Misturar, transcender, sonhar: uma conversa a partir de Estranho Caminho (Guto Parente, 2023) | 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes

A sessão de Estranho Caminho, na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, esteve dentro da programação da mostra Autorias, em que diretores e diretoras com traços singulares de invenção são convidadas a exibirem seus trabalhos mais recentes. Guto Parente destaca-se por uma cinematografia inquieta e múltipla e por seus modos de criação em que a colaboração e o trabalho coletivo são estabelecidos enquanto ponto de partida. Em entrevista para Diego Silva Souza, colaborador da revista câmarescura, Guto Parente, a produtora e montadora Ticiane Augusto Lima, e os atores Carlos Francisco e Lucas Limeira, comentam sobre o processo de criação de Estranho Caminho, a mística que envolve o fazer cinematográfico e a singularidade do trabalho de atores e atrizes durante a feitura de um filme.

Diego Silva Souza: No debate sobre Estranho Caminho, Guto comentou que não pensava muito enquanto estava filmando. Gostaria de ouvir mais sobre seus processos de criação.

Guto Parente: O processo de criação é um lugar em que nós nos abrimos para muitas coisas, em que colocamos nossas vísceras para fora. Durante a feitura de um filme, tudo que assisto, leio ou ouço, de alguma forma, passa a se relacionar com a obra. É uma antena para o mundo. Se digo que não penso muito é porque não foco em minhas questões pessoais, mas em como elas são atravessadas pelo o que está ao meu redor. Tiro de mim e jogo no filme. Lanço um monte de coisa, misturo, tudo vira sobre ele. Quando vivemos o momento de vê-lo pronto, exibi-lo, de receber o olhar do outro, aprendo sobre mim e acabo sabendo mais das minhas questões através dessas trocas. É sobre uma busca de conexão com o outro e o mundo, de modo a me tornar uma pessoa mais aberta. Movimento e transformação. Cada filme serve como um impulso de sair de algum lugar. Estar sempre fazendo filme é nunca ficar parado.

Diego Silva Souza: Após a exibição no Cine Tenda, fiquei pensando que, apesar de ser um filme feito durante a pandemia de COVID-19, e que também aborda essa temática, ele consegue nos apresentar algo adiante. É raro ver David (Lucas Limeira) e Geraldo (Carlos Francisco), por exemplo, dividindo o mesmo plano, e isso não parece vir apenas da conjuntura pandêmica, mas da sensação de solidão que ambos apresentam. É algo que está na decupagem, não é? 

Guto Parente: Acho que Estranho Caminho que tem um pensamento de decupagem pandêmica. Estávamos vivendo o distanciamento social, mantendo 1,5 metros de distância das pessoas, e pensamos na linguagem do filme a partir da ideia de nunca ter pai e filho no mesmo quadro. Quase tudo está nessa lógica do plano e contraplano, na verdade, campo e contra-campo. A decupagem privilegia os rostos, planos muito fechados, o que gera uma certa claustrofobia, sentimento que esteve bastante presente durante a pandemia. De fato, nunca foi um filme sobre a pandemia. Sempre foi sobre a circunstância em que pai e filho vão se reencontrar e aprender a lidar um com o outro. A pandemia foi um disparador disso para muita gente. E, no meu caso, foi também esse lugar mais espiritual e transcendental de encontrar um ponto de conexão com o meu pai, que havia falecido, e convidá-lo a escrever um filme junto comigo.

Ticiana Augusto Lima: Lembro da época de filmagem, quando ficávamos em crise para decidir se filmávamos com ou sem máscara. Na hora da montagem, nós pegamos o material que tínhamos e buscamos evocar esses sentimentos cotidianos, inclusive do nosso set. Teve alguém que escreveu algo sobre no filme os atores “contracenarem com os olhos” ou “encenarem com os olhos”. Outras pessoas comentaram que, quando aparece o rosto da vizinha no final, se sentem muito aliviadas. Como poderíamos trazer essa sensação de claustrofobia, de não conseguir ver muito além? O período da pandemia nos fez ter que lidar com as coisas uma semana por vez e aprender a encontrar um lugar confortável dentro de si. Esses planos fechados e essa cadência dos personagens fala de um enclausuramento, mas, ao mesmo tempo, de uma busca por conforto e aconchego. 

Diego Silva Souza: Tem uma atmosfera paranóica que ronda todo o filme, que é delirante — de estar nesse espectro do delírio, e também delirioso —, de nos fazer delirar enquanto assistimos. Até o filme realizado por David traz essa sensação. Acho que isso é muito costurado por essa atuação não naturalista, como pontuado pelo crítico Bernardo Oliveira, que acompanha o luto. E também pela montagem que, às vezes, funde planos muito distintos, de um lugar para o outro, o que talvez não fosse esperado numa narratividade mais convencional.

Lucas Limeira: Noá Bonoba, nossa preparadora, foi muito importante nesse processo. Em um primeiro momento, quando estávamos nos preparando, ensaiávamos as cenas depois de uma única leitura do texto. Lembro que ela trazia elementos que tornavam a cena completamente absurda. Uma vez saí correndo atado, de um lado para o outro, gritando. Nós ficávamos fazendo coisas muito estranhas e absurdas para acessar coisas que eram muito palpáveis e reais. Comprei muito a ideia de me preparar de uma maneira muito grandiosa para fazer uma cena que, no final, só apareceria os olhos.

Carlos Francisco: Paralelo a isso, eu e Lucas trocávamos muito no set, passávamos muito o texto juntos. Quando chegava a hora de filmar, Guto dava exatamente o tom que ele queria e nós estávamos muito prontos para responder. Estávamos o tempo todo produzindo um repertório para levar para o set, para que, quando chegasse a filmagem, ela fosse só mais uma etapa de produção. Havia essa precisão cirúrgica do Guto, de chamar atenção quando o tempo da fala estava errado, quando nós precisávamos ser mais rápido. E nós fomos construindo a cena em conjunto.

Guto Parente: Essa coisa da paranoia e do delírio, que você menciona, me faz pensar no realismo como apoio para conseguir criar um salto narrativo. Uma base realista bem construída possibilita o devaneio, o sonho, e a partir disso começamos a misturar as coisas, sem pensar dicotomicamente. O cinema é um lugar privilegiado para experimentarmos a linguagem dos sonhos. Me interessa muito mais encontrar a possibilidade de borrar as fronteiras entre o que entendemos como natural e anti-natural. Quando falamos de naturalismo, nós partimos de um pressuposto de que existe uma forma específica de se falar e reagir, aquilo que entendemos como algo “natural”. Como construir um filme que jogue com essas expectativas? Para que, consciente delas, possamos criar pequenas distorções? Gosto de pensar a vida como uma possibilidade de tensionar e distorcer a realidade no cotidiano. Acho que temos buscado formas diferentes de olhar para o mundo. E, na hora de fazer um filme, por quê não? Por que não jogarmos com isso? É um lugar muito possível para assumir esse tipo de risco. 

Ticiane Augusto Lima: Guto se preocupava muito com essa construção realista para podermos ter o delírio presente. No entanto, aconteceram tantas coisas durante o processo que, se dissermos que é real, ninguém acredita. Nossa primeira ou terceira diária de filmagem foi no cemitério. Filmamos onde Geraldo Júnior, pai de Guto, estava enterrado. Ele faleceu em 2017 e nós não havíamos colocado a lápide. Me incomodava muito com isso. Quando veio o filme sobre ele, falei que não podíamos filmar sem ter a lápide dele no lugar. Procuramos algumas vezes e não encontramos. No final de Estranho Caminho, Rodrigo Oliveira (cenógrafo) falou que Pai Joaquim tinha falado com ele e que nós deveríamos fazer uma reza para as almas do purgatório. Acabamos encontrando a lápide no dia da filmagem, no dia que fomos levar a que havíamos mandado fazer para o filme, que levava o nome de Geraldo, pai do Guto, com data de nascimento e morte. Em algum lugar isso pode ser um completo delírio, mas essa é a realidade que vivenciamos.

Lucas Limeira como David, em Estranho Caminho (2023)

Diego Silva Souza: Ouvi de alguns colegas que Estranho Caminho não seria um filme esperançoso. Fiquei bastante reflexivo com isso, porque há algo de esperança ali para mim. Uma reconexão com pai. Com a mãe, David grava um áudio para ela no fim do filme. Como vocês percebem esse processo interno dos personagens, de lida com o luto?

Guto Parente: Esse áudio enviado à mãe é algo muito importante para mim. É a chave do filme. Acho que as pessoas ficam se perguntando: “Ele encontrou ou não o pai? É um sonho? Ele estava no hospital?” O filme foi todo construído e pensando de modo a afirmar a possibilidade desse encontro. Quando começamos a conversar sobre Geraldo, lembro que Carlão perguntou: “Ele vai ter um corpo mais estranho Será que na iluminação vamos usar uns filtros?” Depois entendemos que não, que deveria ser mais concreto. No áudio, David agradece à mãe, fala que encontrou o pai, que foi difícil, mas importante para ele e para Geraldo, apesar do pai ter morrido há algum tempo. Você poder se encontrar com alguém, apesar dessa pessoa já ter morrido, é algo que o filme lança. E o personagem passa a entender a vida de outra maneira.

Ticiane Augusto Lima: O áudio da mãe é realmente a mãe do Guto. Legal você destacar essa cena. No roteiro, ela vinha antes. Mas, no processo de montagem, teve um momento que minha mãe, que é psicanalista, me mostrou um texto relacionado à paranoia. Em última instância, quando você está louco, você chama por sua mãe, que é quem vai lhe acolher e dizer que está tudo bem. Então, não há esperança, porque houve morte, mas há um continuar. O filme termina com uma Kalunga: “de onde tudo vem, para onde tudo vai”. É movimento. A mãe deixa de ser um fantasma para quem, no começo, ele também não queria olhar.

Diego Silva Souza: Colocando em diálogo o comentário de Francis Vogner dos Reis (curador da Mostra Tiradentes), sobre uma ideia de autoria que transcende a direção cinematográfica, gostaria ouvir vocês sobre um possível lugar que o filme ocupa dentro de uma ideia de cinema negro mais ampla. Podemos pensar na trajetória de Lucas Limeira como ator em Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020), Cartucho de Super Nintendo em Aneis de Saturno (Leon Reis, 2018), e de Carlos Francisco em Marte Um (Gabriel Martins, 2022) e Bacurau (Kleber Mendonça Filho, 2019). Ou seja, destacando o protagonismo que atores e atrizes ocupam na feitura de um filme. Como é para vocês, Carlos e Lucas, emprestarem seus corpos para escrever parte da história do cinema brasileiro e do cinema negro no Brasil?

Carlos Francisco: Em primeiro lugar, é um privilégio, porque é raro encontrarmos papéis para negros de minha idade na dramaturgia brasileira. Tenho 62 anos, um pouco menos na época de filmagem de Estranho Caminho. São mais pequenas participações, uma ponta aqui, uma ali. Em geral, locais carimbados com compartimentos muito demarcados. Tive a felicidade, por exemplo, de interpretar o pai de Guto, que não é negro, junto de outro ator negro que supostamente representaria ele. Guto não nos escolhe porque somos negros, nos seleciona para a equipe por características artísticas, qualidades que ele percebeu em nós como atores. Só que nossa corporalidade traz a pele negra. A forma como lidamos com nossa ancestralidade, de alguma maneira, está impressa na relação que é estabelecida no filme. Guto lida com a ancestralidade dele e com a nossa de forma peculiar. Objetivamente, não há nenhum elemento concreto na narrativa que aponte nessa direção. Mas, subjetivamente, isso está lá. As pessoas leem, conseguem perceber. Acho que ninguém tinha falado dessa coisa, apenas Bernardo Oliveira, você e Lorenna Rocha [no debate].

Pensei muito sobre isso quando recebi o convite, mas depois desencanei. Me sinto muito privilegiado de ter esse convite do Guto, do Gabriel [Martins] e de outros personagens que tenho tido a felicidade de interpretar sendo um homem negro de 60 e poucos anos e quilombola. Claro, nossa trajetória ajuda a transcender um pouco essa questão do negro colocado no compartimento específico. Ainda assim, é um privilégio ter diretores com a cabeça aberta, pensando nas relações para além da forma que elas estão dadas socialmente no Brasil. E nós nos esforçamos para responder à altura. Milton Santos dizia que o único lugar no mundo em que ele sentia medo de ser constrangido a qualquer momento era no Brasil. Ele tinha sido negro no mundo inteiro, mas aqui era o único país onde ele se sentia mais na guarda. Silvio de Almeida falou há um tempo que, apesar de ser economista, ele só é convidado para falar sobre racismo estrutural. Para mim, o enfrentamento do racismo passa, por exemplo, por Guto convidar dois homens negros para trabalhar, não por serem negros, mas por serem profissionais. Para fazer uma coisa que não tem nada a ver com ser negro.

Lucas Limeira: Sempre que vou falar sobre minha trajetória artística, fico lembrando que comecei no teatro. Quando enfim passei a me sentir à vontade no palco, sempre vinha aquela dúvida: “Será que as pessoas estão interessadas em me ver em cena?” No audiovisual, essa insegurança ficou ainda mais forte. A câmera está focada na nossa cara e depois ela vai para uma tela gigantesca. Ficava muito inseguro, ainda me sinto um pouco. Mas é o processo de uma vida, enquanto homem negro, manter a autoestima forte. Guto não nos escolheu por isso e é algo muito acertado para o filme. Mas, há o que eu e Carlão trazemos como atores, de nossas vivências e leituras, que são diferentes das leituras de Guto e Ticiane. Quando isso vai para público, é mais uma camada de leitura. O filme é dirigido por Guto, a partir de uma história dele, mas há nossa intervenção ali. Sendo dois homens negros vivenciando essa relação de pai e filho, cria-se outra questão. A paternidade negra gera, por si só, um universo de possibilidades de leituras que são particulares. É muito potente tudo isso justamente por essa pluralidade de olhar sobre uma única história.

Ticiane Augusto Lima: A ministra Margareth Menezes comentou, aqui em Tiradentes, que nós deveríamos parar de ver a diversidade do Brasil como um problema e passar a vê-la como potência. Sinto isso em Estranho Caminho. Somos muitos e cada um traz o que é seu para construir algo juntos.

Guto Parente: Nós escolhemos trabalhar juntos porque admiramos e confiamos no trabalho uns dos outros. Tentamos estabelecer um processo horizontal de troca e conversa franca. Qualquer incômodo ou questão deve ser colocada à mesa. Só é possível fazer filmes bons e relevantes dessa forma. Se formos olhar para a cinematografia que mais pulsa, certamente são filmes que partem dessa lógica em que todos os presentes estão botando seu coração, sua alma, em um nível de envolvimento. Quando montei o Cabeça de Nêgo, pude ver Lucas, alguém muito jovem, mas com uma grande força de atuação. A mesma coisa com Carlão, que ainda tem toda essa experiência de vida e ensina muito para nós. Como podemos juntar essas pessoas que vão transformar umas às outras? Ao terminar Estranho Caminho, nós já não éramos as mesmas pessoas, não tínhamos mais a visão de mundo, sentimentos e ideias de antes.

Diego Silva Souza: No filme, Geraldo é uma espécie de projeção de David, o que termina por jogar com as expectativas de quem os assiste. É o imaginário do filho que apresenta o pai, personagem que vai ficando cada vez mais complexo aos nossos olhos. Tenho a impressão que o fantasma do filme não é Geraldo, mas a projeção do filho sobre ele. Gostaria de ouvir vocês falarem um pouco mais sobre como percebem essa relação entre pai e filho e também sobre a questão das paternidades e masculinidades negras.

Lucas Limeira: O filme foge de alguns estereótipos do que é ser homem negro, como Carlão falou. David não é másculo, um homem negro grandão e viril. Ele é sensível, está perdido e tentando se encontrar, sem ter a obrigação de estar com a vida organizada, com um trabalho certo. Ao ir conhecendo o pai aos poucos, essa pessoa extremamente fechada que o obriga a ir abrindo caminhos, ele vai se encontrando nessa imagem paterna e do que é ser um pai negro. Não como uma questão fundamental, mas como isso interfere, por exemplo, nas diversas demonstrações de afeto dele. É algo muito sensível para o Guto, isso de encontrar formas de amor e afeto, algo que particularmente me toca muito, muito presente em minha vida, esse afeto que você vai descobrindo, escavando. Estranho Caminho constrói isso de maneira muito delicada e bonita, mostrando que aquele afeto ali também é válido e que devemos que aprender a perceber isso no outro.

Carlos Francisco: Quando David chega na casa do pai, ele está rendido, vai para encarar o diabo de frente. Tem uma expressão que diz: “o diabo não é tão feio como se pinta”. A figura monstruosa do pai é algo inatingível. E quando é obrigado a se encontrar com essa figura, ela vai se tornando cada vez mais humana, diminuindo de tamanho, ficando mais próximo. O pai também tem uma noção de limite, né? Aquela cena em que Geraldo convida o filho para assistir o filme que ele fez, David não está preparado para aquilo. E a humanidade daquele encontro torna-se possível. Deixa de ser expectativa, vira encontro.

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