No caminho entre nada e lugar nenhum, o encontro | Centro Ilusão (Pedro Diógenes, 2024) & Ramal (Higor Gomes, 2023) | XV Janela Internacional de Cinema do Recife

Uma audição para o ingresso em um laboratório musical é o ponto de partida de Centro Ilusão (Pedro Diógenes, 2024). É lá onde vai acontecer o encontro entre Kaio (Bruno Kunk), um jovem de 18 anos que deseja, a todo custo, viver de música, e Tuca (Fernando Catatau), um músico mais experiente da cidade, que ainda tenta alavancar sua carreira. A diferença geracional entre eles está particularmente expressa através das distintas perspectivas de cada um perante o presente e o futuro. Kaio, no entusiasmo esperançoso da juventude e motivado a concretizar suas aspirações, recém-saído da casa da mãe e cogitando até se mudar para São Paulo em busca de novas oportunidades; e Tuca, por sua vez, à beira da desistência, encarando e quase sucumbindo à cruel realidade da dificuldade de se sustentar apenas como artista no Brasil. Neste cenário, onde a capacidade criativa se mostra tão grande quanto as adversidades, a narrativa nos apresenta personagens que encontram, nas conexões que formam através da arte e intermediadas pela cidade, uma maneira de reinventar os próprios rumos, contrariando as expectativas pré-concebidas sobre eles. Conforme o vínculo entre eles vai se estabelecendo, percebemos que, apesar de todas as frustrações e incertezas que ambos apresentam, aquela relação parte do que parece ser uma das poucas certezas em suas vidas: a música.

Como destacado pelo diretor Pedro Diógenes, durante a XV Janela Internacional de Cinema do Recife, o desejo era realizar um musical de baixo orçamento, subvertendo a lógica opulenta e super estilizada comumente associada ao gênero, mantendo ainda o retrato do centro de Fortaleza em suas dinâmicas cheias de vida e movimento. Na trama, os personagens vão se revelando ao longo da história como seres marcados pela presença e pulsação da cidade. Nesse sentido, a trilha sonora, que conta predominantemente com músicas de artistas cearenses, é fundamental para que essa ambientação seja bem sucedida. As canções executadas durante o filme são, muitas vezes, performadas ao vivo e captadas com som direto, de forma crua e em ato nas ruas, praças e edifícios, contribuindo para a sensação de constante ocupação dos espaços e o desfrute de suas possibilidades. As participações de artistas como Teti, Mateus Fazeno Rock e a presença do próprio Catatau enfatiza esse passeio pelas diferentes gerações que ajudaram a construir o legado musical e artístico da região, tornando o longa-metragem uma espécie de ode à cidade e à história de parte do cenário musical independente de Fortaleza.

É desse modo que as ruas da cidade se tornam um grande palco, um personagem à parte, que pode ser duro e áspero, como todo grande centro urbano, mas que, a partir de seu potencial agregador e de compartilhamento de sonhos e experiências, acaba por servir de catalisador para a jornada dessa dupla improvável. A conexão entre Kaio e Tuca cresce à medida em que o dia avança e eles se entregam cada vez mais à fruição do espaço e do tempo. Enquanto percorrem a cidade aguardando o resultado da seleção do laboratório, sentem as dores e delícias de viver da arte; como quando as cordas do violão de Kaio se quebram e ele canta em uma praça para reunir dinheiro e comprar novas. São nessas situações compartilhadas que os dois passam a se conectar um ao outro, e também a reconhecer seus próprios dilemas.

Isso se evidencia, por exemplo, na visita à loja de instrumentos, que traz à tona o divórcio não superado e as memórias de uma antiga banda, a qual ainda representa uma sombra na vida de Tuca. Ou quando Kaio expõe a convivência conflituosa com o namorado de sua mãe, que o fez sair da casa dela e morar com outros jovens artistas, também buscando desenvolver suas carreiras, entre coletivos e espaços alternativos, em meio à escassez de oportunidades em cenários mais convencionais da música. Não à toa, quando o resultado da seleção finalmente é divulgado, Tuca e Kaio também não são aprovados. 

Porém, se a frustração poderia gerar resignação, ela aqui serve de estopim para o estreitamento da relação entre os dois, marcando o início de uma parceria de composição que vai estabelecer um recomeço para ambos, fazendo com que as lembranças e desejos do passado, que já não lhes cabiam, ficassem para trás daquele momento em diante. O arremate vai se dar no espetáculo da nova banda formada, que eles passam a integrar; a cena funciona como um contraponto ao início melancólico e solitário da audição, entregando uma explosão catártica na apresentação final.

Ramal (2023)

Um outro filme exibido durante o XV Janela Internacional de Cinema também aborda relações entre juventude e ocupação da cidade: Ramal (2023), de Higor Gomes. O título é sugestivo, fazendo clara referência ao ramal ferroviário que atravessa a região e dá acesso ao bairro General Carneiro, no município de Sabará, em Minas Gerais, utilizado para transportar os minérios explorados naquele território, e que, simbolicamente, também atravessa a vida dos moradores do local. É lá, no caminho entre nada e lugar nenhum, como descrito pelo diretor, que somos conduzidos ao começo de uma tarde ensolarada para acompanhar um dos encontros em que jovens motociclistas performam o grau — ato de empinar e realizar acrobacias durante a pilotagem.

No filme, as atuações ficam a cargo dos motoqueiros, que, apesar de não terem experiência profissional anterior na área, são ativos nas redes sociais e familiarizados com o ambiente digital que, além de fortalecer e organizar a comunidade na difusão desses pequenos eventos, estimula aqueles jovens a desenvolverem um senso estético próprio, se utilizando da amálgama de referências que possuem para exercitar suas experimentações em vídeos e publicá-los online. Para o diretor, isso acabou favorecendo as interpretações espontâneas que vemos, possibilitando uma atmosfera mais íntima em que os atores puderam se expressar mais livremente em frente à câmera. Entretanto, contrapondo à esperada agitação, os movimentos são capturados com atenção, estabelecendo formas delicadas e acolhedoras de retratá-los, escolhendo nos inserir aos poucos no universo dessa manifestação, que, no contexto social brasileiro contemporâneo, se caracteriza como um fenômeno periférico, com forte estigma associado aos seus praticantes, frequentemente rotulados como baderneiros e vagabundos.

Ao mesmo tempo, a prática tem ganhado cada vez mais adeptos. Um dos motivos que explica sua popularização é o aumento no uso de motocicletas como alternativa de transporte, além de serem essenciais para trabalhadores informais, como motoristas de aplicativo, em um cenário cada vez mais crescente de precarização dos direitos trabalhistas. Na própria trama, vemos um dos personagens se queixando do cansaço de sua exaustiva dupla jornada de trabalho e, mesmo assim, fazendo questão de se manter presente nos encontros. A partir dessa cena, inclusive, passamos a entender a dimensão que espaços como aquele representam. Tanto em Ramal quanto em Centro Ilusão, as cidades não atuam apenas como um mero local de reunião, mas como um refúgio, possibilitando a construção de sociabilidade baseada no compartilhamento de uma mesma subcultura. Criam um caráter mobilizador, fazendo com que o convívio entre seus personagens se torne um símbolo de enfrentamento a um status quo que reiteradamente visa relegá-los à marginalidade.

As obras celebram a arte e a coletividade como formas de resistência e identidade, nos convidando a refletir o valor desses espaços e a repensá-los como locais de criação, onde os sonhos podem encontrar diversas maneiras de florescer. Acompanhar esses homens, pelo mínimo de tempo que seja, é perceber que, mesmo durante as decepções e momentos de falta de clareza acerca do futuro, aqueles espaços, as atividades e formas de expressão ali realizadas são vistas e sentidas como algo íntimo e constitutivo de quem eles são. O fim daqueles respectivos dias pode representar nossas despedidas dessas histórias e desses personagens, mas, assim como as cicatrizes que acompanharão os pilotos e os arranhões nas motos em Ramal, fica em nós o deslumbramento com tamanha beleza na potência e simplicidade presente nos cotidianos retratados.

Esses pequenos intervalos de ruptura, em que eles podem desfrutar de uma liberdade, mesmo que fugaz, rompem momentaneamente com as rotinas opressivas em que estão inseridos e são fundamentais para relembrá-los das alternativas que possuem diante das limitações. Os revezes da vida não significam nada se comparados à possibilidade de experimentar aquelas vivências, e que a arte e o convívio em comunidade podem, sim, ser aliadas indispensáveis ao pensar novos modos de se relacionar, tanto com a cidade quanto com as pessoas que nela habitam.

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