Formas em proliferação | 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto

por Barbara Bello e Helena Elias

Nossa relação com o cinema de animação é incipiente. Sublinhamos isso não para justificar uma falta mas, pelo contrário, tomar a natureza desse contato como matéria de escrita. Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas…, oportunidade rara de irmos desarmadas ao encontro das imagens.  Por um lado, toda uma nova gramática e, por outro, as interseções possíveis com outros cinemas. O mais interessante parece estar aqui: que a animação não esteja apartada do cinema, nem se mostre como nicho ou categoria fechada. Na sessão de abertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, o primeiro sobressalto elástico-colorido-flexível fez Helena dizer “mas já mudou tudo!” Então, nos sentamos na calçada com bebidas em mãos e, por entre olhares tateantes, rascunhamos as seguintes palavras:

lisérgico-cromático-mutação-psicodelia-olhos saltitantes-romance-curioso-maleável

O cinema de animação pode ser visto ou como um gênero cinematográfico, ou como linguagem autônoma – um meio expressivo que se diferenciaria do cinema em geral –, em relação à sua técnica e ao princípio sensível sobre o qual sua linguagem se constitui. Há mesmo quem diga que a animação seja pura e simplesmente uma técnica (ou um conjunto de técnicas). Certo é que a decomposição do movimento, assim como na história do cinema tal qual conhecemos, exerce uma função estrutural na animação.

A apropriação sucessiva das partes de uma segmentação criam a ilusão de movimento. De cenas analógicas faz-se a cinese. Baseando-se nas leis físicas da realidade, o animador encena o movimento e o faz característica constituinte de seres inertes. Se vamos a fundo na tentativa de encontrar uma definição para animação, constataremos talvez, como Dick Tomasovic, que ela sempre esteve e talvez sempre estará em crise com sua identidade e justamente isso seria sua característica. Pensando nas imagens da animação a partir desse lugar metamorfoseante, destacamos aqui títulos que dão a ver uma variabilidade formal e inventiva.

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Em Castelos de Vento (1999), de Tania Anaya, a cidade de Belo Horizonte se distende na fumaça do baseado de um rapaz solitário. A brisa toma rumos ao som de Juízo Final (Nelson Cavaquinho) e nos conduz. Em tela, a Praça da Liberdade e o Viaduto Santa Tereza são dissolvidos, uma cartografia conhecida é suspensa em lugar da outra. A transição entre elas se faz na totalidade da tela, pelo detalhe dos fios pretos esvoaçando. 

O rapaz dança com a dona dos cabelos negros e os vemos nucleares, numa circularidade que lembra a forma como Dib Luft em Esse Mundo é Meu (Sérgio Ricardo, 1964) apresenta o amor: flutuantes, em suspensão, no alto, ao vento. A movimentação dos traços absorve a cadência de Nelson Cavaquinho, atingindo seu ápice na explosão de um aquário. A água e os peixes se espalham entre o casal, os cabelos voltam a tomar a imagem. Ao emergir e submergir em plena praça pública, Castelos ao Vento leva o gesto da grafia infinita da animação ao frescor de uma tarde na cidade. 

Até a China (2015), por sua vez, a partir de desenhos econômicos e planos estáticos, encarna o estranhamento inerente a tudo aquilo que até então não conhecíamos. Enquanto o personagem principal se prepara para uma viagem à China, os desenhos em preto e branco e imóveis preenchem a tela. As ações do personagem são amplificadas pelo contraste entre seu movimento sobre o fundo parado. Tudo que o circunda parece habitual, de modo que a operação de distanciamento começa a tomar forma a partir da voz que tudo narra, com o ar anedótico. 

Se antes tudo era branco, quando aparece uma funcionária do serviço da imigração, inteiramente pintada de amarelo, desnaturaliza-se as perspectivas sobre as cores. Às cidades e aos habitantes locais são colocadas cores como um artifício de contraste entre orientais e ocidentais. O diretor Marão encara a tarefa da descrição radical, conduzida pelo sobressalto da riqueza visual do país estrangeiro. Sua voz nos conduz à imperfeição de nossas impressões, aos exageros, as suas prováveis mentiras. O filme permanece um constructo vivo e cambiante, tomado por uma impressão forçosamente estrangeira. 

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O desejo de fotografar cavalos apoiava-se nas pesquisas científicas do final do século XIX. No entanto, os usos da fotografia estática passaram a ser subvertidos e alargados para dar lugar ao registro sequenciado. Criam-se as condições técnicas para o fundamento da imagem em movimento. A potência de profanação das finalidades fixadas da fotografia, o teste de uma função suplementar em relação a estase das imagens revela um uso múltiplo, que invade a arte e a indústria no século XX.

Noturno (1986), dirigido por Aída Queiroz, abre-se tela em preto. Ondas sonoras digitais dos anos 1980 acompanham os contornos neons de um cavalo azul. Relances dos primeiros cinemas são evocados. Queiroz apresenta-nos o plano lateral do cavalo de Muybridge, não pela câmera, mas pela inscrição manual e observadora do traço. Logo em seguida, desintegrá-o. O corpo do cavalo é distendido, um zoom nos pelos de seu rabo transforma-os em linhas dançantes. Deles, se desdobram animais duplos, noutras cores, atravessando-se uns aos outros incessantemente. Vai-se da objetividade do movimento para sua total dispersão em feixes de luz festivos.

Realizado no mesmo ano de Noturno, Frankenstein Punk (1986), de Eliane Fonseca e Cao Hamburger, mobiliza o cinema de horror e do uso material de massinha de modelar para tocar a seu modo a clássica criatura monstruosa. Envolto por uma chuva de raios, no sinistro castelo do cientista ouve-se Singin’ in The Rain (interpretada por Gene Kelly) quando um curto-circuito mata o criador e dá vida à criatura. Frank deixa o castelo e sai caminhando pelas ruas. Um trabalhador entediado de um posto de gasolina desértico e uma mulher loira fumando cigarro ao som de Strangers in The Night (Frank Sinatra) em seu conversível vermelho são as primeiras pessoas com quem ele cruza.

Os dois fogem assustados, a gasolina escorre e tudo explode. Nem em festa requintada da terceira idade, nem em show de rock ele é aceito. Numa loja de discos é acusado de punk, fechando-se as portas diante de sua presença. Uma garota punk e anarquista atrai-se e encontra Frank, beija-o e ele vai, à forma de Gene Kelly, cantarolando pelas ruas. As referências hollywoodianas e de gênero – do terror ao western e o musical – engendradas na disformidade da massinha são subvertidas, configurando um corpo-colagem de fragmentos ambíguos entre si, adequados à figura do frankenstein. 

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Em Poéticas de Barro (2019), Giuliana Danza utiliza-se da técnica do stop motion para expressar a maleabilidade da terra molhada. O barulho de chuva sobrevém no início do filme, quando vemos uma paisagem de formas amorfas, que parece derivar do barro. As formas informes têm colorações variadas, numa escala que vai do verde a tons mais amarronzados. Apesar da antropomorfização de algumas delas, o que chama mais a atenção não é a narrativa do filme, mas o investimento na captura da tenacidade própria à argila. Num misto entre viscosidade e rachadura, insistindo nos efeitos visuais das hachuras diversas do barro e dele representado por massinha, o curta revela uma sensibilidade sinestesica. Temos a impressão de sentir as texturas das superfícies a partir das junções entre imagens e sons. 

Em uma outra cena, vemos uma planície com água transbordante. A sobreposição das ondinhas de água aos riscos e linhas cravadas no barro resulta numa consistência única. O filme encaminha-se para a crosta terrestre. Os desenhos tridimensionais dão lugar à glutinosidade de desenhos feitos em uma superfície de chocolate líquido. Como um convite à penetração nas densidades específicas à cada matéria, Poéticas de Barro recusa uma simples disposição do recurso antropoide e aproxima-nos do que há de mais concreto.

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Ao fazer do cinema de animação seu tema principal, a CineOP, entra na contramão de suas edições anteriores, incitando uma reflexão prolongada através desse recorte. A impressão é que debates distintos circulam entre os circuitos de animação e outros de curadorias mais abrangentes – que, no entanto, raramente programam tais produções. O festival opta por alocar na programação deste ano alguns longas de animação de grande sucesso no circuito comercial, homenageando a cinematografia de Alê Abreu, conhecido sobretudo pela circulação significativa de O Menino e O Mundo (2013).

Além da homenagem, destacam-se entre os títulos exibidos uma grande variabilidade técnica e de estilo, um número expressivo de diretoras mulheres e a presença de produções latino-americanas, contando com obras do acervo da Cineteca Nacional do Chile. Relembramos que, no ano passado, as discussões corriam em torno de musicalidades negras, enquanto na edição anterior se dedicava às produções indígenas. Estabelece-se assim uma descontinuidade e, ao mesmo tempo, demonstra uma abertura a novos debates que circundam a abrangência das janelas de exibição nacionais.

Referências Bibliográficas

BRAKHAGE, Stan. “Metáforas da Visão”. A Experiência do Cinema. Org. Ismail Xavier. São Paulo: Ed. Graal, 1983

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