para Lara
Um corpo toca uma superfície e deixa uma marca. Difícil saber quando uma impressão não voluntária começa a acontecer. Somos em geral surpreendidos por uma marca súbita. O desejo por impressões é raro. É uma abertura às contra-formas. Ao incalculável. É a aposta no encontro de materialidades distintas. Um tipógrafo ama impressões. A maneira como as palavras se organizam no papel passa a ser tão importante quanto seus significados. Significado e significante penetram-se mutuamente. Convida-se aos silêncios dos espaços em branco deixados em uma folha com palavras dispersas, à versificação que usa o espaço gráfico ao seu favor.
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Com sons de sinos e barulhos vacantes inicia-se Guilherme Mansur – obra em desdobra (João Dumans, 2024). Um papel texturizado com o escrito “Tipografia do Fundo de Ouro Preto” vêm à tela, ouvimos um poema. Numa fusão, a imagem de um homem assentado vai ganhando força. Ele está em uma sacada com a porta metade aberta. As portas da sacada são trabalhadas, têm rasgos em vidro. Finda o poema. Sem gradações surge o próximo plano. Vemos uma mão que pressiona um lápis espesso e colorido sobre um caderno pautado. A folha pautada tem sua ordem contrariada. Novas divisões foram traçadas. A mão pressiona o lápis, ouvimos a pressão da ponta do lápis sobre a folha. O plano abre, vemos o homem que escreve/desenha.
A cadência do filme acelera com um interlúdio. Ouvimos o pulsar de um saxofone que põe fim na introdução. Intertítulos surgem. Eles usam caracteres especiais da mesma maneira como usam palavras. Em um plano fixo, à contraluz e de costas, o homem é entrevistado. Suas costas estão focadas, o fundo, de onde vem a luz, em desfoque. Guilherme Mansur conta memórias de infância. De quando passava horas no chiqueiro. Forrando seu chão, recolhia impressões das patas de porcos. “Eu fui alfabetizado por uma caixa tipográfica”, diz. O ritmo é retomado pelo saxofone, que acompanha os intertítulos – sempre caracterizados pela substantivação do espaço gráfico –, que confere mais plasticidade ao verso, dando a ver as pausas e intervalos da dicção, mesmo no texto escrito. O espaço gráfico não é mais acessório, um mero meio de profusão de ideias, mas ele mesmo é substantivado. O modo como a grafia das palavras é organizada importa.
Com movimentos discretos da câmera captura-se uma mão que manipula blocos de madeiras recortados. Mansur designa letras ao ter em mãos cada um dos blocos. Com pouca luz, visualizamos os blocos e seus pés, enquanto ouvimos barulhos do contato da madeira com o chão. Por vezes sua mão é enquadrada. Uma das rodas de sua cadeira também. A câmera sobe e vemos a parte superior do corpo do homem, que projeta-se em direção ao chão para largar e pegar os tipos de madeira. João Dumans filma Mansur no escuro, ao andar em sua cadeira de rodas por uma sala de estar. A única luz é do censor da cadeira de rodas. Mansur vai em direção a câmera, vacila, retorna – em direção ao interruptor. Acende a luz e diz “corta”. A câmera ainda fulgura, vemos um plano desequilibrado da janela, com o ambiente iluminado. O delírio da câmera – por vezes mera oscilação, por vezes persistente – funciona como intromissão no ritmo do filme, um tremor impassível de ser associado ou trazido à legibilidade. Pura intensidade, as trepidações da câmara se associam à iluminação, reforçando o caráter afetivo desses elementos.
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Na tela, o poema de Mansur – À propósito da morte. Em time-lapse, um hall com muitas pessoas está sendo filmado. Num próximo plano, um túmulo com duas pessoas em volta. O recurso de aceleração das imagens dinamiza o filme, embalado agora pela música Alta Noite nas vozes de Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Uma árvore é filmada seguindo a aceleração. Mulheres jogam papéis coloridos de uma sacada. Quando a câmera volta ao chão, vemos pés por entre os papéis coloridos, pessoas que se abraçam, outras que coletam os pedaços de papel. Ainda inquieta, a câmera filma o que está escrito em um dos papéis, e depois noutro uma volta/uma voluta/meia volta/outra voluta/volta e meia/e vou à luta, poema de Guilherme Mansur. Fade-out. As celebrações fúnebres são filmadas com aceleração artificial, como se dali para frente – entre lapsos e clarões – o ritmo afetivo estabelece-se como padrão, apesar de sua instabilidade.
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Como um tipógrafo, o montador e diretor João Dumans calcula o emprego de tipos diversos – com planos longos no que tange os registros de Mansur em vida e a aceleração dos planos de seu velório e enterro. Sustentando não tanto a exposição de sentidos bem elaborados e estanques, mas a intermitência dos encontros inesperados entre materiais. Assiste a posição das linhas tipográficas, ao recortar com cuidado os versos escritos pelo poeta, e dispô-las com alguma persistência na duração. Aposta na potência do espaço tipográfico, preferindo evocar por meio de elipses dados biográficos da vida de Guilherme Mansur. Potencializa o lirismo das imagens ao tecer relações entre seus versos impressos na tela, os versos de Ezra Pound lidos em off e as linhas jazzísticas do saxofone de Francisco César. A meio caminho entre elegia e fugacidade, urgência e monumento, planejamento e acidente, Dumans labora. Faz-nos lembrar dos planos que Glauber filmou no velório de Di Cavalcanti. Aqui, porém, recusa a grandiloquência da morte e mostra-nos o que há de mais vivo à sua espreita.