Carta à Paula Gaitán (ou suar ideias e vibrar o inacabado) | Dossiê #3: Desejar imagens

Paula,

Espero que esta carta te encontre bem, com saúde e com os olhos descansados.

Te escrevo a partir da tentativa de aproximação (e do reconhecimento das oposições) entre Noite e Rocha e Rio, Negro Leo. Juntos, me parecem filmes que instauram o inacabado. Ficam com ele. E se colocam atentamente para ouvir o que está ao seu redor. No primeiro, Negro Leo fala continuamente por duas horas e trinta minutos. No outro, ouvimos um tanto de coisa, desde músicos tocando ao vivo, artistas cantando e pessoas dançando, mas de forma contínua, ouvimos e experimentamos principalmente a efervescência daquela que dá nome ao filme: a noite. Uma noite que é pulsante, com luzes piscando, cigarros acesos, glitter no rosto e corpos suados. Não à toa os dois filmes começam no escuro, a audição sendo o primeiro sentido a ser convocado.

Ouço Negro Léo por tanto tempo e de maneira tão dilatada que começo a me sentir próximo. Como se estivesse ali em algum lugar da sala conversando, trocando com ele, ouvindo seus discos e esperando um café. Talvez principalmente pelo reconhecimento em alguns dos assuntos, como a dificuldade de viver financeiramente como artista ou a experiência de ser negro em uma universidade pública, mas também pela duração e permanência diante da presença dele, experimento algo que estranhamente se parece com ter intimidade. As ideias e assuntos vão se relacionando, se sobrepondo, virando outras ideias e dando origem a outros assuntos. 

Um movimento semelhante acontece com as imagens e as sonoridades de Noite. Os planos não se fixam por muito tempo, mas se alteram e se sobrepõem – o movimento do pensamento e o movimento do som conjugam sentidos e dissonâncias. Em Rocha e Rio…, acompanho o fluxo de pensamento de uma única pessoa. No outro, sou conduzido pela música e pelos movimentos influenciados por ela, pelo fluxo da mulher que transita. Clara Choveaux é um ponto de referência e esse fluxo vai me envolvendo também. A sensação é de estar na festa com ela. Não a conheço, tampouco sei seu nome, mas estamos juntos de alguma forma. A festa e a noite nos aproximam. É como se dançássemos juntos. 

Se a proximidade com Negro Leo se dá pela palavra, com a mulher que transita se dá pela dança – mas me aproximo dos dois principalmente pelo som. O som se espalha, se dilata, se estabelece. Em Noite, os planos variam bem mais e os cortes tendem a ser bruscos, repentinos. A duração dele é menor, em comparação ao outro. Mas a insistência aparece na semelhança entre muitas das imagens e dos sons, pois, ainda que os cortes mudem rapidamente o que está diante de nós, algo vai permanecendo. Há quase sempre uma música tocando, luzes neon e coloridas que pintam a tela e alguém dançando e suando. É sempre festa. Ainda bem. 

Negro Leo fala, fala, fala. Pensa, pensa, pensa. O som vibra, vibra, vibra. Se Negro Léo coloca as palavras para suar, Noite por sua vez coloca corpos para dançar.

Enquanto Noite é bastante sensorial e com quase nenhuma fala, Rocha e rio, Negro Leo é radicalmente verbal e racional. Me chama muito a atenção que, em meio a tantas falas sobre os conceitos envolvidos em álbuns e músicas de Leo, você escolheu mostrar os momentos de improviso musical sem letras e palavras. Do meio ao fim, tão cheias de logos, Negro Leo dança e canta improvisando melodias apenas com sílabas, abrindo assim certa brecha para a “falta” de lógica que aparece mais fortemente em Noite. É fascinante essa imagem do Negro Léo cantando sem emitir palavras. A imagem com a qual você encerra o documentário… ele cantando e batendo repetidamente no chão, com a cabeça (símbolo máximo da racionalidade) tão perto do chão, fazendo o corpo e a tela vibrarem.

Tenho a impressão de que você leva a exploração de um desejo até o esgarçamento, como alguém que se recusa a ir embora da festa, que não sai do front, que vai se aproximando dos limites do corpo na pista, que vai para o after pois quer permanecer festejando. Noite é a escolha em ficar. A fogueira no plano final do filme queima a noite toda e, mesmo com o dia clareando, ela ainda continua ardendo, preenchendo o ar. Os créditos finais, mesmo que faça escuro, ainda piscam. O filme termina, mas o fogo não dá nenhum sinal de que vai apagar. 

Acabei de lembrar que, coincidentemente, uma das poucas vezes que pude conversar com você foi justamente em uma festa. Ela foi bem diferente das que estão presente em Noite, mas, ainda assim, uma festa. Paula, confesso, sou uma bicha de festa. Uma bicha da noite. Para além de reconhecer em uma ou outra imagem do filme, o que fica mais evidente para mim é o desejo de estar dançando junto, suando com esses inferninhos filmados. Já fiz isso e, diante das imagens vibrando, sinto como se estivesse lá mais uma vez. Você abre um espaço nos filmes que sinto a possibilidade de habitar. Sento à sala com Negro Léo, chego pertinho do DJ porque é onde a música é melhor de se ouvir. 

Há um momento em que Negro Léo fala que não gosta de dar muito acabamento aos seus álbuns, pois vê isso como uma demanda muito comercial. O inacabado aparece como proposta nesses dois filmes, não é? O que facilmente seria cortado da versão final, ou lido como descartável/rascunho, torna-se fundante: Em Rocha e rio, Negro Leo é o silêncio entre uma fala e outra, a correção de uma ideia, o tempo para uma mudança de enquadramento, a discussão em torno da luz estourando, uma fala sobre a câmera estar para descarregar e só restar 20 minutos de filmagem… 

Em Noite é o som que estoura, a imagem que não foca, a filmagem das filmagens exibidas no visor de uma câmera, as festas que se recusam a acabar. Imagens que são tomadas como rascunhos, que me levam a tentar olhar através do teu olhar sobre as coisas. Ir em direção ao inacabado, tomar a pedra bruta nas mãos, mixar imagens pixeladas… deixar espaço suficiente para o risco dançar. É o que tenho aprendido a desejar: o risco, o indeterminado, a dança. 

Aliás, você já esteve em Natal?

Quando vier aqui, e quiser conhecer a noite, me dá um toque. Sei de lugares onde as músicas vibram por todo o corpo. Dá pra fumar na pista. Arranjo até um after.

Beijos,

Quemuel.

Share this content: