Uma estátua equatoriana roubada que aparece no testemunho de quem a viu sumir; uma espécie extinta de lobos cuja única reminiscência é um registro audiovisual no cativeiro; buracos deixados no solo da Colômbia pela mineração e o cheiro fantasmagórico de carvão queimando do outro lado do mar; fotografias no arquivo oficial do Peru dos corpos desaparecidos durante o regime ditatorial. Os sumiços são múltiplos mas, de algum jeito, emergem.
Los Órganos Internos de La Madre Tierra (Ana Bravo Perez, 2022), La Huella (Tatiana Fuentes Sadowski, 2012) e Todxs Queremos Un Lugar Al que Llamar Nuestro (Daniela Delgado Viterio, 2022) são filmes construídos em torno de ausências. Conscientes de que a América Latina é um território fundado e moldado por forças produtivas intrinsecamente destrutivas, os filmes tomam tais destroços como signos, isto é, “uma coisa que representa outra coisa”, na definição ampla de Décio Pignatari. Nesse sentido, as imagens são rastros, pistas de algo que as extrapola e que é irrecuperável. Tudo o que é visível tem dentro de si o que não se deixa ver e os filmes se articulam de maneira a fazer a ausência aparecer.
Mas o que podem essas imagens em relação à ausência que buscam retratar? E, sobretudo, o que querem?
***
“Você sente esse cheiro?” é a pergunta que abre Los Órganos Internos de la Madre Tierra. Recém chegada em Amsterdã, a diretora se depara com montanhas pretas imensas no porto da cidade. A partir do estranhamento causado pela imagem, o filme traça as rotas transatlânticas de exportação que ligam uma pequena aldeia na Colômbia à indústria holandesa. O cheiro de carvão queimando paira sobre a metrópole européia de maneira fantasmagórica. Do outro lado do mar, os efeitos da exploração são notadamente mais drásticos, mais visíveis. Diante dessa injustiça, tenta-se ao máximo explicitar a relação íntima de violência entre os dois lugares.
Essa primeira sequência em Amsterdã é filmada em preto e branco e destaca-se o grão da imagem. Em seguida, algo aparece sendo cortado por um bisturi. O granulado borra os quadros e não sabemos se esse algo é pele ou se é terra e, nessa ambiguidade, as entranhas da mãe terra presentes no título emergem para representar a exploração que incide tanto no solo quanto nos corpos. A continuidade estética entre os quadros, a ênfase no grão das imagens, é uma maneira de construir a metáfora: como se o cheiro do carvão se materializasse no grão, tornando-se visível e preenchendo a distância que separa os continentes. Dessa forma, o filme nos faz ver a ligação que, no mundo, não aparece, isto é, a cidade de Amsterdã construída pela terra, revirada e aberta, na Colômbia.
Então, o filme assume um caráter documental. As vozes, antes sem sonoridade, tornam-se audíveis e ganham prevalência sobre as imagens, cada vez mais genéricas. Em wayuunaiki, língua do povo originário Wayú, ouvimos relatos que explicam de maneira pedagógica a relação estabelecida por eles com a divindade Mma, equivalente à Mãe Terra ou Mother Earth. (Reitero, aqui, as traduções do termo tal qual o filme, que em muitos momentos transita entre diversas línguas). Logo em seguida, depoimentos de ativistas explicitam a violência do processo extrativista. As diferentes linguagens, justapostas sem mediação, buscam encurtar as distâncias entre imagem e denúncia, elas querem desesperadamente falar. Assim, repete-se, pelo resto do filme, o que estava dito na primeira sequência de maneira a não deixar margem para ambiguidade, para deixar claro.
A indecisão formal é sobretudo uma posição ambígua quanto à função da imagem. A vontade de tornar visíveis os mecanismos coloniais responde ao entendimento de que a invisibilização dos rastros da destruição é essencial para a manutenção do sistema de exploração. E isso explica o movimento didático do filme que culmina no acúmulo de falas que, brutais em sua literalidade, tem o intuito de mostrar a dimensão da violência. No entanto, a urgência da denúncia faz o filme abandonar o desejo que dá forma às imagens iniciais, um ímpeto de experimentação com a linguagem que poderia dizer de outro modo e que se esvai pelo medo de ser insuficiente, isto é, medo de não dizer tudo.
Mas “algo sempre se perde na tradução”, o filme nos lembra ao escrever a frase em espanhol, inglês e wayuunaiki, quase como alguém que não está convencido de sua própria tese.
***
Em La Huella, o filme é construído a partir de fotografias do arquivo da Comissão da Verdade e da Reconciliação do Peru. Os corpos ali retratados são ou fantasmas ou cadáveres. São imagens brutais sobre as quais nada precisaria ser dito ou explicitado. No entanto, recortes, zooms e deslocamentos na superfície das fotos enfatizam sua materialidade e não o que ali se apresenta. Assim, tratando as imagens como material, não como documento, a significação é aberta: o grão do filme parece um céu estrelado e, diante de uma vala, pode-se imaginar, “Vejo a boca de um animal”. A câmera trabalha, criando formas, buscando outras imagens dentro do arquivo, atravessando-o. Os fantasmas, pelo menos no breve tempo do filme, não são os objetos do olhar e, enfim, descansam.
Na última cena nos são revelados os mínimos detalhes de uma foto que só ao fim vai se mostrar por inteiro. Enquanto nos atentamos aos fragmentos e tentamos remontar o todo, a imagem ainda não é, e pode assumir muitas formas. A princípio, o que parece um rochedo numa praia vai se tornando um lençol sendo estendido. O movimento do pano dentro de um quarto fechado, assim como o percurso de seu desvelamento acompanhado pelo som de pássaros voando, sugere a possibilidade de voo. Não sabemos ao certo para onde, para quê, mas cria-se a impressão, reconfigura-se o rastro.
Ao se demorar no ato de mostrar, no encontro com a imagem, o filme convida o olhar ao exercício prazeroso de inventar. Ao desmontar e remontá-las, o aspecto perturbador das fotografias torna-se, também, superfície para a criação. E, nesse prazer, existe algo de estranho: como pode ser bonito olhar para imagens tão brutais? Como pode ser justo olhar e não ver nelas apenas a violência?
Num gesto parecido com Los Órganos Internos de La Madre Tierra, o filme também parece desconfiar de si e, talvez para justificar-se, coloca testemunhos de antropólogos forenses que explicam os registros, em exercício de identificar os corpos e dar nome aos mortos, no sentido de guiar o espectador. Mas as falas e os ruídos — ora de sussurros, de uma fogueira, de água corrente, e ora de zunidos profundos e inquietantes — se conjugam ao silêncio produzindo uma abertura que convoca o olhar a preencher de sentido aquilo que vê, junto dos relatos e também apesar deles.
Assim, as imagens em La Huella não querem dizer tudo. O objetivo não é apenas denunciar a violência contida ali, ou seja, usar as imagens. Aqui, o exercício ficcional une-se aos testemunhos na investigação que é, ao fim, um trabalho inventivo, de reimaginação, uma movimentação que acontece através das imagens, como sugere a fala que abre o filme:
“Você as leva para casa, em viagem, para todos os lugares… Elas te impregnam a retina. Você fica com todo um catálogo de figuras, situações, odores, texturas que acredito serem indeléveis. Não se pode apagá-las com nada, deixá-las, largá-las, substituí-las. Não é possível remediá-las com coisas mais bonitas. Não é possível fazer nada.”
***
No preâmbulo de Todxs Queremos Un Lugar Al que Llamar Nuestro, nenhuma imagem na tela, um áudio para a diretora conta a história da Virgem de Quinche, uma estátua levada do Equador para Madrid. É a única fala audível do filme. A virgem equatoriana, conta o homem, foi trazida para um cabeleireiro, onde multidões de imigrantes e madrilenhos começaram a se reunir para vê-la, até que um padre espanhol sugere que a levem para sua igreja. Ele, então, passa a cobrar pela visita, roubando a imagem.
Em seguida, intercalam-se cenas que constroem duas linhas narrativas. Na primeira, filmes do arquivo pessoal de Daniela Delgado Viterio mostram o pôr do sol e o mar vistos de Madrid. Legendas apresentam sua fala inaudível na qual ela se dirige ao padre dizendo que filmar, revelar e colorir aquelas imagens são sua forma de roubar dele parte de sua identidade, de seu país e, assim, devolvendo na mesma moeda, fazer justiça pela santa.
Na cena intitulada “El tigre”, vemos um animal em cativeiro. As legendas contam: é a última filmagem do, agora já extinto, lobo-da-tasmânia (tigre, em espanhol). O registro foi colorido pelo Arquivo Nacional de Audiovisual da Austrália. O animal que vemos na tela é o último de sua espécie e, no momento em que o vemos, ele já não existe para além dessa imagem, que pertence justamente aos responsáveis pelo seu desaparecimento. E a legenda muda diz: “Eles a possuem porque a têm. Eles a possuem porque a coloriram. Eles a possuem porque depositaram seus desejos nela”.
Quando o último lobo-da-tasmânia aparece no seu cativeiro, ele é, ao mesmo tempo, ícone de toda uma espécie, índice da irreversibilidade de sua extinção e símbolo de uma melancolia tão profunda quanto inexplicável. Na sua imagem, no fato dela existir, presença e ausência se enlaçam de tal maneira que já não sabemos o que olhamos. É fácil confundir: a posse da imagem do lobo e a posse do lobo em si, de todos eles. A violência incide em ambos. A imagem captura tudo.
Ao contrário, quando Daniela diz que vai cantar por cima do pôr do sol — já que, afinal, a imagem lhe pertence — a legenda mostra “lalalalalala”, mas não escuta-se nenhum som. O desencontro entre o signo escrito do som e o silêncio mostra a distância do reino da representação com o mundo. No seu roubo, novamente algo escapa. Já a figura do padre, referido como “o mais faminto por ossos”, metonímia de todo um mecanismo colonial, não é atingida.
Se, enquanto metáfora, o procedimento de captura das imagens é equivalente — roubo da imagem/roubo da coisa — somos lembrados que os signos estabelecem relações distintas com as respectivas ausências. O roubo da santa e do tigre, de um lado, são perversos por enredarem a imagem numa teia de violência que as extrapola. O roubo de Daniela, do pôr do sol, nesse sentido, é ineficaz já que não consegue fazer justiça frente ao que lhe foi tirado. E o filme está ciente de sua impotência. Ao se dirigir ao padre, diz: “Você vai dizer que estou sendo irônica. Eu estou sendo irônica. Mas o que é a ironia senão uma forma de melancolia”?
***
A vontade de contar através de imagens aponta para a crença de que o ato de tornar visível, de algum modo, opera mudanças no mundo material. Mas aponta, sobretudo, para o desejo de ver. A natureza da relação entre tornar visível e tornar possível — isto é, a natureza da imagem — é um nó que seduz. Investidas de desejo, as obras audiovisuais se constroem a partir e em torno dele: cada filme uma elaboração para essa pergunta silenciosa que paira e, ao fim, permanece enquanto nó. Porque aquilo que o signo esconde ao revelar pode ser mais ou menos literal, estar mais ou menos próximo do que se perdeu, e, ainda assim, nunca consegue restituir sua ausência.
O que esses filmes elaboram, cada um à sua maneira, é o cinema como resposta e parte do mundo, enquanto produto de um contexto e, espera-se, tendo efeito sobre ele. De uma forma ou de outra voltamos ao nó: entre o visível e o possível, o real e o imaginário e entre o estético e o político. Em Los Órganos Internos de la Madre Tierra e, em alguma medida, em La Huella, muitas vezes busca-se desatá-lo: enuncia-se explicitamente qual a intenção de mostrar aquilo que se mostra, contra o quê se mostra. No entanto, isso não tem efeito automático no real. Pode-se fazer qualquer coisa com uma imagem porque, ao fim, ela é uma posse e, por trás do que vemos, mecanismos de poder trabalham. Equivaler violência e justiça nas imagens com a existência dessas coisas no mundo coloca a representação a serviço de algo que lhe tira o que lhe é mais próprio, isto é, a indeterminação; a capacidade de ser e não ser, ao mesmo tempo. Uma espécie de ironia.
Todxs Queremos un Lugar Al que Llamar Nuestro, consciente da perda e da melancolia inerentes ao exercício cinematográfico, insiste no nó. O mundo sempre escapa e um filme, como toda linguagem, é construído com signos, ou seja, precisa distanciar-se dele para representá-lo. Nem por isso, deixa de existir o desejo de ver, de tornar visível e, de alguma maneira, interrogar o mundo através disso. Uma ambiguidade, que é frágil e rara, e que talvez, assim, reconfigure algo.