Endogâmicas | Upa! Uma primavera em Atenas (Santiago Giralt, Tamae Garateguy, Camila Toker, 2025) | 26ª BAFICI – Festival Internacional de Buenos Aires

Em abril de 2024, Javier Milei ordenou mudanças radicais na estrutura do Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA), reduzindo suas atividades praticamente por completo. Protestos tomam parte das ruas, em frente ao cinema Gaumont. Upa! Uma primavera em Atenas (Santiago Giralt, Tamae Garateguy, Camila Toker, 2025) começa justamente aí. E assim o anunciam, na sessão de abertura do 26ª BAFICI, como um “filme de protesto em forma de comédia”. Qual o teor cômico? O estereótipo supérfluo do realizador de cinema independente — fórmula já reciclada pelo grupo em outros três filmes da saga Upa! (2007, 2015 e 2021) —, e a melancolia advinda da dificuldade de realizar filmes na Argentina contemporânea. 

O filme segue um grupo de três amigues — Aílen, Nina e Pina —, interpretades pelos próprios realizadores, debatendo-se entre crises de saúde mental e um desejo sempre persistente de fazer cinema. Frente à impossibilidade, começam a considerar: Valium, cocaína, whisky e o que mais puder aliviar a angústia. Movides por um projeto megalómano de filmar o mito de Medeia, vão buscar apoio financeiro na Europa e partem em viagem para a Grécia. O trio, profundamente endogâmico, aciona seu humor desde um inventário de tipos da cena artística portenha. Não acessei seus jogos cômicos, talvez por ser brasileira, talvez por não ser amiga deles. Ao que parece, a sátira da situação política vivenciada pelo nicho de cinema independente vai embaralhando o grupo de diretores e suas personagens. Em cena, performam os tais artistas cosmopolitas e desconstruídos, cuja vida desestabilizada pelo avanço da extrema direita leva-os, por uma inclinação fátua, ao cinema de deboche.

Se o filme parte do cenário de precarização do cinema argentino, a viagem à Europa e o prazer de se filmar mergulhando nas águas azuis do mediterrâneo sobrepõem-se à enunciação inicial. O mesmo ocorre com as conversas sobre relacionamentos tóxicos, as tardes na praia tomando sol, as briguinhas internas e piadas sobre o caos do trabalho de produção. O conflito, a acidez — e tantas outras possibilidades afiadas do gênero —, são atenuadas. Sublinhar a problemática política através de um humor tão frívolo dá lugar, em verdade, ao surto narcísico. As cenas passam a ser conduzidas pelas performances individuais, o tipo de cada um dos amigues, seus dramas e temperamentos. Em cada plano sentimos o cheiro da vaidade e, entre a postura crítica e o apaixonamento por si mesmo, os vemos mais afeites ao segundo. A Argentina é que fica para trás, bem longe, assim como o próprio filme que as personagens desejam fazer. Resta a convivência de um grupo de cineastas descolados — no duplo sentido do termo —, fazendo citações como “I am ready for my close-up, Mr. DeMille” soarem como “I am ready for my selfie”. 

Há ainda a faceta musical. Forçosamente disparatados, cantam sobre a “a aventura de filmar” e sobre suas crises existenciais em frente a monumentos gregos. O próprio celular utilizado para as gravações  surge, antes, como reiteração desse autocentramento — encontrando eco em jogos discursivos instagramáveis do close friends, envoltos de paisagens do outro continente, entardeceres e banalidades que interessam à circuitos fechados. Eventualmente, o financiamento do filme na Europa acaba dando errado e o grupo tem sua ideia roubada. O fracasso em decorrência de uma confiança exacerbada no mercado de cinema europeu. O fracasso desde antes imposto pelas condições de realização precárias na Argentina. Upa! encontra nessa acumulação de impossibilidades seu caráter mais cômico, de riso absurdo. A aventura de filmar vira desventura e a contaminação pela estrutura trágica de Medeia opera uma complexificação de linguagem. O surto narcísico é, finalmente, desestabilizado pelo susto da expropriação. 

Através da imagem do realizador independente, apresentado em uma versão de altas ambições e comportamentos alienados, Upa! sugere uma autocrítica de nicho, vez ou outra virando a curva para a resignação ou para a adesão ao próprio comportamento de suas personagens. O filme se entrega, afinal, com excessiva obsessão às minúcias turísticas do grupo — é delas que deriva sua comédia de protesto. Os descompassos se prolongam à medida em que abordam os desmontes promovidos pelo governo Milei por meio de um escárnio voltado à situação dos próprios trabalhadores do cinema. Suas operações paródicas mais fazem dizer do ridículo tipificado do cineasta que do ridículo que asfixia a produção argentina. A aplicação da fórmula do grupo ao contexto político atual — como já fizeram na pandemia — funciona mais como autoboicote que como autocrítica. Sua linha de forças se dá nesta ordem: a fórmula Upa!, depois o contexto. A prevalência da fórmula do grupo e a utilização de um contexto desgraçado para fazê-la valer, para dizer. 

Se o próprio projeto do grupo de realizadores ambiciona tensionar as figuras que integram o circuito fechado dos festivais, não deixa de ser curioso observar que a continuidade da saga esteja diretamente vinculada ao BAFICI, com quem mantém vínculo de longa data. Neste ano, inclusive, com homenagem integral e palco para a performance do hit “¿Por qué seremos tan dementes? Los chicos del cine independiente” (nada mais confortável que fazer autocrítica com espaço de legitimação garantido). Considerando que o festival já vinha sendo criticado pela ausência dos termos “Milei” e “INCAA” em todo o seu catálogo, cabe perguntar o que se comunica ao programar um filme como Upa! na sessão de abertura. Qual é o “cinema de protesto”, afinal, bem aceito? Qual convém? Qual é de bom tom? Neste caso, um em que os protestos ocupam cerca de cinco minutos de tela e cujo defrontamento com a situação política da Argentina é prontamente abandonado em detrimento de um humor vaidoso. 

Versión en español:

En abril de 2024, Javier Milei ordenó cambios radicales en la estructura del Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), reduciendo sus actividades prácticamente por completo. Las protestas toman parte de las calles, frente al cine Gaumont. ¡Upa! Una primavera en Atenas (Santiago Giralt, Tamae Garateguy, Camila Toker, 2025) comienza justamente ahí. Y así lo anuncian, en la sesión de apertura del 26º BAFICI, como una “película de protesta en forma de comedia”. ¿Cuál es el tenor cómico? El estereotipo superfluo del realizador de cine independiente — fórmula ya reciclada por el grupo en otros tres películas de la saga Upa! (2007, 2015 e 2021) —, y la melancolía derivada de la dificultad de hacer cine en la Argentina contemporánea.

La película sigue a un grupo de tres amigues — Aílen, Nina y Pina —, interpretades por los propios realizadores, debatiéndose entre crisis de salud mental y un deseo siempre persistente de hacer cine. Frente a la imposibilidad, empiezan a considerar: Valium, cocaína, whisky y lo que más pueda aliviar la angustia. Movides por un proyecto megalómano de filmar el mito de Medea, van a buscar apoyo financiero en Europa y parten de viaje hacia Grecia. El trío, profundamente endogámico, activa su humor desde un inventario de tipos de la escena artística porteña. No accedí a sus juegos cómicos, quizás por ser brasileña, quizás por no ser amiga de ellos. Al parecer, la sátira de la situación política vivida por el nicho del cine independiente confunde al grupo de directores y sus personajes. En escena, performan los tales artistas cosmopolitas y deconstruidos, cuya vida desestabilizada por el avance de la extrema derecha los lleva, por una inclinación fátua, al cine de burla.

Si la película parte del escenario de precarización del cine argentino, el viaje a Europa y el placer de filmarse zambulléndose en las aguas azules del mediterráneo se superponen a la enunciación inicial. Lo mismo ocurre con las conversaciones sobre relaciones tóxicas, las tardes en la playa tomando sol, las pequeñas peleas internas y chistes sobre el caos del trabajo de producción. El conflicto, la acidez — y tantas otras posibilidades afiladas del género —, son atenuadas. Subrayar la problemática política a través de un humor tan frívolo da lugar, en verdad, al brote narcisista. Las escenas pasan a ser conducidas por las performances individuales, el tipo de cada uno de los amigues, sus dramas y temperamentos. En cada plano sentimos el olor de la vanidad y, entre la postura crítica y el enamoramiento por sí mismo, los vemos más afectos al segundo. Argentina es la que queda atrás, bien lejos, así como la propia película que los personajes desean hacer. Resta la convivencia de un grupo de cineastas cancheros, haciendo que citas como “I am ready for my close-up, Mr. DeMille” suenen como “I am ready for my selfie”.

Hay aún la faceta musical. Forzosamente disparatados, cantan sobre la “la aventura de filmar” y sobre sus crisis existenciales frente a monumentos griegos. El propio celular utilizado para las grabaciones surge, antes, como reiteración de ese autocentramiento — encontrando eco en juegos discursivos instagramables del close friends, envueltos de paisajes del otro continente, atardeceres y banalidades que interesan a circuitos cerrados. Eventualmente, la financiación de la película en Europa acaba saliendo mal y el grupo tiene su idea robada. El fracaso como consecuencia de una confianza exacerbada en el mercado de cine europeo. El fracaso desde antes impuesto por las condiciones de realización precarias en Argentina. ¡Upa! encuentra en esa acumulación de imposibilidades su carácter más cómico, de risa absurda. La aventura de filmar se vuelve desventura y la contaminación por la estructura trágica de Medea opera una complejización de lenguaje. El brote narcisista es, finalmente, desestabilizado por el susto de la expropiación.

A través de la imagen del realizador independiente, presentado en una versión de altas ambiciones y comportamientos alienados, ¡Upa! sugiere una autocrítica de nicho, de vez en cuando doblando la curva hacia la resignación o hacia la adhesión al propio comportamiento de sus personajes. La película se entrega, al fin, con excesiva obsesión a las minucias turísticas del grupo — de ellas deriva su comedia de protesta. Los desajustes se prolongan a medida que abordan los desmantelamientos promovidos por el gobierno Milei por medio de un escarnio dirigido a la situación de los propios trabajadores del cine. Sus operaciones paródicas más hacen decir del ridículo tipificado del cineasta que del ridículo que asfixia la producción argentina. La aplicación de la fórmula del grupo al contexto político actual — como ya hicieron en la pandemia — funciona más como autoboicot que como autocrítica. Su línea de fuerzas se da en este orden: la fórmula ¡Upa!, después el contexto. La prevalencia de la fórmula del grupo y la utilización de un contexto desgraciado para hacerla valer, para decir.

Si el propio proyecto del grupo de realizadores ambiciona tensionar las figuras que integran el circuito cerrado de los festivales, no deja de ser curioso observar que la continuidad de la saga esté directamente vinculada al BAFICI, con quien mantiene una asociación de larga data. Este año, incluso, con homenaje integral y escenario para la performance del hit “¿Por qué seremos tan dementes? Los chicos del cine independiente” (nada más cómodo que hacer autocrítica con espacio de legitimación garantizado). Considerando que el festival ya venía siendo criticado por la ausencia de los términos “Milei” e “INCAA” en todo su catálogo, cabe preguntar qué se comunica al programar una película como ¡Upa! en la sesión de apertura. ¿Cuál es el “cine de protesta”, al fin, bien aceptado? ¿Cuál conviene? ¿Cuál es de buen tono? En este caso, uno en el que las protestas ocupan cerca de cinco minutos de pantalla y cuyo enfrentamiento con la situación política de Argentina es prontamente abandonado en detrimento de un humor vanidoso.

Share this content: