A sala escura foi pensada muitas vezes enquanto experiência voyeurística, de fascínio, estruturados à forma do desejo masculino. A exemplo disso, personagens como Scottie (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958), aludindo à espectatorialidade que persegue a mulher-imagem, são esmiuçados pela teoria feminista dos anos 1970 à sua forma fílmica e psicológica. Na contramão de abdicar da experiência do prazer visual, reivindicando-o a partir do olhar de uma mulher, Variety (Bette Gordon, 1983) recoloca um horizonte de experimentação possível com as imagens – até mesmo aquelas diante das quais uma resistência é incitada por alguns olhares feministas. Laura Mulvey diz que o que define o cinema é o lugar do olhar, a possibilidade de variá-lo e expô-lo. É sobretudo disso que se vale Gordon, arriscando outros olhares, testando-os através do desejo da protagonista Christine (Sandy McLeod), conforme começa a trabalhar na bilheteria de um cinema pornô.
Variety é um filme de planos longos. As luzes da cidade de Nova York, os vermelhos do foyer dos cinemas, os jogos de sombra do noir e os mistérios do erotismo de Christine, apontam para uma relação de fascínio do espectador com a imagem, remetendo à experiência do prazer visual. Não em termos do prazer em olhar aquilo que é imediatamente sexual, mas na inclinação do olhar pela própria imagem cinematográfica. Daí, a duração das imagens do filme na retina deixa-nos seduzidos, por vezes hipnotizados como voyeurs, pela forma. Aqui, um terceiro lugar para o voyeurismo, como situação instável do sujeito que olha. Menos uma afirmação e mais um estranhamento, um estado de indeterminação. A entrega a esse breve esquecimento de si proporcionado pelo voyeurismo cinematográfico de Gordon convoca a soltura dos desejos em direção à imagem duradoura. É nessa posição de voyeur que Christine se transforma e aquilo tido como um olhar feminino é desestabilizado pelo filme. E é também desse lugar que começam a fervilhar suas próprias imaginações eróticas, distintas das primeiras encontradas nos cinemas pornôs habitados pela massiva presença masculina.
Me deixe ver seus olhos
Christine está desempregada e sua amiga (interpretada por Nan Goldin) indica-lhe uma vaga de emprego na bilheteria de um cinema pornô na 48th street, chamado Variety. Já cansada das entrevistas de trabalho em vão, aceita prontamente e, em um corte, a vemos ajeitar-se dentro da cabine. O plano se divide em duas partes: à esquerda está Christine, ao meio a estrutura metálica envolvendo o vidro da bilheteria e, à direita, a rua e um homem comprando ingresso. Pouco tempo depois, ela pede uma pausa à José (Luis Guzmán) – homem que confere os ingressos na entrada – e vai fumar um cigarro no foyer do cinema. Uma luz vermelha sai de dentro da sala, junto com gemidos e falas do filme pornográfico. Christine caminha de um lado a outro, hesitante. Em um súbito gesto arriscado, sobe as escadas para a sala de projeção. Um dos personagens na tela diz “me deixe ver seus olhos”. Tal sedução atinge o olhar da personagem. É no encontro com essas imagens, no confronto, sedução e transgressão ao aproximar-se delas, que as fantasias de Christine se desdobram ao longo do filme.
A marquise chamativa do cinema é contornada por luzes neon verdes, azuis, vermelhas e amarelas; na parte superior há uma faixa de pôsteres de filmes e, na mesma proporção deles, a vidraça da bilheteria ao centro. Pra entrar na sala do Variety e deixar-se levar pelas luzes, Christine tensiona a posição que se espera de uma espectatorialidade tanto feminina quanto feminista. Próximo ao período de realização de Variety, protestos de feministas anti-pornografia aconteciam pelos Estados Unidos. Pauta em disputa naquele período, ainda hoje parece ser um debate difícil de adentrar. O filme de Gordon, no entanto, parece complexificar o gênero dos filmes pornô ao retratar uma mulher relacionando-se com eles. Aqui, a matéria pornográfica apresenta-se como alimento da fantasia, de reposicionamento e fruição com o prazer, e não de reiteração, ou apenas de reiteração de um imaginário patriarcal. Uma investigação do próprio desejo, conforme desloca a interdição de Christine diante da sexualidade, abrindo espaço inclusive à sua deformação.
Mais do que só observar pela bilheteria os homens em suas idas e vindas, é ser conduzida pelo desejo – em direção às imagens, através das palavras, dos monólogos, das perambulações noturnas pela cidade, das fantasias em fluxo livre. Impossível dentro de normas e cartilhas, porque necessariamente instável, Christine se abre à experimentação do prazer. Se existe uma dificuldade tão grande em pensar o que seria uma espectatorialidade feminina ou então um olhar feminista, é porque talvez devêssemos mesmo desconfiar. O filme nos mostra que esse lugar é mais incerto e contraditório do que muitas vezes se assume. Mesmo que seja verdade que historicamente a mulher tenha ocupado lugares de imagem-objeto diante do olhar voyeurista, vemos em Variety que, ao apropriar-se desse olhar para o próprio prazer, espiando nas sombras e falando em voz alta suas fantasias pornográficas, o voyeurismo está mais para o cinema que para o homem. Para Gordon, o voyeurismo interessa enquanto artifício em função do desejo de uma mulher.
Desde a primeira relação direta da protagonista com a pornografia, mas também na cinematografia da diretora, vê-se essa experimentação voyeur. A objetiva é seu gesto de olhar o mundo, seguindo as luzes e investigando óticas de prazer. Da inventividade de sua cinematografia, destaco uma das linhas de força: a insistência nas imagens – repetindo-as, estendendo-as, mergulhando nelas. Exemplo disso é seu trabalho realizado com James Benning, Michigan Avenue (1974). Aqui, o tempo dilatado envolve a figura de duas mulheres nuas, uma das quais caindo lentamente da cama e um posterior fade out vermelho. O que duraria cinco segundos, dura dois minutos no curta-metragem. Encontramo-nos sem saída, convoca-se o olhar minucioso deste corpo em queda.
Há também An Algorithm (1977), no qual vários frames de uma mulher mergulhando em uma piscina se repetem, fragmentados e repetitivos, variando entre versão positiva e negativa. Duas vozes contam cada corte, um homem e uma mulher, cada vez mais desordenados conforme o filme avança. Revemos a piscina na cena inicial de Variety. Em ambos os casos, aposta-se em uma imagem central (o salto na piscina, a queda da cama) e é sobre ela que Gordon se debruça. Os olhos excitados pelas luzes pousam em uma imagem só, podendo envolver-se por ela sem que um corte rapidamente lhe ofereça novo estímulo. O voyeurismo da duração vem alcançar o espectador com um tempo de sedução.
Entre a rua e o cinema pornô
Quando Christine descreve o trabalho para o namorado Mark (Will Patton), ela diz que trabalha “entre o cinema e a rua”. A bilheteria que ocupa funciona como um ponto privilegiado de observação. Christine acrescenta saber que sua presença ali constrange os homens. Na medida em que observa-os em suas dinâmicas do olhar, flagrando-os em seu gozo voyeurístico, há uma perda de poder. Um limite é colocado: a mulher assumida como imagem-objeto, excluída do próprio discurso sobre ela, está ali, sujeito, olhando de volta e isso desafia. A imagem de uma mulher olhando dispara em muitas direções, multiplicadas pelo pequeno espelho pendurado à sua frente na cabine. Por ele, vemos constantemente a imagem de Christine olhando a rua, a si mesma, os homens e, em certa medida, à nós, espectadores voyeurs.
Os luminosos dos cinemas pornôs mesclam-se com outros da cidade de Nova Iorque. Isso se vê também em Anybody’s Woman (Bette Gordon, 1981), curta-metragem que precede a realização do longa Variety. Em ambos os filmes, na medida em que a câmera percorre os neons excessivos da metrópole, forma-se uma relação entre o regime de imagens da pornografia com o da propaganda. Essa linguagem luminosa seduz e, ao mesmo tempo, satura. Levada por ela, Christine perambula na madrugada. A rua noturna interditada às mulheres é assim ocupada por ela, fornecendo um intenso retrato urbano daquele início dos anos 1980. No ir e vir da personagem ela desliza sem tantos limites, à ordem do próprio desejo, por entre espaços masculinos. Diante disso, também vale perguntar quais as brechas abertas ao voyeurismo de uma mulher branca e cisgênera. Também isso atravessa sua relação com as imagens pornográficas e os espaços da cidade e toca, mais uma vez, na impossibilidade de pensar um olhar feminino como tal.
Ao abrir espaço para a rua interpelar a narrativa, produz-se também uma espécie de distanciamento da centralidade narrativa da personagem. Os entornos urbanos cativam-na e roubam a cena. Em suas caminhadas pelo Fish Market, vemos vários planos de trabalhadores, dos peixes e mercadorias que organizam para o dia que virá. O olhar dessas figuras muitas vezes se direciona à câmera, sublinhando ao mesmo tempo Christine e o cinema de Gordon diante deles. Um peixe sendo fisgado pelos olhos, restaurantes na Chinatown, recorrentes registros da Times Square. O filme flerta constantemente com o documental, na medida em que a diretora extrai da cidade seu motivo visual e inscreve pelas ruas sua presença.
Também há a passagem de outras pessoas e histórias pelo filme, como das amigas que Christine encontra no bar que frequenta. Trata-se de um lugar onde ela e outras mulheres se reúnem fora de posturas, digamos, ideais. Variety tem um pouco a leveza dessa bancada: espaço de recusa de pressões morais pra contar histórias, mesmo que contraditórias, às nossas companheiras. A protagonista ouve atentamente outra mulher relatar um contratempo vivido no contexto de seu trabalho de dançarina em casas noturnas. Elas conversam sobre o dinheiro que se pode ganhar com uma tal agência, seja dançando ou atuando em pornografia. Aqui, são interrompidas por outra mulher, que contrapõe-se ao trabalho nestes filmes e afirma tratarem-se de uma forma de controle masculina.
Para exemplificar seu ponto, descreve uma cena que presenciou no bar em que trabalha: uma das garçonetes, de origem haitiana, revolta-se com os homens que atendia, arrancando sua peruca e revelando ser careca diante deles. Assustados, vão embora, enquanto que ela sobe ao palco e as outras trabalhadoras presentes seguem dançando a noite inteira ao seu lado. E acrescenta: diante deles, ela apenas teria dito fuck you. Tal diferença de pontos de vista sobre trabalhos em contextos sexuais enriquece Variety, mais ainda quando as personagens colocam-se a debatê-los. Enquanto a narrativa é conduzida pelo olhar específico da protagonista, nessa sequência damo-nos a ver com uma multiplicidade de olhares mais realçada. O interesse do filme parece-me recair sobre essa discussão possível, subvertendo um arremate moralista que encerra as imagens entre boas ou más.
Fantasia pela palavra
Um plano fechado na bunda de Mark, quieto e tensionado diante de uma máquina de pinball, passa a outro, de Christine, com os olhos bem abertos e quase sem piscar, vestindo no pescoço um lenço de estampa de oncinha, descrevendo para ele uma cena sexual entre uma mulher, uma cobra e um tigre. Christine é escritora, conforme comenta no início do filme. Daí, é de se pensar que toda a fruição com as imagens pornográficas também vai desembocar na elaboração da fantasia pela palavra. Nesse caso, Gordon coloca a ficção narrativa à disposição dos fluxos da protagonista.
Christine fala em voz alta e em público, descrevendo as imagens que vê em Variety e as que se desdobram dessas, desafiadoras e eróticas. Mark diz algo que termina com “another story”, servindo como uma deixa que ela estende para “another story, another story, story, small stories […]” e engata em mais uma de suas fantasias. Assim, em contraposição à figura masculina que fala sem parar de si, as palavras dela vão se sobrepondo. Mark, que aparece no filme pela primeira vez falando entusiasmado de seu trabalho, na cena do pinball já não diz mais nenhuma palavra. Enquanto ele parece prestes a explodir, as palavras da fantasia de Christine seguem cada vez mais firmes.
Se pensarmos o erotismo como esses momentos de excesso, de dissolução das formas constituídas, podemos pensar as falas da personagem como uma fissura no fluxo do filme, dando a ver a fantasia explícita, seu excesso. O discurso erótico dela assume colocar-se no lugar sedutor e estranho de um voyeur, ao descrever cenas nas quais ela se posiciona como uma narradora observadora. O voyeurismo dela comunica o que deveria ser um segredo e, dito em público, faz reconhecer que Christine não foge aos apelos do corpo e do desejo, mesmo que estes respondam a fervores contraditórios de sua imaginação.
O que você quer ver? Roleta do sexo ou O demônio dentro dela?
Dentre os homens que entram e saem do Variety, um deles capta intensamente a atenção de Christine. É Louie (Richard Davidson), um empresário misterioso. Se o voyeurismo no cinema clássico narrativo revelou, por vezes, uma dicotomia entre o masculino e o feminino, em Variety opera-se uma subversão destes papéis, no qual a mulher é quem assume a posição de observadora e o homem de objeto enigmático. A personagem observa Louie em vários encontros e apertos de mãos com outros homens pela cidade de Nova Iorque. Perseguindo enigmas de um universo masculino e fechado, vai chegando cada vez mais perto e cada vez mais sendo tomada por uma espécie de perturbação erótica. A perseguição faz-se em paralelo às fruições com as imagens vistas na sala de cinema. Quanto mais Christine adentra às imagens pornográficas e deixa-se transformar por elas, mais intensa é a sua observação de Louie.
Na ocasião em que segue-o até o Motel Flamingo, ela entra no quarto dele e mexe em suas coisas. Não encontrando nada e ouvindo-o chegar, volta rapidamente para seu quarto e, ao deitar-se, revela ter roubado dele uma revista pornô. O que ela deriva desse frenesi de adrenalina: a fantasia, o desejo, o gozo dela. Isso fica mais claro na cena seguinte, onde a vemos no Variety, abandonando a cabine da bilheteria de forma intempestiva e entrando na sala de cinema com tal força que o que ela encontra lá é a própria imagem de sua fantasia com Louie. Na medida em que o filme aproxima seu desejo de uma moldura da fantasia masculina, leva-nos a perguntar o que se transforma dela a partir de Christine. Além disso, esse olhar nas sombras vai, progressivamente, se transmutando em uma performance. A vemos, por exemplo, em um longo plano vestindo um corset azul-marinho de cetim, com luzes vermelhas ao fundo, olhando-se no espelho. Entendemos posteriormente que o autoerotismo acentuado dessa imagem justifica-se por tratar-se de um peep-show. Aqui, Gordon ainda subverte a ideia de objetificação como simples passividade.
I Like to Watch
A intensificação do estado de mistério do filme e o ultimato de Christine convocando Louie a encontrá-la, fazem do plano final, uma esquina vazia, ápice e dispersão. A Nova Iorque que vemos ao longo do filme é movimentada de pessoas, cheia de cores, caótica. Diferente dela, a esquina vazia dá-nos uma sensação de irresolução. Um poste de luz clara reflete no chão, é noite e quase nada ali se move. Ainda reverbera Christine envolta de posters de filmes pornôs e luzes vermelhas. Retumbam as imagens duradouras e a excitação erótica prende a respiração.
A esquina é uma imagem vacilante: a qualquer momento eles podem aparecer das sombras. Esperamos isso. Entretanto, o risco que Variety assume não pulsa somente nas superfícies neons da metrópole. Também as sombras têm seu lugar, como os filmes pornôs descritos apenas pela palavra de Christine. Faz-se um cinema erótico alongado entre o voyeurismo flutuante e a atenção radical com as imagens. Diante da experiência dessa imagem de um minuto, nossa única referência é o instante de iminência de uma fantasia prestes a se realizar. E um desejo pornográfico – explícito e cinematográfico – de olhar.