Montagem como prática para uma contra-história | Materialismo Histórico da Flecha Contra O Relógio (Carlos Adriano, 2023) | 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes

“Ver o horizonte, o além, é não ver as imagens que vêm nos tocar”.
George Didi-Huberman

i. Dois tipos de materialismo histórico 

Uma imagem em preto e branco aparece na tela, trepida ritmicamente, acompanhada por sons de flautas-assobios e água corrente. Pouco nítida, observamos três ou quatro pessoas indígenas empunhando lanças em meio à floresta. Em outro plano, a imagem ganha uma película amarela e depois azul. Materialismo Histórico da Flecha Contra O Relógio (2023), título do curta-metragem de Carlos Adriano, aparece em branco sobre um fundo vermelho e demarca uma diferença entre dois tipos de materialismo histórico.

O primeiro corresponderia ao materialismo mecânico (do relógio), que percebe a história como um tipo de máquina que conduziria automaticamente ao socialismo. O progresso econômico nos levaria à crise do capitalismo e à vitória do proletariado. Já o segundo (da flecha), teria uma aspiração teológica, que rejeita o progresso e a temporalidade linear e aposta numa ação revitalizadora no presente para tanto interpretar criticamente a história – contá-la a partir do ponto de vista dos vencidos –, quanto para vencer o próprio inimigo, a saber, as classes dominantes.

ii. Materialismo histórico do relógio

Imagens de relógios, engrenagens e objetos circulares persistem numa lógica ininterrupta. Em meio aos autômatos, tentativas de quebrá-los, ou mesmo de habitá-los, como vemos na clássica cena de Charles Chaplin, em Tempos Modernos (1936), em que seu corpo é movido pelas estruturas circulares de engrenagens. Os sons dos ponteiros perpetuam a continuidade dos processos históricos ancorados no ideal de progresso, de uma ascensão linear dos acontecimentos, glorificando, por tabela, a exploração colonizadora que estruturou as bases da modernização do mundo. 

No curta-metragem, o símbolo principal desse movimento familiar é a imagem de um autômato-enxadrista, também mencionado na Tese I sobre O Conceito de História, de Walter Benjamin (1940). No texto e no filme, esse boneco de trajes turcos é apresentado como algo capaz de contra-atacar qualquer jogada que um jogador humano fizesse, o autômato representaria o próprio materialismo histórico do relógio.

Carlos Adriano aposta na oscilação entre a imagem do autômato-enxadrista acompanhada pelo som de uma orquestra e a de enxadristas humanos com sons amenos de flautas. Aproxima, portanto, o furor das respostas automáticas de uma máquina às respostas artesanais dos demais enxadristas. Sobrepõe à imagem dos enxadristas encarnados o som de máquinas, ampliando o escopo sensível das aproximações ao tensionar imagens sonoras conflitantes com as imagens escolhidas para serem manipuladas. 

Ao trazer à tela Carmen Miranda cantando Tic-Tac do meu Coração, o diretor  ainda dá a ver a incorporação da temporalidade linear em expressões artísticas, guiada pelo relógio e pela ideia de progresso. Porém, ao dispor de maneira sucessiva imagens distantes temporalmente, se opõe à  flecha do tempo, e cria uma anacronia inerente ao seu modo de narrar acontecimentos históricos e criar imagens. 

Frame de Materialismo Histórico da Flecha Contra o Relógio (Carlos Adriano, 2023)

iii. Materialismo histórico da flecha

Frente à linearidade ininterrupta do tempo, convoca-se a imagem dos revolucionários franceses que quebram relógios num ímpeto de resistência ao progresso. O gesto de interrupção das horas assemelha-se ao de Carlos Adriano, ao interromper a continuidade do texto e das imagens para escavar suas fontes ulteriores, de lembrar das imagens outras, de associar duas realidades mais ou menos distantes. Procura uma fenda na aparente superfície plena das imagens – tendo como método uma verdadeira educação pela fenda, como aponta o crítico Victor Guimarães, em que procede ao “rachar a história e as imagens para habitar suas fissuras“.  

Um fade-in em fórmula de circo, assim como o soar de tambores rompe a toada explicativa do filme. Um braço segura uma flecha, vemos depois um relógio sobre a tela preta. A imagem abre por inteiro e um fatídico evento é rememorado: em abril de 2000, quando seriam completados 500 anos da chegada dos portugueses no Brasil, a Rede Globo inaugurou um relógio que contava os dias para os 500 anos do “descobrimento”. Dia 13 de Maio de 2000 indígenas atiraram flechas no relógio comemorativo. Sons de tambores e pratos ecoam ao fundo, a imagem da mão em riste com o arco e flecha aparece na tela sob diferentes recortes, gira, oscila, entra em consonância com o som. Outros sons são adicionados, de uma máquina que recebe dinheiro, junto aos tambores. 

A imagem do arco e flecha começa a ser cambiada de modo insistente com a do relógio comemorativo, a insistência e a permutação das imagens leva a uma espécie de transe sensível dos símbolos de cultura, em que nos sentimos totalmente imersos no grão da imagem. A repetição exaustiva, assim como a progressão na sobreposição das imagens, ganha novas reverberações e ruídos e opõe-se radicalmente aos longos excertos textuais dispostos no  filme. O espectador experimenta um forte estímulo rítmico dado o furor associativo entre imagens de diferentes texturas. 

iv. Entre panfleto e poema

Em uma mesa de debate na 27ª edição do festival de cinema de Tiradentes, Carlos Adriano disse que seu filme parece um panfleto, mas é, na verdade, um poema. Se o uso exagerado de citações, sobretudo extraídas dos textos de Walter Benjamin, pode dar a impressão de se tratar de um filme de ideias panfletárias, a sensação de assistir ao filme diante de uma tela grande nos desperta sensações bem distintas das despertadas pela vulgar disseminação de ideias políticas. O que se sobressai é a forma aberta e permanente experimental que conduz o espectador à fabulação, à tentativa de aproximação entre imagens a princípio longínquas – de pessoas indígenas em manifestações antifascistas no Brasil e do êxodo forçado dos palestinos em 1948, assim como de suas reverberações mais recentes –, que vão criando arestas e consonâncias de sentido, não antes experienciadas. 

O filme é um exercício rítmico, em que atrai o espectador pela relação de assonância mantida entre elementos tanto sonoros quanto visuais, assim como deixa para o espectador um certo trabalho elaborativo – pela obliquidade de seus sentidos –, como na poesia. Que fascina, ao primeiro experimento, pela sonoridade afável. Que resvala entre sons que se combinam, ou se furtam uns aos outros, mas que atribuem um labor a quem os observa e escuta.

A aposta na temporalidade descontínua para contar a história do ponto de vista dos vencidos é colocada em prática através da aproximação de imagens de arquivo, que restituem imagens deixadas de lado, ao mesmo tempo que corrompem-se mutuamente, levando-nos aos confins da experiência sensível. Com sua vocação pedagógico-imersiva, o Materialismo Histórico da Flecha Contra O Relógio convida ao transe das lacunas para compor a imaginação política de nosso tempo.  

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