Por um corpo negro inútil | Aquele Que Viu o Abismo (Gregório Gananian e Negro Léo, 2024) | 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes

As palavras não cumprem totalmente a tarefa de compreender a experiência cinematográfica […]
Robert Rosenstone em A história nos filmes. Os filmes na História, 2010.

#1

Se, na tentativa de nos determos à narrativa, a própria estrutura do filme nos desloca da compreensão cognitiva como certeza, o que nos resta é sentir – e não meramente ver ou entender – o longa. O que Aquele Que Viu O Abismo parece querer de nós é a mesma liberdade sobre a qual trata. Nas curvas de suas imagens e elipses narrativas, sentimos o que segue como umas dentre as várias possibilidades de leituras. Posta no mundo, a obra artística é nossa. 

#2

Há uma dialética intrínseca ao nome X: aquele que é indeterminado e, mesmo tempo, marcado ou que já foi (“ex”). Aparentemente, X resiste a sucumbir àquilo que não nasceu para ser: um homem supostamente inútil aos sistemas. Afinal, ao ser questionado, como parte do tratamento na empresa distópica Prolife, sobre qual o seu propósito na vida, a personagem responde que tudo o que quer é tocar piano para as pessoas. Se o anseio soa irônico, é porque evidencia uma crítica do próprio filme ao fato de a arte não ser entendida como objetivo significativo para dar sentido e valor à vida no capitalismo.

#3

As imagens dos sons. Os sons das imagens. A concretude visual da música. A dissolução vibracional das cenas.

#4

A dedicatória do filme aos artistas Paula Gaitán, José Roberto Aguilar e Sérgio Villafranca não é mero detalhe. 

#5

Citações iniciais são um álibi: antes que digamos algo medíocre, dizem sobre nós e sobre nossas (supostas) referências e intenções de forma mais sofisticada do que faríamos. A citação que abre este texto é evidentemente um álibi: assume a insuficiência da palavra escrita para expressar leituras de obras audiovisuais. Insuficiência ainda mais perceptível nos parágrafos que seguem, que, honrando o fluxo do filme sobre o qual aqui se escreve, propõem e assumem uma viagem de leitura.

#6

A escrita não dá conta da experiência e isso é ótimo: o filme é maior.

#7

A impressão é de que a narrativa nos escapa não apenas por ser fragmentada e não linear, mas também por se dar entre esquinas de imagem e som. Num restinho de cena é possível perceber mais um aspecto da angústia do protagonista X, que é rapidamente borrada por algum dado sonoro que se estende a partir de uma nova, vertiginosa e encantadora junção de planos.

#8

“‘Ele Que o Abismo viu: A Epopeia de Gilgámesh’ é considerado o provável começo de tudo na História da literatura. O poema épico é o que hoje temos de mais antigo registrado, em termos de produção ficcional, e foi reescrito e alterado inúmeras vezes ao longo dos séculos […] O conteúdo desse poema épico mescla inúmeros elementos de mitologia mesopotâmica com pensamento cultural da Antiguidade local e caraterísticas de fantasia, numa abordagem mitológica para as atitudes do rei Gilgámesh, que desde os primeiros versos é referenciado como alguém de imenso conhecimento, força e experiência: ‘Ele que o abismo viu, o fundamento da terra, / seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo, / Explorou de todo os tronos, / De todo o saber, tudo aprendeu, / O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu, / Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era’”, trecho da  crítica  literária “Ele que o abismo viu: a epopeia de Gilgámesh, DE Sin-Léqi-Unnínni”, de Luiz Santiago.

#9

“Um homem livre não precisa adular ninguém”, canta uma Ava Rocha de performance e fisionomia embriagantes, hipnotizantes, no final videoclipado de Aquele Que Viu O Abismo, longa-metragem dirigido pela dupla Gregório Gananian e Negro Léo que teve primeiras exibições na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes e na 12ª Mostra Tiradentes SP. Os artistas também dirigiram juntos o curta-metragem Nenhuma Fantasia (2021), outro filme pessimista-crítico das tendências tecnológicas contemporâneas e com atuação de Negro Léo. Importante destacar que o som, a música são sina das obras e atuações individuais dos diretores, víde as peças audiovisuais e os filmes (INAUDITO; g.m – 8 cantos) sobre/com músicos dirigidos por Gananian e a singular experimentação musical que marca a carreira do cantor e compositor Léo. 

#10

Ao iniciar com uma cena em que um homem negro está chorando em estado de angústia e apontando uma arma para dentro da boca, o filme opera na contramão radical de tendências cinematográficas contemporâneas que trabalham com a supressão de imagens de violência e autodestruição associadas a corpos pretos. Tal tendência parece se justificar como forma de refutar a naturalização dessas imagens na história do cinema brasileiro e nas relações sociais. Porém, simultaneamente, estabelece para obras independentes e também comerciais (incluindo a televisão e os streamings) uma espécie de regra contemporânea obviamente limitadora da inventividade artística: o ideal da representação negra positivada que vem nos blindando de percepções mais complexas de nossas experiências por meio das artes.

#11

Tudo fica ainda mais estranho de acompanhar porque, na primeira parte da narrativa (que compreende aquilo que parece vir antes de X iniciar o tratamento na Prolife, acontecimento que parece fazer o filme se abrir a uma viagem audio-visual no incosciente do protagonista), as falas do personagem principal são dubladas de forma assincrona com relação à imagens.

#12

Em tempos de cinema-negro-espelho-positivo ou revelador do racismo, a referida primeira cena parece nos devolver a possibilidade de pensarmos e olharmos para o mal-estar negro (ou de sujeitos negros) na sociedade de classes como continuidade de um banzo histórico.

#13

E se na tentativa de nos determos à narrativa, a própria estrutura do filme nos desloca da compreensão cognitiva como certeza…

#14

Um negro que não tem por objetivo afirma-se como tal? Um homem em idade produtiva que escolhe pela música? O protagonista treme. Está doente. Passa mal nos lugares, mas se mantém em pé.

#15

Enquanto não é diagnosticado, não se cura e não consegue ser livre, jornada que acompanhamos durante a maior parte do longa-metragem, X vai adoecendo como sintoma social, capturado pela (realmente distópica?) rede neuropsiquiátrica Prolife.

#16

A história do protagonista X nos é contada por meio da voz over da própria personagem em momentos digressivos – estamos quase sempre escutando seus pensamentos em fluxo. Também nos é contada por meio de offs de diálogos que ele tem com diferentes interlocutores. Sob essas instâncias auditivas que imprimem ao filme dados objetivos da narrativa, vemos imagens com diferentes texturas, paisagens, cenários, contextos; imagens que não são reiterativas do conteúdo narrado. As cenas são montadas de forma ousada e ritmada, por vezes em consonância ou por vezes em dissonância com a trilha sonora e sonoplastia marcantes. O resultado é simultaneamente sublime e vertiginoso, parece colocar as percepções dos diferentes sentidos estimulados pelo filme em embulição, a tal ponto que focar objetivamente a história se torna impossível. As imagens-música vão para um lado, a explicitação narrativa vai para outro. Uma espécie de quiasma audiovisual.

#17

“O que quer o homem? O que quer o homem negro?”, pergunta Frantz Fanon (1952) na introdução de Pele Negra, Máscaras Brancas. Em meio ao contemporâneo “liberalismo identitário” indicado como existe no filme – “GUERRA AO LIBERALISMO IDENTITÁRIO”, escutamos a certa altura o fluxo de pensamentos de X como palavra de ordem –, a pergunta se reconfigurara: “o que deve um corpo negro?” junto e/ou longe dos seus em um presente regido por tendências de cinema-espelho-positivo?

#18

É como se ao dar vazão formal para o caos mental da personagem X, de alguma forma, o longa-metragem encontrasse uma maneira de libertá-la; de libertar a todos nós.

#19

É preciso respeitar os movimentos do filme, implicando em nos desprendermos de compreende-lo objetiva e inteiramente. 

#20

“A  figura [de linguagem] Quiasma – também  denominada  quiasmo – é  representada pela  letra  grega  ‘Qui’ e forma  um ‘X’ em  que  as  palavras  se  posicionam  de  forma  oposta […]”. “Na percepção deque o contraste no quiasma acontece principalmente pelo cruzamento de lugar (e não de significado), concluímos que, ao posicionar dois elementos diferentes, o quiasma não apresenta uma oposição dicotômica que separa  os  elementos  de  forma  cartesiana.  É  um contraste  em  que  as  palavras/ideias  se  posicionam  em  lados separados, mas num arranjo argumentativo orgânico, interdependentes […]”, trecho do artigo acadêmico “A figura de retórica Quiasma aplicada à argumentaçãovisual”, de Laene Mucci Daniel.

#21

Falamos em banzo, porque é evidente que, ao ser encarnado no corpo de uma personagem incontornavelmente negra, o abismo existencial do protagonista ganha específicas significações.

#22

“Um homem livre não precisa adular ninguém”. A composição é de Negro Léo, que assina a trilha sonora do longa-metragem com trabalho complementar de Henri Daio, também editor de som do filme. Um desenho de sonoro alto, de sinuosidade fluída e cheia de estalos; proeminente na percepção quiasmática e deslumbrante dos elementoS estéticos da obra.

#23

Faz lembrar trabalhos de outros artistas negros brasileiros que contemporaneamente têm, também justamente em contato com Frantz Fanon, questionado os contornos e limitações da racialidade negra como construto. Nesse sentido, lembramos de Castiel Vitorino Brasileiro, Lucas Bebiano e Coletivo O Bonde de Teatro Negro. São artistas com obras que dialogam diretamente com pensamentos sobre a necessidade de transcendência das limitações/significações sociais impostas aos corpos, conforme abordadas por Deleuze e Guattari quando conceituam o “corpo sem órgãos”. Parece que é isso que X procura: ser um corpo negro sem órgãos, ou seja, ser um homem (negro!) livre.

#24

E se, a essa altura, nossos hibridismos culturais forem maiores do que nossas diferenças?

#25

As convulsões de X e os lapsos espaço-temporais aos quais elas levam parecem, então, ser traduções de uma mal-estar ainda mais específico, remetendo não apenas à esquizofrenia como sintoma social no desigual e opressor capitalismo, conforme conceituam também Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972) em “O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia”, como também à vontade e à necessidade de liberdade existencial extrema em uma sociedade que confina corpos e mentes a construtos e controles sociais.

#26

Lembremos que João Dumans, coroteirista e um dos montadores de Aquele Que Viu o Abismo, lançou recentemente Linhas da minha mão, longa-metragem documental a respeito de uma atriz que fala sobre a sua experiência com a arte e a loucura.

#27

O ápice dessa liberdade narrativo-formal é quando, em meio a suas instabilidades físicas, X desmaia e acorda em outro país, na China capturada em vídeos que parecem advir de arquivo pessoal de Negro Léo e família. Ele é despertado por um homem chinês de forma extremamente acolhedora, em uma cena de troca entre personagens que causa simultaneamente estranhamento – por que parece estranho uma alteridade radical entre um homem chinês e um homem ocidental negro? – e comoção. É quando, sintomaticamente, áudio e imagens de diálogos do filme se tornam síncronos. Seria um caminho de ajuste possível das coisas?

#28

Nesta viagem, o personagem-protagonista treme. Ele está doente. Passa mal nos lugares, mas resiste em se manter de pé. Há um mal que o acomete e que nenhum médico consegue explicar. A única saída parece ser, então, matar a si em si e/ou nas projeções de outras pessoas construídas por luzes neon ao seu redor – destaque para as esteticamente impactantes animações a laser de Dyogo Terra Vargas.

#29

A montagem fragmentada distende o enredo e, assim, possibilita que o espectador experimente visualmente o estado psicológico mental atordoado do protagonista X: passado e presente se (con)fundem, imagens de arquivo de viagens de Negro Léo (hibridizado a  X) vão e voltam como lembranças, sonhos, delírios ou vivências contemporâneas do protagonista; cenas performáticas constroem um espaço-tempo indeterminado na narrativa que parecem digressões, ruminâncias mentais audiovisualmente estimulantes.

#30

Em tempos de cinema-negro-espelho-positivo ou revelador do racismo, a referida primeira cena parece nos devolver a possibilidade de pensarmos e olharmos para o mal-estar negro (ou de sujeitos negros) na sociedade de classes como continuidade de um banzo histórico.

#31

Interpretado por Negro Léo, X é um suicida em potencial porque vive um abismo existencial. Seu estado psíquico e seus dados mentais não são tratados, mas sim explorados por uma empresa futurísta que realiza procedimentos neuropsicológicos, a Prolife, construída principalmente por meio do discurso narrado. O recurso faz com que essa empresa distópica seja invisível e ao mesmo tempo onipresente – bem como o caráter mercadológico que a rege.

#32

Ao explorar uma viagem imagética entre o Brasil e a China, entre a consciência e o inconsciente (caóticos porque ansiando por liberdade sem conseguir tê-la) do protagonista negro, o filme parece alertar para a necessidade de um retorno à reivindicação das alteridades radicais. Gesto que sublima a afirmação identitária por meio da reiteração da diferença, provocando reflexões sobre as origens afrosiáticas da humanidade e do próprio ocidente. 

#33

Um filme de direção e roteirização inter-raciais, inter-étnicas. Não é mero detalhe.

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