O riso e o escárnio se encontrando no escuro | Carrie, a Estranha (Brian de Palma, 1976) | XV Janela Internacional de Cinema do Recife

Rever Carrie, a Estranha (Brian de Palma, 1976) na eventualidade da reabertura do Cinema São Luiz em uma sessão à meia-noite foi uma das experiências mais esquisitas que já senti durante o XV Janela Internacional de Cinema do Recife desde que comecei a acompanhar o festival. Primeiro pelo sentido de comungar essa experiência, que eu tivera em casa, vendo o filme pela televisão. Aí se dá outra forma de se relacionar com o filme, marcada pelo espaço privado da sala de estar, e por uma conexão individual, praticamente unilateral com o filme. Penso que o cinema devolve-nos o corpo coletivo do filme. Ouvir o público se manifestar ao longo de toda a sessão, das risadas às exclamações, dos gritinhos aos aplausos ao subirem os créditos, me reconduziu ao que significa estar em uma sala de cinema: compartilhar. Compartilhar de um espaço comum, e ser recompensado, desse lado, com uma emoção que só pode se efetivar na ordem coletiva.

Nos emocionamos a partir do outro, pelo outro, para e com o outro. Georges Didi-Huberman soube falar muito melhor do que eu acerca dessa movimentação coletiva da emoção em Povo em lágrimas, povo em armas: é mais fácil reconhecer esse movimento quando enunciamos “ele chora” ou “ele sofre”, do que reconhecer nossa própria debilidade, nosso impoder diante das lágrimas, do luto, da tristeza, do sofrimento. Junto às demarcações narrativas nos movimentos do filme — entre a tristeza e a resolução explosiva, entre a menstruação de Carrie White (Sissy Spacek) e sua mão puxando Sue (Amy Irving), entre a porta fechada do ginásio que começa a se tornar um inferno e o desenlace —, uma indeterminação se destaca como uma linha de fuga: o riso.

A emoção e o choro, como um de seus produtos, são arriscados. Requerem algo de coragem para que fluam as lágrimas, ou para que o espanto e o estupor — que imaginamos serem os efeitos desejados no caso de um filme de horror — venham tocar aquela partezinha da barriga onde acontece o frio do susto. O riso, pelo contrário, se alastra como o fogo que queima o ginásio e a casa de Carrie. Paro para pensar sobre um esquema, uma tipologia que encapsule o filme em três fases curtas, que representam seus três atos: 

1. Carrie sangra e é humilhada; 

2. Carrie sofre bullying na escola e é rejeitada pelos colegas; 

3. Carrie se vinga. Nenhuma dessas coisas seria motivo plausível para o riso aqui fora.

E, ainda assim, temos o cinema como testemunha e depositário de emoções, mesmo quando elas parecem desencontradas, exauridas de uma relação que passa pelo crivo do ridículo e do interdito antes mesmo de aparecer — e tenho alguns palpites sobre o porquê disso. 

Há de se lidar com a imagem na tela como representação, como algo que confronta quem a vê com um contratipo do real, mas que não demanda uma resposta coerente e fincada nele. Dito de outro modo: os filmes acabam inventando coisas que sabemos não serem reais, mas que estão calcadas nele, basta pensar na revolução corporal de Carrie — para onde convergem o início de sua puberdade e a manifestação de seu poder sobrenatural — como um primeiro sintoma da incoerência de estar adolescente. Um sentido aberto pela agressão de seus colegas e carregado até as últimas consequências por outras agressões, vindas de sua mãe. Um filme de horror pode levar essa proposta ao esgarçamento, especialmente quando seus personagens extrapolam os limites do que sabemos compartilhar com todo mundo: uma expressão do nosso próprio corpo, coextensa a expressões diversas de outros corpos presentes no mesmo espaço compartilhado. 

O afeto surge como uma perturbação no ser, que modifica nosso modo de endereçamento às coisas do mundo. Algo de rumorejante que se desprende de um fundo sem fundamento, que nos obriga a repensar e recalcular a ordem relacional entre Eu e Outro. Se formos fiéis a Espinosa: Homens diferentes podem ser afetados de diferentes modos por um só e mesmo objeto, e um só e mesmo homem pode, em tempos diferentes, ser afetado de diferentes modos por um só e mesmo objeto (Ética, P.III, Def. 51). Temos aí um perfeito exemplo da diversidade de afetos e coisas, corpos exteriores. Chamo atenção para um modo de ser afetado em particular, qual seja a perturbação que ocorre, através da imagem, no sensível — tanto na constituição de uma experiência comum com um coletivo, quanto aquela de ordem mais íntima. Daí decorre um duplo movimento simultâneo de reconhecer o que sinto à luz do fundo sem fundamento que é o sentir do corpo coletivo. 

Quando penso nesse corpo coletivo, que poderia muito bem ser o corpo sem órgãos deleuze-guattariano, imagino os diversos entrecruzamentos do afeto, rebatendo e reverberando na sala de cinema, mais precisamente o riso ecoando e construindo essa nova camada de sentido, que devemos percorrer e perseguir para seguirmos de mãos dadas com Espinosa: “Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequentemente, o próprio corpo humano são afetados de muitíssimos modos pelos corpos exteriores” (Ética, P.II, Post. 3).

Quando penso no riso como um constituinte da experiência, rejeito uma verdade de uma análise fílmica apoiada na psicologia que fala, especialmente em relação ao cinema de horror, que o riso é um mecanismo de defesa frente às situações de vulnerabilidade, as quais o filme de horror colocaria diante de seu espectador. Percebo nessa vertente da crítica uma rejeição a uma forma de relação perfeitamente aceitável, afinal o riso não se desprende só em favor do engraçado, mas também em benefício do cômico e do banal, do desconfortável — talvez porque não se conseguimos sentir verdadeiramente, com toda a fisicalidade envolvida nessa palavra, o desconforto de uma vida capturada pela imagem cinematográfica. Contudo, se falamos sobre ética e afeto, não podemos deixar de lado um elemento que parece ser um pano de fundo contra essa fundamentação ética: a moralidade.

Penso nas cenas de tortura e humilhação de Carrie como convites a incorporar meu próprio adolescente interior, que sofreu bullying e que sentiu uma fúria assassina — que jamais fora efetivada, exceto aí, no quinhão do sensível dado à imagem de Carrie banhada em sangue de porco, matando os colegas e professores pela humilhação que a fizeram passar.

Chamo atenção, nessa sequência, para a reação de algumas personagens após a queda do balde de sangue: primeiro um estupor geral das personagens — que se repete na sala de cinema, como se houvesse um momento de suspensão intensificado pelo som, que aumenta progressivamente enquanto avança a sequência; seguido de uma e outra colega que dão risada diante da cena de horror — o que se repete na sala de cinema, um e outro riso, sons de “tssss”, alguém que recorre ao divino “meu deus… kkkkkk!”, não totalmente fora do humor expressado contra a loucura fervorosa da mãe de Carrie, Margaret White (Piper Laurie). 

O que me pareceu produtivo nos termos da crítica que tramo aqui foi o desenlace: um retorno ao espanto, apesar do riso. Invoquei a moral acima porque há aí uma dupla relação com a emoção: aquela que deixa de somar-se à experiência coletiva, ainda que dela participe (meu caso), e aquela que está referendada neste corpo sem órgão, nesta sala de cinema que ri diante da cena de horror. O que não significa que deixemos de sentir a dor de Carrie, ou que nos identificamos com os perpetradores da violência contra ela. 

Não posso diagnosticar os corações de cada uma das 600 e tantas pessoas que lá estavam, mas posso pelo menos indicar um caminho pelo qual é seguro dizer: o riso, tanto quanto o grito ou o choro, especialmente no caso do cinema de horror, faz parte da experiência estética porque nos lembra o quão múltipla e multipolar é (e deve ser) a experiência do cinema, aquela experimentada na coletividade sala de cinema. Tendo a pensar que nos anos 1970, quando o filme foi lançado e as salas de cinema se enchiam de espectadores que ainda não tinham vivenciado o cinismo da “pós-modernidade” e da supersaturação das imagens e do mundo que elas conjuravam — uma imagem especular da realidade. É quando essa especularidade passa a se constituir de elementos que faltam ao real, como vimos e continuamos vendo em filmes cujas narrativas excedem os problemas da vida cotidiana e saem em favor dos heróis e dos vilões, cujos orçamentos se encontram na casa dos milhões de dólares.

 Quero apostar num cinema que se autonomiza em relação a suas próprias condições de realização, e que apesar do grosso caldo de sua história e de sua técnica, consiga exceder os limites da tela e tocar alguém. Voltemos a Georges Didi-Huberman: alguém é tocado e o toque parte do Outro, que carrega uma parte de mim — caso nos identifiquemos com esse ente. Nessa identificação, reside uma potência compartilhada que aviva meu corpo enquanto vejo o filme; e enfim me libero para sentir o filme, e não apenas o ver. É um sentimento que aparece e desaparece, conforme a narrativa avança e os personagens se entremeiam em seus conflitos; é o afeto arrancado da afecção, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mas o que se conserva, e é ao que eu quis remeter no título desse texto, é algo antigo, algo que se sustenta através da imagem desde o susto que levaram numa das primeiras salas de cinema por conta do trem vindo na direção de quem o assistia.

Enfim, continuo a me perguntar qual a relação do cinema com a emoção, e sinto que posso ir tão longe quanto a distância de um braço ou de um olhar me permite. E volto à sala de cinema com uma fé renovada no poder da experiência coletiva da sala de cinema, especialmente no cinema de rua, fora dos multiplexes, atento à cidade e seu entorno feito de gente e de imagens da vida dessa gente. Contra o pano de fundo de um riso que explode, e apesar dos pesares das personagens na tela; apesar da codificação do gênero cinematográfico ordenar uma parte da experiência; apesar de um saudosismo suspeito em relação a uma sala de cinema cheia de pessoas que correspondem perfeitamente ao que o filme lhes mostra (coisa que, imagino ou tenho boa-fé, não deve ter acontecido nunca); e apesar de perceber e observar uma boa parte das pessoas deixarem de relacionar-se com o filme através da emoção, ainda guardo uma memória que inclui todo tipo de afeto.

E decorre disso tudo um sentimento novo que reata com uma emoção antiga — old feelings, new sentiments —, que acaba por conectar aspectos da cinefilia que só se encontram e se efetivam na experiência coletiva da sala de cinema. Um jeito de se mover pelo mundo que reconhece e inclui o outro na coisa cinematográfica, que deixa as emoções — que só parecem de outrora, mas são tão atuais e renovadas quanto a imagem que se constitui com elas — irem de encontro às próprias imagens e ao corpo coletivo que, acima de tudo, se relaciona com o filme.

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