM. Nós somos da primeira turma do SISU. Naquela época, só dois cursos de cinema aceitavam essa forma de ingresso: o da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que era mais focado em animação, e da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Viemos para cá e estávamos numa cidade do interior, com 30 mil habitantes, tentando se adaptar a essa universidade e à Cachoeira. Nesse processo, de alguma forma, nós fomos construindo uma família. Nas datas comemorativas, por exemplo, não voltávamos para casa, só nas férias. Todos os feriados, todas as festas, passávamos juntos. E assim foi surgindo uma amizade. Entre mim e Glenda isso se deu muito forte, claro, mas se estende à boa parte da nossa equipe. Foi bem natural criarmos a produtora, porque logo entendemos que, como existia um investimento no interior para esse curso de cinema, pela lógica, também deveria haver uma demanda para isso. Acreditávamos que ia surgir essa demanda. E uma empresa seria o ideal para recorrer a elas, né? Via ANCINE, Estado… Foi por esse raciocínio que montamos a Rosza Filmes no quintal de casa. 

Foi uma escolha acertada, à luz da história, mas que se deu de uma forma muito maluca! Porque, imagina: Glenda tinha 18 anos, eu tinha 23, e, com essa idade, estávamos mexendo com CNPJ, contador, imposto. No entanto, foi isso também que nos garantiu acessar lugares interessantes. E fez valer um discurso não só de um cinema feito no interior, mas que respeita o ponto de vista desse território. Nossa história começa assim e está muito implicada entre uma vida pessoal e profissional. O escritório da Rosza Filmes, até 2018, era a cozinha da nossa casa. Entre os documentos, estava o café, o pão, a manteiga, o gato… [risos] Acho que tem um amadorismo nisso tudo. Não no sentido de improviso. Mas, de amor pelo que se faz. Isso moldou nossa forma de trabalhar e de ver o audiovisual. Porque, em última instância, foi aqui que nós aprendemos a fazê-lo, né? Em Cachoeira, com essas pessoas.

Lorenna: A educação, a formação, a Universidade, parecem construir o grande ponto de conexão entre vocês. E, claro, esse amor por Cachoeira. Ilha (2018), de alguma forma, condensa tudo isso, né? No filme, há um encontro muito bonito entre cinema e educação, onde tenta-se cocriar ou oferecer ferramentas para que os sonhos ou o imaginário coletivo de um lugar floresça, que se materialize como força de expressão de um ambiente ou de um grupo de pessoas. Gostaria de ouvi-los sobre essa relação entre cinema e educação no trabalho da Rosza Filmes.

Glenda Nicácio: É engraçado te ouvir falando do Ilha. Fico do lado de cá pensando: “Nossa, mas, de fato, é muito a gente, muito do que a gente acredita deste ofício de fazer cinema.” Fazer cinema pode ser muitas coisas e pode acontecer de várias formas. Ilha é muito simbólico, porque ele vem logo depois de termos feito o Café com Canela (2017). De certa forma, ele carrega todo esse histórico e essa estranheza que é fazer cinema. É muito estranho, é muito agressivo fazer cinema, não é? Muita gente, muita gente junto numa cidade, numa rua, numa casa, num set que tem que comportar tudo. E isso não é nada natural! O cinema fica tentando nos jogar para esses lugares do: “Ah, isso é natural.” Mas, convenhamos, não é. Uma das coisas que nós mais gostamos de fazer é justamente olhar para essas coisas do cinema e falar: “Nossa, não tem nada de natural nisso. Isso é uma loucura, um absurdo.” [risos] E, desse lugar, poder jogar com essas questões e colocá-las na tela, a partir dos processos que vivemos. Esse estreitamento entre cinema e vida. 

Pensar cinema junto à formação faz parte de nossa trajetória. Primeiro, porque é o lugar que nos encontramos enquanto coletivo. Eu, Ary, todos os nossos amigos e equipe nos conectamos dentro da UFRB. É muito raro e bonito o ato de aprender alguma coisa junto. Acho que, quando você aprende alguma coisa junto de outra pessoa, uma relação de irmandade se estabelece. Então, por mais que haja um milhão de diferenças entre nós – porque somos muito diversas e distintas  –, há um fiozinho que une e guia nosso pensamento, nossa paixão pelo cinema. Isso é muito Cachoeira. Que é ter aprendido cinema através da perspectiva de uma cidade histórica, preta. Ter aprendido cinema na rua. Que cinema é rua, é gente, é corpo. 

Por isso, não à toa, nós temos um olhar tão atento para o movimento dos corpos em nossos filmes. A câmera está sempre correndo através dos corpos e não o contrário. E há sempre uma tentativa de chegar perto da vida. Quando você fala do diálogo entre cinema e educação, me lembro da época em que nós fizemos o “Experimentando a Câmera” e o “De Rede em Rede”, projetos de quando abrimos a Rosza e falamos: “O que vamos fazer da nossa vida?”“Vamos fazer filmes e fazer projetos educacionais. É isso que acreditamos e é para isso que viveremos agora.” Nós decidimos e assim temos feito. Lembro muito de uma oficina que ministramos em Valença. Inicialmente, dávamos aula sobre linguagem cinematográfica, depois os alunos iam aprendendo sobre todos os outros setores e, em seguida, a galera escrevia um roteiro e filmávamos. Nessa ocasião, no dia da filmagem, um dos meninos queria descer de um barranco. Lembra, Ary?

Ary Rosa: Sim! [risos] Era uma caixa d’água. Era botar a pessoa dentro da caixa d’água e rolar ela barranco abaixo.

Glenda Nicácio: Era um barrancão assim… Uma ribanceira. O Ary falou: “Nossa, dentro da escola, será que…?”“Não, mas a gente faz isso todo dia. Nós fazemos isso todo recreio, nossa diversão é essa. Só queríamos, dessa vez, descer filmando.” E a gente: “Tá bom, tá bom. Mas é garantido?”“Tudo certo.”

Ary Rosa: Nós deixamos?

Glenda Nicácio: Claro que deixamos! [risos] Porque eles já faziam isso, entendeu? Não era uma coisa nova: faziam isso em todos os recreios. Mas, dessa vez, eles só queriam filmar. E a gente deixou. Coração na mão, mas deixamos. E acho que isso é uma coisa que nunca vou esquecer, nunca quero esquecer, porque isso diz muito da forma como lidamos com o cinema. Você pode filmar o mundo de um tanto de jeito, mas é gostoso poder filmar o mundo desses lugares que oferecem um pouco de risco e trazem a descoberta. É tipo: “Tudo bem, a gente pode filmar do recreio aqui de baixo, mas você já viu que loucura que vai ser filmarmos descendo da ribanceira? Vocês já viram essa imagem?”“Não.”“Então, deixa a gente fazer.” Acho que foi mais ou menos isso que ele pediu e é um pouco disso que nos norteia para pensar o cinema e a educação em nossa produção.

Lorenna Rocha: Em uma entrevista que fiz com Joana Pimenta e Adirley Queirós, na camarescura (2022), o diretor afirmou que, para ele, o cinema era um modo de produção e que, se nós o entendêssemos, seria possível vê-lo refletido no filme. Acredito que essa declaração pode contribuir para olhar para a Rosza Filmes, pois essa coletividade dos processos de criação aparecem na tela. Fico pensando acerca das autorias compartilhadas ou coautorias nas obras de vocês. Como se dá essas cocriações em seus trabalhos?

Ary Rosa: Desde o início, nós tivemos que entender formas de produção que não fossem iguais às do eixo Rio-São Paulo. Seria impossível, e até desnecessário, querermos reproduzir um modelo de indústria, ser um cosplay dela, numa situação que é completamente diferente. Nós falamos que temos um tripé que estrutura nosso cinema: território, coletivo e economia criativa. Acho legal você falar do Adirley, porque tanto ele quanto a Filmes de Plástico são agentes culturais que estão fora desse eixo… E penso que as coisas acontecem muito por necessidade. Porque, primeiro, é o território que nos possibilita ter um ponto de vista, ter a narrativa, que, por sua vez, possibilita nos aproximarmos do público que nos interessa. Isso de poder contar histórias universais, mas a partir de um ponto de vista que parte de algo novo, diferente, que nunca foi usado, ou usado poucas vezes, ou muitas vezes, por agentes que não são exatamente aqueles que estão no centro da narrativa, entende? 

Segundo, é o coletivo. Cinema é coletivo. Cinema não é espaço para gênios. Quem sabe a música seja esse lugar, as artes plásticas… Cinema não é. Existe um fetiche, claro, da genialidade. Mas essa coisa nunca pegou muito a gente. Nunca tivemos vontade ou comemos desse reggae do gênio, como se tivesse alguma coisa pura ali dentro de nós ou uma aura. O que sabemos é que o cinema é coletivo. Se não tenho aqui, nesse momento da entrevista, Augusto Bortolini filmando, Mateus Riberio gravando o som, como eu e a Glenda íamos dar conta de fazer tudo isso? E nós precisamos lembrar que essas pessoas são agentes criativos também. Ouço muitos relatos de sets em que parece que a única pessoa artística é o diretor. O resto é tudo mão-de-obra, é técnica. Não caminhamos desse jeito. Qualquer decisão de enquadramento, de posicionamento de câmera, textura de som, do local para colocar certo objeto cênico, é uma decisão criativa. Acredito que entendemos isso muito rápido. Porque também necessitamos de uma equipe que trabalhe não apenas junto, mas com, né? Que se comova conosco. 

E, por fim, a economia criativa. Entender que cinema, além de muitas outras coisas, é dinheiro. Muitas vezes ele não chega até nós ou não é a melhor parte dele que nos chega. Mas, cinema é dinheiro. Quando ganhamos um edital, estamos ganhando um edital a partir do lugar em que estamos concorrendo por ele. Não acredito que seja justo receber o financiamento de um edital em Cachoeira e gastar tudo em Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro. Para mim, vamos gastar tudo aqui em Cachoeira, Muritiba e São Félix. Vamos contratar o povo daqui. “Ah, mas não tem mão de obra especializada?” Não tem problema, especializamos a mão de obra. Foi o que fizemos em Café com Canela. Tivemos uma ideia fantástica… Bom, quando começamos um filme temos ótimas ideias, né?

Glenda Nicácio: Sim… [risos]

Ary Rosa: A ideia era: construir uma casa. A casa da Margarida (Valdinéia Soriano) foi construída aqui embaixo. Então, é parede de mentira. Queríamos dilatar o espaço, comprimi-lo ou mover a parede no meio da cena. Só que não havia mão de obra. Poderíamos muito bem contratar uma galera de Salvador, lá também comprar o material e mandar tudo de caminhão para cá. No entanto, naquele momento, parecia mais lógico chamar profissionais com experiência e oferecer cursos para o pessoal daqui. Nessas formações tivemos alunos de escola pública, pessoal da comunidade, uma galera da Universidade que era interessada em arte. Durante a oficina, as pessoas foram construindo a casa da Margarida. Custou mais dinheiro e tempo? Custou. Mas, hoje, nós temos uma equipe por conta disso. Que depois fez Ilha (2018), Até o fim (2020), Voltei! (2021) e Na Rédea Curta (2022). Isso é muito valioso. As perspectivas vão se alterando para podermos produzir o que desejamos, sabe? E isso se imprime no filme? Claro que sim. O processo é o filme. Não tem como desprezarmos que as pessoas que fazem o filme é o filme.

Glenda Nicácio: Uma sensação que tenho, no decorrer desses anos junto com Ary, é que o filme acaba sendo melhor do que estava inicialmente em nossas cabeças. Tipo, em nossas cabeças ele é até legal. [risos] Mas, de repente, chega uma equipe incrível, que vai deixar a coisa muito mais gostosa, mais fluída, com muito mais cara do lugar… E, nesse sentido, acho que gostamos de jogar com a realidade até dessa forma… Podemos estar produzindo uma ficção, mas não é só ficção. A gente sabe que não é ficção; é com outras dinâmicas que estamos lidando. Desde muito cedo, aprendemos a olhar para essas dinâmicas da realidade e entender que era a partir delas que o filme também surgiria. Não valia à pena tentar fazer o filme que estava em nossas mentes. Na verdade, a vida tratou de nos dar, logo de cara, uns três pontapés, que falamos: “Tá bom, já entendemos, vida. Pisa devagar, já entendemos.” [risos] Desde então, temos seguido assim.

Lorenna Rocha: É muito massa teu relato, Glenda, porque, para algumas pessoas, ouvir que se faz cinema em Cachoeira poderia ser visto como um “grande problema”, né? Por estar fora do eixo, onde o dinheiro circula menos. E pela leitura da precariedade como algo limitante, paralisador. No entanto, já são cinco longas, alguns projetos paralelos, várias formações…

Ary Rosa: É importante dizer que o precário não é um crime. O precário pode ser uma estética. Acho que eu e Glenda fazemos um cinema precário. A precariedade faz parte do processo. Que não quer dizer malfeito, nem pouco sofisticado, mas faz parte. Emerson (Renan Motta) parafraseia [Rogério] Sganzerla no Ilha: “Aqui os filmes são subdesenvolvidos por natureza e por vocação, man.” Esse é um pouco do nosso discurso. Não queremos fazer um filme perfeito. Primeiro, porque não somos perfeitos. Porque o Brasil, o audiovisual brasileiro e as estruturas políticas desse país não são perfeitas. Por quê iríamos querer fazer algo perfeito? Não buscamos isso. Queremos contar uma história e dialogar através de vários pontos de vista que são muitas vezes negados. Essa precariedade reflete na economia. O filme é dinheiro também, falamos disso há pouco. E é a criatividade que, na falta de dinheiro, faz com que a gente tenha que inventar as coisas.

Glenda Nicácio: Essa discussão desemboca num lugar que é muito valioso para nós: a criação de linguagem. Talvez essa seja uma das coisas que mais nos debruçamos, para além ou junto de pensar a economia criativa e de pensar os filmes a partir do território. Tudo isso está junto à linguagem. As situações precárias que nos cercam estão todas muito bem colocadas e impressas nos filmes. Eu gosto, porque não é nesse lugar de denúncia. É mais num lugar de estarmos juntos. Não tem como separar o cinema que nós fazemos da precariedade. É impossível. Seja pelo lugar onde estamos, pelas políticas que temos acesso, que ainda são muito pequenas, muito restritas, instáveis. Nunca tem essa tranquilidade: “Ah, agora vai…” Não. Estamos sempre por um fio. A sensação que temos é que a qualquer hora tudo pode acabar. Mas, vamos continuar aqui. Como poderíamos fazer um cinema diferente?

O Café com Canela, por exemplo. É ótimo quando as pessoas assistem, ainda hoje, depois de tanto tempo, e falam: “Nossa, mas podia se passar em qualquer lugar, né?” Mas, nunca sei se isso é um elogio ou uma crítica. [risos] Para mim não tem como imaginar o Café com Canela e conseguir se afastar de todo o imaginário que é criado em torno de Cachoeira, de São Félix, do rio, de Oxum… Isso fica impresso no filme. Em que momento uma cinematografia de fora poderia fazê-lo? Acho que isso só acontece a partir do momento que somos obrigados a olhar para nós mesmos. Não é fácil ter que se olhar, se assumir e falar: “O que somos, afinal de contas?” Ninguém explica nada para nós, ninguém quer que entendamos o lugar que estamos. Quando nos olhamos e aprendemos a nos gostar, se forma um outro tipo de existência.

Lorenna Rocha: Em uma entrevista para a Revista Cinética (2021), Ary afirmou que Cachoeira ensinou vocês a fazer cinema negro. Fico com a impressão que tudo que os dois falaram até aqui tem uma ligação com modos de fazer que são pretos. E, na Rosza Filmes, ainda há esse diálogo muito estreito com a cidade, como algo que atravessa incessantemente o cinema negro criado por ambos. Vocês poderiam comentar sobre isso?

Glenda Nicácio: É muito gostoso fazer parte do mundo nesse momento, especialmente no Brasil, em que falamos “cinema negro”, “cinema preto”, e ele pode ser qualquer coisa, dentre tudo que pessoas negras estão produzindo. É uma grande caixa em expansão que se abre para fora. Tenho admirado todo esse movimento. Que delícia poder trocar, fazer parte dessas ondas, desses contornos que chegam a cada filme. Porque cada filme traz uma contribuição específica para o que estamos construindo enquanto imaginário preto. Isso é muito importante. 

Ouvindo você falar, me lembro de Café com Canela, onde nós tentamos criar uma estética da câmera com Oxum. Ou de chegarmos num lugar e tentar imaginar a luz de uma cena específica, de modo que trouxesse a cidade para a fotografia, discutindo a luz do filme a partir dos lugares da cidade. Ou a paleta de cor a partir de uma visita na feira. – “Nossa, qual é a cor desse filme?”“Esse aqui é marrom.” Ele é marrom, porque a cor da pele das pessoas dessa cidade é marrom e elas vão estar estampadas no primeiro plano. Para além das questões do barroco, da terra e de tantas outras coisas, essas palavras-chave, que podem dizer sobre a identidade de Cachoeira. – “E amarelo.” É também amarelo, porque as luzes dos postes, quando elas são acendidas, nos banham dessa cor. Acho bonito o modo como a cidade aparece nesses processos de criação. Processos que vêm a partir das vivências negras daqui. De observá-las e da participação delas nos filmes.

Para além de ser uma diretora negra, e estar assumindo nossa equipe, nós temos pessoas muito diversas conosco, em todos os sentidos: de gênero, raça, sexualidade, faixa etária. Acho isso essencial para que nós consigamos chegar nos lugares que são tão importantes para nós, que são nossas pautas e discussões. Quando temos uma equipe, um elenco, com tanta gente preta junta, para se debater ou filmar uma cena, por mais simples que seja, isso faz toda a diferença. Nós nos dedicamos muito durante a pré-produção. Temos tempo de poder olhar para as coisas e questioná-las. E isso não acontece apenas entre mim e Ary, mas com todas as pessoas que estão envolvidas no trabalho. Em meio aos questionamentos, surgem lembranças, memórias, coisas vividas, coisas muito íntimas, de um lugar muito pessoal, que, de repente, está dentro do filme. Parte de nossas vivências pessoais vai junto com as personagens.

Ary Rosa: Há também a questão do elenco. Para além da equipe ou das nossas escolhas, ele traz, na sua forma de ler o roteiro, de vestir uma roupa, de performar em frente à câmera, toda a referência de uma história. Hoje, a base de nosso elenco passou pelo Bando de Teatro Olodum (BA). Isso fica impresso a cada vez que essas pessoas atuam diante da câmera. Tem a pré-produção, como a Glenda falou, que é muito importante, mas também tem o “valendo”, onde as pessoas estão trazendo todas as suas informações diante da câmera, se expondo, colocando o seu corpo à disposição de um trabalho, de uma personagem. Acredito que é nesse momento que começa a composição mais bonita de um filme.

Lorenna Rocha: Ainda sobre essa questão da composição e cocriação, tem algo bem forte na filmografia de vocês, sobretudo em Até o fim e Voltei!, que é o lugar da palavra e da transmissão das histórias através do canto, enquanto vetor de imaginação. Como percebem essa conexão entre som e oralidade?

Ary Rosa: Uma coisa que aprendi, depois do Café com Canela, é que a produção executiva começa no roteiro. “Quanto tenho para fazer esse filme?” Sei que vou fazê-lo levando em consideração o orçamento disponível. Até o fim e Voltei!, especificamente, foram filmes que fizemos por conta própria, na camaradagem, porque eu estava com muita vontade de fazer. Nesse sentido, lançamos mão de estratégias que deixassem o filme do tamanho necessário para contar essa história. Mas, como é que podemos contá-la com vinte ou quarenta mil reais? Uma locação, um elenco pequeno, uma equipe reduzida. Ambos os filmes se passam numa noite. Em vez de gravarmos três ou quatro dias, nós contamos a história de uma noite. À noite é muito mais fácil de gravar por conta do sol, da pouca mudança de luz. As personagens estão sempre dentro de casa, de um bar. São escolhas e estratégias que se dão antes de escrever o roteiro. Eu sei qual história quero contar, quais atrizes serão chamadas, sei que dá para fazer uma equipe de oito pessoas naquele bar lá de Ilha Grande que conhecemos. Pronto, podemos começar a escrever o roteiro. E aí, obviamente, é tudo muito limitado imageticamente. Só há um espaço e aquele elenco. Então, a palavra vem disso, mas também da busca por uma tradição de Cachoeira, das narrativas pretas, dos griots. Contar histórias é algo muito importante para a tradição e nós partimos desse princípio. 

Esse é um artifício muito mal visto no audiovisual, principalmente no Brasil. Olham como se a verborragia fosse algo pejorativo. Como se a fala não fosse bem-vinda para o cinema e como a última alternativa quando a imagem não desse mais conta. Acho isso um erro. Primeiro que, aqui, temos uma tradição televisa muito mais que cinematográfica. Isso faz parte da América Latina, não só do Brasil. A palavra é o centro das relações. Como vou contar a história de quatro irmãs que se encontram para esperar o pai morrer e ser aquele silêncio maldito? Nós estamos cansados de ver filme que é aquele silêncio… Tá, pode ser que em São Paulo o silêncio seja mais importante. Em Cachoeira, tenho certeza que não. A palavra é imperativa em Cachoeira. As pessoas falam, gritam, choram. É som que sai da boca o tempo inteiro. Essas construções também são uma forma de dialogarmos com o nosso lugar e com nossos espectadores. O nosso espectador brasileiro tem o costume de ouvir diálogos e histórias. Violeta está falando meia hora de cinema e todo mundo fica super emocionado, acha um barato. Pessoas das mais diferentes possíveis, que estão sendo atravessadas ou não pela experiência da Violeta contando aquelas histórias. Mas, que se emocionam e têm paciência de ouvir. 

Por fim, o som não se restringe à fala. Cachoeira é um exemplo disso. Quando a gente vai gravar um filme, é claro que queremos fugir do carro de som. Mas, normalmente, na finalização do som, acrescentamos esse elemento para construir uma paisagem sonora. Cachoeira tem uma paisagem sonora muito bonita. É uma cidade muito musical que, a qualquer momento, começa a tocar um tambor, a passar um carro de som, o pastor começa a gritar, os cachorros a latir, o galo canta de noite… Querer lutar contra isso é lutar contra o mais belo que uma coisa pode lhe oferecer. É lindo o som de Cachoeira, o silêncio dessa cidade. Acho que tentamos, cada vez mais, nos aproximar. É muito difícil, mas é um propósito que levamos muito a sério; a paisagem sonora de Cachoeira sempre foi muito respeitada, seja na captação, como na finalização. O som daqui é muito particular.

Lorenna Rocha: Acho que existe um imaginário em torno do silêncio, como algo mais próximo de uma “linguagem reflexiva”. Que se distanciaria do que é lido como “mais popular”, né? Há uma hierarquia evidente. A escolha de “rasgar o verbo”, botar um axé lá no Voltei!, burla um pouco essas expectativas, né? Ao mesmo tempo, isso é tão cinema brasileiro. E vocês brincam um pouco com todos esses registros formais. Vi o trailer de Na Rédea Curta, por exemplo, e a personagem Mainha (Sulivã Bispo), além de se aproximar da linguagem televisiva, tem traços cômicos e caricatural. Vocês sentem que o campo cinematográfico brasileiro e negro tem desejado se distanciar desse tipo de investimento estético?

Glenda Nicácio: Temos uma preocupação com o discurso, mas acho que somos bem despretensiosos em relação a isso. Temos muito uma vontade de que a personagem cresça, se desenvolva, que não perca a dignidade. Acho que, para todos os personagens com quem trabalhamos, a dignidade é um dos pontos principais. E ela se dá desde a hora da escrita, quando se coloca uma palavra na boca dessa personagem, até a hora que a compartilhamos com o elenco. Na hora que a caracterizamos ou quando escolhemos como ou em qual situação iremos mostrá-la. E, dentro da dignidade, a liberdade. Porque também existe uma pluralidade ali, formas de ser preto e preta, de ser mãe preta dentro desse universo imenso das representações.

Lorenna Rocha: E como vocês aproximam essa questão da representação à da linguagem e cultura televisiva?

Ary Rosa: Eu e Glenda somos do interior. Ou seja, de um lugar onde não tem cinema. Nós somos de uma geração que a internet não era algo possível, prático, fácil, como forma de audiovisual. A televisão é nossa referência mais concreta, junto às locadoras de filmes. Nós não negamos isso. Achamos importante fazer esse diálogo, porque essa é a formação do audiovisual de boa parte da população brasileira. Tem toda uma questão de termos um olhar reflexivo, no sentido de não assumir isso como fonte principal de nossas influências. Mas é uma possibilidade de diálogo que é muito bem vinda para nós. Os elementos da fala, por exemplo, são muito mais televisivos do que cinematográficos. E isso é um ponto muito bom, porque tenho a sensação que é a partir daí que conseguimos expandir um pouco mais o nosso público. Esse é outro elemento que reitera a importância da fala em nosso trabalho.

Lorenna Rocha: É inevitável dizer que Café com Canela é um marco. Em seu ano de lançamento, o filme contribuiu para movimentar muitas disputas históricas, econômicas, políticas, raciais e simbólicas que atravessam o cinema brasileiro, sobretudo em relação às discussões sobre representação-representatividade. Café com Canela, Travessia (Safira Moreira, 2017), KBELA (Yasmin Thayná, 2015) são lidos, algumas vezes, como um “cinema de cura”. Que seria o investimento na produção de imagens de afeto entre (ou sobre) pessoas pretas, dentro de uma perspectiva de reparação sócio-histórica. Como se relacionam com essa ideia de “cinema de cura”?

Glenda Nicácio: Acho difícil esses lugares assim, bem como “cinema de afeto”, “cinema de alguma coisa”. Nós temos outros pactos quando estamos num processo de produção. Claro, somos atravessados por isso, afinal, as recepções dos filmes são muito calorosas. É nesse momento que a gente tem a possibilidade de assistir um filme junto ao público. E, de repente, ganhar um abraço de uma pessoa que nunca havíamos visto na vida, mas que se emocionou e levantou da cadeira diferente após a sessão. É nesses instantes que temos dimensão de algo que está para além do que tínhamos projetado, planejado ou mirado com o filme. Mas, durante a produção, existem outros pactos que somam tudo isso que estamos falando aqui: território, coletividade, dignidade, representação. Acho que um pacto muito bonito que existe é o entre mim e Ary. Nós gostamos de fazer filmes e gostamos de fazê-los juntos. 

Geralmente, quando decidimos o filme que vamos fazer, realizamos uma leitura, olhamos um para a cara do outro e falamos: “E aí, é isso?”“É isso.” E a gente vai. Existe um outro pacto entre nós que é nunca partir do mesmo lugar para o mesmo lugar. O Café com Canela é uma coisa, o Ilha é outra, e agora nós já estamos num outro espaço, tanto físico, geográfico, quanto atmosfericamente. São atmosferas muito distintas de um filme para o outro, num período mínimo de tempo. Nosso pacto tem mais a ver com essa viagem, do percurso de caminhar até o próximo filme e de possibilitar que ele seja prazeroso, sobretudo, para quem o está fazendo, né?

Ary Rosa: Para mim, o processo do filme termina na sala com o espectador. É muito bonito ver a proporção de um filme que já não é mais nosso. Porque, quando se está na sala de cinema, na televisão ou no streaming, o filme já não é mais da gente. Acredito que eu e Glenda temos essa sensibilidade de aprender muito com o espectador e levar o que aprendemos para o próximo filme. Ilha foi extremamente atravessado pelo Café com Canela. Quando estávamos gravando o Ilha, vivenciamos aquele momento em que todo mundo estava assistindo o Café com Canela, fazendo críticas, comentando, se emocionando, não gostando, reclamando, elogiando… E, depois, o Até o Fim foi atravessado pelo Café com Canela e pelo Ilha

Isso vem da compreensão de que o espectador é um agente ativo. Não apenas receptivo, que está ali para amar o seu trabalho. Não; ele está ali para vivenciar o seu trabalho, fazer parte dele. O espectador deu muita direção para a nossa direção. Sempre sinto que cada filme parece carregar um tanto dos outros. Não enquanto referência ou repetição, mas enquanto formação de profissionais. Falo isso de mim e da Glenda, mas acho que isso se estende a boa parte de nossa equipe. Somos muito atentos ao olhar do outro, que é, se não central, um elemento importantíssimo do nosso ofício. O espectador é essencial para o que nós fazemos.

Lorenna Rocha: O Ilha, particularmente, é um filme violento. Logo de início, há uma disputa corporal entre os dois personagens, que nos é apresentada com certa frontalidade, e ela vai se desdobrando em muitos outros tipos de conflito. Acreditam que essa ideia de “cura pelo cinema” tende a distanciar o processo de formação de nossas sensibilidades daquilo que é lido como violento, controverso, que pode doer, produzir angústia, ser ambivalente em seus sentidos?

Ary Rocha: Bom, o Ilha é violento, realmente. Mas, ele não é violento. Isso é um ponto importante, pois o filme também fala de afeto, de reconstrução…

Glenda Nicácio: Acho ele mais bruto que violento.

Ary Rosa: É, pode ser. É difícil falarmos de uma forma geral, porque partimos muito do nosso pacto interno, que é de sempre trazer uma questão básica: estamos diante de um elemento de violência, certo… “Isso é necessário para a narrativa?” Se sim, massa. Se não, então, vamos revê-lo. Acho que isso está muito mais ligado à motivação para se contar uma história; de onde estamos partindo e para onde queremos chegar. Pensando, ainda, na curva dramática de cada personagem que está construindo aquele todo que é o filme. Essa reflexão passa muito por nós. Temos muito cuidado com cada imagem. Muita coisa não entra no corte final; que nós vimos que passou a mão, que está num tom à mais do que necessitaria. Tem muito esse lugar de irmos cuidando das coisas. E cada filme é um filme. Se estou contando a história de quatro irmãs que estão ali para o embate, ele tem que acontecer. No entanto, como faço para que esse conflito não seja algo gratuito, não seja só um reprodutor de velhas imagens ou a mesma história contada numa perspectiva que já não é mais bem-vinda? 

Há várias questões que são colocadas e algumas outras podem ser faladas com leveza: de uma mãe, que é uma mãe solo, que tem um filho que vai ser pai… Mexer com isso não é menos doloroso ou menos problemático. “Então, qual é o fim dessa história? O que queremos contar com isso?” São alguns pontos que aparecem, não só para nós, mas também para nossa equipe, elenco. Somos muito responsáveis quando o assunto é som, imagem, representação, representatividade. Sabemos que um filme é algo que vai ser reproduzido infinitamente e que nossas escolhas podem impactar subjetividades. O que pode ser cura para uns, é gatilhos para outros, atormentador ou libertador. Há uma série de subjetividades que o filme estende a mão para essa vivência fílmica, de espectador e obra. Mas, acredito que sempre partimos de uma perspectiva responsável do… – “Essa imagem é necessária?”“Não, essa imagem é necessária.”

Glenda Nicácio: Quando você fala dessa coisa do “cinema de cura”, “cinema de afeto”, são nomenclaturas e indexações que vêm no pós, né?

Lorenna Rocha: Sim.

Glenda Nicácio: Aparece no momento em que sentamos junto com o público, na curadoria, com a crítica de cinema ou entre os próprios espectadores e espectadoras. Ao assistirem muitos filmes, olham e falam: “O que eles têm em comum? O que eu sinto em comum entre eles?” E começam a tecer esses nomes…

Ary Rosa: É. Porque não tivemos uma reunião entre mim e a Glenda onde falamos: “Vamos fazer um cinema de cura.” Historicamente, calhou desses filmes serem lançados ao mesmo tempo, de pessoas que nem se conheciam presencialmente, né? Travessia, KBELA, Café com Canela. Acredito que há uma atmosfera que nos leva a esses lugares… 

Glenda Nicácio: Na verdade, acho que as perguntas seriam: “Como que chegamos ao “cinema de cura”? Como que isso apareceu aqui? Por quê? Quais conjunturas, para além do cinema, nos levaram a isso?” Porque o cinema é uma coisa muito pequena dentro do que temos no país. Como chegamos, enquanto sociedade, a essas mulheres fazendo filmes e os espectadores, olhando para essas produções, sentindo que estão em processos de cura ou de afeto? Em termos de discussão, por exemplo, se eu e Ary partíssemos da premissa “vamos fazer um filme de cura”, acredito que fracassaríamos. Assim, muito! Esse tipo de coisa vem, mas depende de outras auras, atmosferas e vias. São outras coalizões que estão acontecendo. “Cinema de cura” é uma coisa muito ampla, feita por muita gente. Estamos falando de um cenário cinematográfico brasileiro. Um filme só não dá conta.

Lorenna Rocha: “Não ser vista é também não ser vigiada”: essa é uma frase da Glenda em uma entrevista para a Revista Cinética (2021), quando perguntada sobre a sua presença (e ausência) na historiografia contemporânea do cinema negro brasileiro. O pioneirismo em torno da ocupação de mulheres negras na função de direção cinematográfica tem forçado um certo tipo de exclusão de Glenda dessa história, por ela não dirigir seus filmes sozinha, por dividir a direção com Ary, um homem socialmente lido como branco. Para além dessas disputas historiográficas, acho que há um outro problema nesse sentido, que é a reivindicação de uma “pureza negra”. Escrevi um pouco sobre isso num ensaio para a Revista Verberenas (2021), onde questionei a noção de que essa codireção deixaria as obras “menos pretas” ou conferiria menos agência à Glenda enquanto uma diretora negra. Como vocês lidam com essa conjuntura? E com essa ideia de “pureza negra” em relação à autoria?

Glenda Nicácio: Nossa, nós já discutimos muito sobre essas questões. [risos] São perguntas que não tem como fugirmos e nem queremos escapar delas, né? Estamos encarando-as. Desde Café com Canela, isso aparece em nossas conversas. “Nossa, quem somos nós, quem sou eu dentro desse cenário, sendo sua companheira de direção?” Claro, foi muito difícil passar por isso. Mas, depois de tantos anos e filmes, descobri que não tem como ser meia diretora negra, entende? Quando estou num set, ninguém me olha como meia diretora negra. Ou quando tenho que dar uma entrevista, defender um filme, tentar um financiamento. E o tanto de outras coisas que é do nosso ofício, para além do set. Ninguém olha para mim como meia diretora negra. Quando saio na rua, não sou meia mulher negra. Sou eu. E somos nós também.

Ary Rosa: Tem muito a ver com o olhar, né? Nós vemos as pessoas fazendo essa análise numa perspectiva de que a direção é dividida por dois e não dobrada. Sempre vi o nosso trabalho como o dobro e não como metade. São dois olhares, duas vivências, duas experiências estéticas, duas experiências de vida. Os nossos filmes saem muito enriquecidos disso. Não trabalhamos só pensando na cabeça da direção. Nossa fotografia são três pessoas. O som, quatro ou três. Nós trabalhamos com esse lugar de liderança multiplicada, triplicada e não propriamente dividida. Quando entramos num set, eu entro para ceder uma série de coisas para Glenda e, ao mesmo tempo, sei que ela vai ceder uma série de coisas para mim. Na verdade, não estamos cedendo um para o outro, é para o filme. O filme precisa disso para que ele seja o dobro de um filme. Gostamos de trabalhar juntos e achamos que somos melhores juntos. Sentimos que os filmes seriam outros, não seriam tão bons, se fosse só eu ou só a Glenda, sabe? Eles nem existiriam, né? Eles existem porque somos nós dois.

Glenda Nicácio: O cinema não está acostumado em dividir, né? Esse modo de produção convencional vai na contramão de tudo que acreditamos e da forma como nós produzimos; olhamos para a produção a partir do compartilhamento. 

Ary Rosa: É. Algumas pessoas me perguntam: “Como é no set, com vocês dois?” E eu sei lá! Eu entro no set e quero é terminar o set! [risos]

Glenda Nicácio: Sim! [risos]

Ary Rosa: Nós trabalhamos juntos, loucamente, para terminar o set. Se estou fazendo algo aqui, se ela está correndo, se eu estou correndo, se ela está falando com o ator… Eu não sei. Cada dia é um dia. Porque tem dia que ela está de mal humor, tem dia que eu estou, tem dia que ela está feliz demais…

Glenda Nicácio: Tem dia que são os dois…

Ary Rosa: Tem dia que os dois estão de mal humor, tem dia que estamos dispostos, indispostos, de ressaca, tem dia que estamos ótimos! Não tem fórmula. Nosso trabalho não é movido à fórmula, é movido à necessidade. Essa é a pergunta: “Precisa de quê?”“Quem resolve?”“Ah, eu resolvo.” Pronto, a gente vai e resolve.

Glenda Nicácio: Há um lugar de confiança… Sei lá, não há ninguém que eu confie mais do que o Ary. Qualquer coisa, tipo: “Tá, mas a gente vai junto?”“Vamos.”“Então, tá bom, está tudo certo. Vamos.” Às vezes, pegamos o carro e descemos para o set com um problema e: “Temos um problema.” [risos] Dirigimos quinze minutos e, quando chega lá, falamos: “Tá, então vamos fazer isso.” Um vai para um lado, o outro vai para o outro, e, em algum momento, nos encontramos no set. Somos feitos disso.

Lorenna Rocha: Um trabalho de confiança de muitos anos…

Glenda Nicácio: Faz 13 anos que estamos juntos! [risos] Fazendo filme ainda, imagine. 13 anos!

Lorenna: Fazendo filmes e sendo amigos, né? [risos] É muita coisa.

Ary Rosa: Muita história.

Lorenna: Por fim, como vocês se percebem dentro do campo cinematográfico brasileiro hoje? 

Ary Rosa: Esse mundo, que chamam de campo cinematográfico brasileiro, não passa por Cachoeira, né? Estamos afastados disso…

Glenda Nicácio: [risos] Aqui tem um pasto cinematográfico.

Ary Rosa: É, um pasto cinematográfico. Nós estamos distanciados dessas percepções, né? Nós somos muito pragmáticos, produzimos muito. Nós pensamos muito mais no próximo filme do que em uma filmografia. Claro, às vezes, precisamos parar para entender os processos. Até para dar o próximo passo. Mas, acredito que nunca nos dedicamos muito em ficar pensando quem somos, qual história estamos construindo, qual assinatura estamos deixando no mundo. Acho que estamos sempre pensando no próximo filme. Esse tem sido nosso jeito de seguir o trabalho da Rosza Filmes. Haverá pessoas que se debruçarão a pensar sobre isso. Não sei se cabe à gente…

Glenda Nicácio: E, se tivermos que pensar sobre isso, vamos precisar pensar sobre essa questão a cada filme também. À cada filme, nós vamos aprendendo quem temos que ser na próxima temporada, junto com os personagens, dramas e risos que eles trazem para a nossa vida. Não é um trabalho tão isolado assim, né? Essas matérias-primas que chegam para vocês… Nós estamos lidando com elas há muito tempo. Em processos diferentes, vendo-as de formas distintas. E, ao mesmo tempo, elas são muito próximas. “Não estaremos no mesmo lugar e, com certeza, no próximo filme vai ser outra coisa.” O que vai ser? Não sei. E a melhor parte é essa, né? Acho que nós temos esse compromisso com o movimento.

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