Enfrentar a si mesmo: Erotismo como ritmo, faísca e fricção | Eros (Rachel Daisy Ellis, 2024) e Homem de Verdade (Rafael Rudolf, 2024) | 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes

por Barbara Bello

O emaranhado entre a câmera, nossos corpos e os desejos de investigá-los toca, hoje, em um debate particular sobre o falar de si, marcado pelo individualismo. A autorreferencialidade não é, de forma alguma, um problema. Entretanto, ao observar uma tendência viciante à primeira pessoa, encontramos uma resistência às dinâmicas do conflito. Essas imagens, lisas e protegidas, retornam a si mesmas e falam sozinhas. Por outro lado, a partir da criação erótica, parece haver um convite a experimentações mais instáveis e descentralizantes. Como navegar o espelho e o desejo tensionando, ao mesmo tempo, os contornos de si? 

Nessa direção, Eros (Rachel Daisy Ellis, 2024) e Homem de Verdade (Rafael Rudolf, 2024), ambos exibidos na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, são títulos que mobilizam registros pessoais de experiências eróticas – e as nuances ambíguas que as comportam -, criando estados de fricção. Os dois filmes elegem um mesmo dispositivo: filmar a si mesmo, espécies de autorretratos, apostando na relação entre aparato técnico – as câmeras – e a performatividade dos corpos. Procuro olhar como cada um dos filmes, à sua maneira, desdobra essas dinâmicas. 

Frame de Homem de Verdade (Rafael Rudolf, 2024)

A montagem erótica 

Homem de Verdade apresenta uma composição entre materiais de arquivo e performances de Rafael Rudolf, diretor e ator do curta-metragem. Ruídos de VHS nos introduzem a vídeos eróticos amadores feitos por ele mesmo quando jovem. São imagens encorpadas pela intensidade da descoberta de si. De muito perto, de lado, de frente, de costas – ele experimenta todo um universo erótico de gestos. A câmera encarna vários olhos, possibilitando assim uma imaginação pessoal através do ponto de vista de outros. No filme, esse outro é, em tempos distintos, ele mesmo. Rafael, adolescente magro e enérgico, diz – quase que assombrosamente – em direção à câmera: 

você vai entender, Rafael, o porquê disso tudo

Esse endereçamento da conversa varia e recai sobre o espectador. Estamos diante de imagens íntimas que passaram anos guardadas. O peso da poeira aqui é da densidade do segredo. O ritmo do filme se encarrega em dissipá-la, conferir-lhe luminescência. Para tal, apresenta duas estratégias; a ficção, a história de Rafael é apresentada na terceira pessoa do singular: aquele que convencionou-se chamar de: homem; e a fricção, enérgico contraste dessas imagens dele com vídeos eróticos mais recentes, em digital, nos quais Rafael aparece acompanhado por outra pessoa.

Entre os registros, há ainda mídias em VHS de sua infância, filmadas por sua mãe. Ele também se exibe diante da câmera, desfigurando uma ideia rígida de candura da criança. Para isso, destaca os instantes em que deixa mais evidente a expressão de um desejo erótico como quando insinua à mãe que quer mostrar a bunda pra câmera. Embaralhando-as através da montagem, as imagens aparecem descontínuas como uma dinâmica de expressão erótica, acesa. O erotismo não poderia vir como unidade mas, antes, como esse roçar entre fragmentos produzindo ritmo. 

A composição faz saltar a trajetória viada de um ponto de vista vibrante. Acelera-se a montagem e surge a narração de um sonho. Rafael, seu namorado e a Madonna chegam em uma festa. Enxertos de flashes dos tapetes vermelhos das celebridades do mundo pop infiltraram a sequência ao som de um techno. Por via do relato onírico, nomeia-se um desejo de vida: ser gogo boy. Ser visto? Mostrar-se quando o imperativo é aquele do encobrimento? Dobrar: tornar-se musculoso, vestir lantejoulas e mover-se em plena potência sexual. É da experiência queer reinventar-se e aqui isso é articulado pela via do prazer. 

A linguagem do erotismo se faz como desobstrução, deixa correr pela matéria do corpo e de sua própria história, com todo sangue e tesão, projetando-o, principalmente, para fora. A cintilância da transgressão, nesse jogo vai e vem, tem seu avesso: colocar-se em queda, em fragilidade. Correr riscos através da distorção e superexposição da própria imagem. No fim das contas, há uma vulnerabilidade que se conecta à fragilidade das imagens eróticas de Rafael na adolescência. No contraste entre-tempos, encontra-se uma vivacidade queer em soltura, ao mesmo tempo que solitária e confusa. Os tempos dançam entre si – quebrados, estranhos e (não “mas”) festivos. 

O gestual dos corpos também se estendem através das imagens. Enquanto Rafael, mais jovem, empina a bunda simulando solitariamente uma vivência sexual, no recorte seguinte reencena o movimento transando com um parceiro. As imagens são reposicionadas por meio da relação que ele estabelece com o próprio corpo. O explícito delas convoca a textura pornográfica, estimulando colisões brutas e diretas com a nudez. Imagens límpidas oscilam com outras ruidosas: se incendeiam, se opacificam. A imagem do gogo boy acende em complexidade à medida que é tensionada pelos retratos dele durante a adolescência. De um lado, o imperativo de encobrimento, do outro, a total transparência. Nenhum se totaliza: o desvio do filme é reivindicar o prazer e a vulnerabilidade à luz de sua estranheza. 

Pela fricção, fragmenta e coloca em suspenso o “homem de verdade”, projetando assim sua própria diferença. Quando se olha através da câmera e imagina outros olhos sobre si, Rafael Rudolf não deixa de criar um gesto autorreferencial. Ocorre que, ao experimentar colocar tais materiais em confronto, o ponto de partida se desloca. Sua performance instabiliza o lugar de enunciação. No que chamo de montagem erótica, quanto mais se intensificam as fricções rítmicas e formais, mais a autorreferencialidade é seduzida ao descontrole.

Frame de Eros (Rachel Daisy Ellis, 2024)

Autorrepresentação do desejo 

Letreiros neon, playlist das melhores românticas dos anos 1970 e 1990, banheiras com teto solar e gaiolas – toda uma variedade de breguices que marcam o clima e a sabedoria brasileira em situacionar-se eroticamente. Adentramos à suíte Cupido. As luzes coloridas da rua somem na lâmpada branca do quarto de motel. Em monólogo, Rachel Daisy Ellis. Com o celular em mãos, a diretora se filma no espelho posicionado em cima da cama e introduz a proposta de Eros: uma investigação acerca do imaginário e da arquitetura dos motéis no Brasil. Para tal, convida pessoas de várias regiões do país a produzirem vídeos de suas próprias experiências nesse espaço – começando por ela mesma. 

Uma das primeiras observações feita pela diretora refere-se aos sons abafados que escuta vazando dos quartos vizinhos – a partir deles, passa a imaginar quem os está frequentando. Oferece então o tom geral de Eros: olhar através da instabilidade dos contornos privados. Assim, o erotismo aparece não apenas como objeto de investigação, mas como ponto de partida temático-formal, suscitando fricções entre intimidade, performances e arquiteturas do prazer.  

O conjunto de registros em Eros parecem ser realizados a partir da decisão particular de cada pessoa e/ou casais envolvidos no dispositivo proposto. A câmera liga e as pessoas se apresentam – para quem vê, para elas mesmas e entre si. Diante da câmera, destacam-se os relatos e as formas de autorrepresentação. A conversa é um gasto infinito – daí seu erotismo. O prazer da fala, da saliva molhada, em afirmar desejos e transgressões. Língua que tateia a si mesma e testa os limites de quem ouve. 

Em Eros, há espaço para línguas soltas: fala-se diretamente das próprias vivências sexuais, assim como se comenta sobre o amor, as dores existenciais e a comida que será pedida na recepção. O momento da refeição é algo que aparece na maioria dos episódios compartilhados. Um dos casais, tendo saído do trabalho e ido direto para o motel, precisa, afinal, comer para repor as energias antes de transar. A singularidade de cada partilha de intimidade nos causa excitação e, por outro lado, nos leva às zonas mais frias desse tipo de experiência, aos detalhes comuns e ritualísticos. 

Um dos temas que chama atenção é a menção recorrente à bíblia sagrada. Em pleno quarto de motel, os casais religiosos debatem pecado e inferno, colocando o interdito e a transgressão para dançarem. Ao acessar a intimidade de um dos grupos sociais mais complexos do país, Eros deixa escapar valores desconhecidos dessa poderosa matriz religiosa brasileira. Sem estigmatizá-los, os coloca em destaque na prática do prazer. Assim, não é contraditório ver casais héteros e LGBTTQIAPN+ religiosos dentro desse ambiente, sendo uma das principais forças do filme. 

À medida que o longa avança, os relatos vão formando uma teia de choques e contágios. Essa composição produz um tensionamento na arquitetura do espaço privado. Um casal visita um quarto que separa-se do vizinho através de uma janela, o frenesi está na decisão de abri-la ou não. Fala-se aqui do prazer na fragilidade de contornos: olhos de espiar, sons que vazam, o gesto de decupar-se (ou seja, fragmentar-se). A escolha do que mostrar e do que esconder comporta tanto o exercício de controle quanto sua ilusão – é dinâmico. 

A vivacidade erótica dos relatos parte de corpos e subjetividades diversos: mais velhos, trans, gordos, entregues à prática do BDSM, distorcidos na encenação de fantasias, cansados do trabalho. O que se mostra mais explícito em Eros é que tesão vibrando por toda parte, principalmente onde o domínio do espetáculo não alcança. A riqueza das performances está na experimentação de uma novidade, na relação nova com a câmera, com as imagens produzidas pelos sujeitos participantes. A filmagem erótica amadora dialoga com a linguagem das nudes, dos stories e de sites como o Only Fans, sendo ela mesma objeto de prazer. 

O filme começa e termina com o exercício do erotismo em solidão. Partilhando seus medos e melancolia, uma personagem declama Flores dos Titãs com um vaso de flores de plástico em mãos e abre-se, com insistência, às incertezas do amor e do encontro com um outro. O erotismo, enquanto aprovação da vida até na morte, faz surgir dos próprios abismos descontínuos sua força performática. Conduzindo-se por ela, Eros deixa entrever, através das rachaduras nos espelhos e inversões de estigmas, os reflexos sendo multiplicados em outras direções. As flores têm cheiro de morte, eis a imagem de ambiguidade onde Eros desemboca. O último registro se abre com o ring fill light, descrito por Louis de Basquiat como uma lua ou um sol, estranhos e necessários. É por essa negatividade que a performance do filme será iluminada. Envolto por vulnerabilidade e coragem, o filme faz ressoar sua face mais erótica, estranhar-se, entranhar-se. 

Frame de Eros (Rachel Daisy Ellis, 2024)

No erotismo, EU me perco

Durante o debate sobre Terror Mandelão (2024), a crítica e programadora de cinema Lorenna Rocha comentou ter sido provocada pela experiência erótica e elétrica do funk paulista na tela. Apontou que, muitas vezes, o erotismo no cinema brasileiro iria até a página dois, sendo ainda muito limitada sua forma de existência no campo. Me reencontrei intensamente com esse comentário após vivenciar as sessões de Homem de Verdade e Eros. Na primeira, durante a Mostra Panorama, a inserção do filme na programação foi descrita por Rudolf como “cavalo de tróia” – aparecendo ali através do conflito com as obras vizinhas. A segunda, encerrando a Mostra Aurora em plena sexta-feira, pareceu-me uma das mais enérgicas e agitadas sessões em Tiradentes. Se pronunciava vividamente o prazer do burburinho, de esquecer-se na risada coletiva ou contrapor-se à ela. 

Ambos os filmes promovem torções na tela muito convidativas à experiência do corpo no espaço da sala. Como Rachel Daisy observa sobre os motéis, a tenda também tem uma arquitetura que vaza. Com esses atravessamentos, retornamos de pequenas mortes e aterramos no debate – partindo, aqui, de um lugar da diferença. Não se trata de dizer que os burburinhos apontam para uma espécie de conservadorismo reativo em relação às imagens de putaria, sexuais eróticas, pornográficas, libidinosas – ainda que também exista ali – mas, antes, que preservar suas ambiguidades produz reverberação. O erotismo é essa zona limiar de experimentação com a diferença – quando isso se traduz em um frenesi através das imagens, é um tipo de relação que está se formando com elas. 

No catálogo da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a crítica de cinema Maria Bogado escreve em “Por um Materialismo Erótico” sobre olhares menos obcecados pelos conteúdos, ao passo que mais ancorados na materialidade inventiva das obras e implicados com o tesão. Envolta pelo prazer de espiar todos aqueles universos íntimos, desdobro a pergunta inicial do texto na experiência espectatorial: como tensionar minha dinâmica de espelhamento com eles? 

Valorizar o encontro com as imagens de um ponto de vista erótico pede que eu me perca. A desidentificação é um caminho desejável em direção ao que não me pertence e, ainda assim, me provoca. Assim, entre olhares enredados por individualismo, vale a pena aprender com as danças conflituosas e disformes do erotismo. Como Eros e Homem de Verdade nos revelam, essas coreografias podem proporcionar situações em que olhar para si coincide, ricamente, com estabelecer relações além de nós mesmos. 

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