De quando o pensamento não é um narcótico tão bom: sobre os filmes de Sebastian Wiedemann | 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto

Textos não podem nunca ser usados apenas como guias de hermenêutica sobre uma cinematografia. Mas comumente diretores e diretoras de cinema se debruçam sobre escritos, elaborações discursivas que dialogam menos ou mais com seus trabalhos cinematográficos. Seja Glauber Rocha, com Eztetyka da Fome (1965) e Eztetyka do Sonho (1971), ou Los Ingrávidos com Tesis sobre el Audiovisual (2021): as elaborações não se sobrepõem às imagens produzidas. 

Resta o questionamento: os filmes são construídos a partir de perguntas ou as perguntas são o que sucedem dos filmes?

Sebastian Wiedemann é um desses diretores que, para além de sua produção audiovisual, organiza coletâneas de textos e escreve sobre cinemas experimentais na América Latina como La Radicalidad de La Imagen: Des-bordando Latitudes Latinoamericanas (2016) e Migrant Thoughts: Cinematographic Intersections (2020). Os escritos dialogam com o seu trabalho e funcionam, por vezes, como dilatação de suas imagens. 

Ao prefaciar La Radicalidad De La Imagen…(2016) com Florencia Incarbone, Wiedemann retoma ideias da Eztetyka da Fome e fala sobre um cinema esfomeado, que traz consigo a fome primordial, que não se contenta e nem se sacia com o que já está dado. Também há a defesa de um “cinema menor”, como a “literatura menor” de Deleuze e Guattari (1975), que consistiria num “estado de infância inerente à matéria-cinema” a qual proporcionaria a entrada em “movimentos de radicalização e experimentação”. Sobretudo, afirma-se sobre a  existência de uma faceta política das imagens, “o desejo por afirmar um vitalismo que envolve a procura da Imagem e que inevitavelmente nos obriga a ter uma posição ética e política ativa”.

Ao entrar em contato com seus filmes, porém, nos questionamos sobre como as imagens estabelecem uma relação com os textos e conceitos desenvolvidos por Wiedemann. Exibidos na 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, numa sessão dedicada a sua filmografia, os curtas-metragens se ancoram de tal forma à palavra que suas imagens são incapazes de mostrar e/ou apresentar aquilo (ou para além) do que seu discurso não se cansa de dizer. Se o conceito permite identificar “com clareza” aquilo que habitualmente se apresenta de modo fluido e inexato na linguagem, as imagens seriam capazes de apresentar a complexidade de uma trama contraditória, permeada por choques. Wiedemann, no entanto, submete imagens ao conceito, aniquilando sua complexidade sensível. 

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Cintilações (2018) começa com voz off, falas opacas e imagens visuais dispersas. Primeiro vemos pássaros enquadrados por detrás de um vidro com gotas. Num próximo plano, um ecossistema de algo parecido com barro, de formas não claramente delineadas, que emulam bonequinhos. A voz fala sobre a “diferença diferenciadora”. O que se segue são imagens de livros grifados, cadernos pautados permeados por palavras do vocabulário deleuziano – agenciamentos, estratos, platôs, rizomas. Um homem idoso aparece e, por trás dele, está uma biblioteca com estantes abarrotadas de livros. Ao mesmo tempo, vemos sobreposições em tela, uma superfície preta varia o tom da imagem, com  pequenos pontos iluminados, como se fossem ilustrações da menor unidade de luz – lúmens. O filme não apresenta uma multiplicidade articulada, não opera por meio de cortes ou uma superposições, mas apresenta um todo pouco ou mal relacionado. Não dá a ver a força própria da imagem e tampouco o frescor das noções deleuzianas;

Apesar de Zugang significar “acesso”, “entrada” ou abertura em alemão, o filme homônimo assinado por Wiedemann, de 2011, faz justamente o contrário: cria imagens genéricas de luz e escuridão em uma montagem pouco inventiva e emula o encontro com uma forma de conhecimento clara e imediata. O uso de músicas inespecíficas insinuam uma iluminação espiritual e “asseguram” que uma atmosfera de suspense seja mantida. As conjugações entre imagens de paisagens aquosas com sobreposições semelhantes aos lúmens em Cintilações, são trazidos à tela. Uma imagem mais figurativa em preto e branco – de um corpo seguindo uma rua asfaltada – é repetida algumas vezes. Assim finda o filme: plano. Prenhe de imagens covardes, que são, como um todo, desconjuntadas. 

Em Ondas-Vestem-Ruídos (2016), o cineasta responde a uma carta em forma de filme. Manipulações de fotografias reveladas ocorrem diante da objetiva, criando uma espécie de colagem. O dispositivo da obra consiste em manejar recortes de papel que passam a ser  sobrepostos às fotografias iniciais. Nelas, vemos preponderantemente uma mesma mulher, em selfies, vestida sempre de top, shorts e boné. A mão que mexe nas imagens é enquadrada. Uma voz off enumera acontecimentos ordinários, assim como relatos mais pessoais sobre identidade de gênero – o conforto por ser chamado de um nome diferente daquele que fora registrado. O filme insiste no mesmo procedimento – extremamente fatigante – de sobrepor imagens recortadas umas sobre as outras. A insistência no gesto, ainda que queira persistir na distensão da duração, é óbvia. Insistir na duração pode dar a ver a heterogeneidade por dentro. Mas, aqui, não encontramos uma multiplicidade que nasce da insistência de uma repetição. Não há fricções, nem tensionamentos.  

Ondas-Vestem-Ruídos (2016)

Ondas (2015) também é título de um ensaio publicado em uma coletânea de textos organizada pelo diretor, um experimento em pensamento-cinema ou das variações de uma máquina-marinha. No penúltimo filme da sessão, vemos traços verdes que passam de baixo para cima numa tela variante, enquanto ouvimos o soar de máquinas. Tratam-se de manipulações e interferências executadas diretamente na película. Os traços metamorfoseiam-se em pinceladas coloridas, os estados começam a permutar. A busca de Wiedemann parece consistir em ilustrar seus conceitos através da feitura de filmes, mas apresenta imagens desprovidas de elementos que saltam aos olhos, não duram na retina e são incapazes de evocar, no final das contas, alguma sensação imperativa. 

Azul Profundo (2020) encerrou a sessão de curtas de Sebastian Wiedemann na CineOP. O título também nomeia seu livro, em que define o termo como uma devoção ao movimento da vida que se afirma no decorrer das devorações, das difrações e das obliquidades. Sem a priori, sem pressupostos, sem localização nem medida, sendo resto remanescente, ruína e excesso de vida por vir. Imediação aquosa como viagem e meio. O nome do filme remete-nos ao contundente Blue (1993), de Derek Jarman, em que definições poéticas de azul são esboçadas: For blue, there are no boundaries or solution; blue is darkness made visible; blue, an open door to soul. Ao contrário das especificidades técnicas e estéticas empregadas no filme de Jarman, Wiedemann mobiliza um conjunto de imagens do que seria o profundo, marinho, como se tudo fosse uma derivação de nebulosas. Enquanto varia a velocidade das imagens, ouvimos uma espécie de canção entoada por vozes metálicas. As imagens visuais são de tal generalidade que parecem fundos de tela do Windows

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Se Wiedemann prescreve a potência da experimentação e da radicalidade da imagem, de dar a ver aquilo que não seria passível de predicação ou de encaixe em categoria, o que vemos em seus filmes, quando muito, se reduz à não-figuração. Alguns títulos apelam para estratégias ainda menos potentes, como é o caso da verborragia que ocorre em Cintilações. Ou para um léxico imagético já dado de antemão, como observamos em Zugang e Azul Profundo, em que as imagens parecem ser retiradas de um banco de dados genéricos da internet, funcionando como ilustrações de noções como intuição fulgurante e profundidade. Os filmes Ondas-vestem-ruídos e Ondas nos dão, à princípio, algum tipo de expectativa sobre uma possível experimentação vindoura. Mas as estratégias dos filmes caducam logo nos primeiros minutos, já que não são, em nenhuma medida, cambiadas. Uma repetição que não põe em jogo a própria natureza  da imagem e de sua referencialidade. 

Numa inversão da ordem das coisas, Wiedemann substitui matéria fílmica por expansão conceitual. Mostra-nos imagens apaziguadas, até mesmo tediosas, e imputa a elas suas elaborações. As imagens capazes de mobilizar um irracionalismo libertador, que, para dizer com Glauber, “é a mais forte arma do revolucionário”, são subjugadas à preponderância de suas possíveis significações, legando-as o lugar de meras ilustrações do pensamento. Esterilizando o poder de produzir fissuras, de abrigar o não conceituado. 

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