O melhor lugar para ouvir música é a sala de cinema | Terror Mandelão (GG Albuquerque e Felipe Larozza, 2024) & Hedwig And The Angry Inch (John Cameron Mitchell, 2001) | XV Janela Internacional de Cinema do Recife

Esse título que proponho é para mim uma constatação quase positivista, como algo que se verifica (determina/separa/sequencia) por meio de testes de laboratório e instrumentos de precisão. É como um axioma que se refere tanto ao meu tempo investido no e com o cinema, quanto à minha relação com a música, que permeia minha vida — penso em todos os filmes que vi no cinema e que incluíam algo de música ou de musical. Cheguei nessa constatação pela primeira vez depois de uma sessão do filme de Jonas Carpignano, Ciganos da Ciambra (Cinema do Museu, maio de 2018) — banhado no som e na música, e que de lá retira ordenações sensíveis que espelham os movimentos dos personagens, e do lugar onde se encontram, que também monta sua própria persona. O efeito da música no filme, se bem me lembro — e em mim, que sentia as poltronas e meu próprio corpo vibrando e reagindo aos acordes —, é um de suspensão do mundo diegético e de bordadura do real, de uma fabulação sensual/sensorial dos conflitos que regem aquele pedaço de mundo, e que se desvela através da música.

Pude reviver um pouco do que Ciganos me trouxe em duas sessões deste último Janela Internacional de Cinema do Recife: Terror Mandelão (2024), dirigido por GG Albuquerque e Felipe Larozza, e Hedwig And The Angry Inch (2001), dirigido por John Cameron Mitchell. Separados por mais de duas décadas — e, no dia que os vi em uma sessão-quase-dupla, mais ou menos duas horas —, ambos trazem a música como guia de suas ocupações fílmicas. 

O filme de GG e Larozza faz um vôo rasante sobre a cena musical do funk paulistano, visionado e auscultado pela experiência e vivência de seu protagonista, DJ K. É no coração do trabalho pulsante e turbilhonante do tuim, e de outras ferramentas de composição/destruição sônica, que Terror Mandelão se volta para processos artísticos socioafetivos, cujo sentido começa a ser tecido a partir de uma comunidade. Isso acaba refletindo a realidade de um lugar crivado de diferentes territorializações e codificações: do gênero à raça, do mitológico — mágico, místico, algo inacessível que envolve a criação artística, especialmente quando falamos de música —, ao topológico, ao espaço do real conformador de uma concretude da vida e do vivido. É nesse lugar específico que acontece essa forma de fazer música que alcança esse resultado. Tem uma matemática da composição musical de DJ K que vai se desenrolando ao longo do filme, com especial atenção à sequência em que vemos o como de sua música na tela do seu computador, onde ele, camada por camada, decompõe e recompõe a sua música com um sem-fim de sons disparatados, e que juntos fazem uma composição foda.

Do outro lado da noite, o filme de John Cameron Mitchell faz um percurso quase inverso: voo panorâmico seguindo Hedwig (John Cameron Mitchell), artista queer da voz e do som que está em turnê com sua banda, Hedwig And The Angry Inch. Neste, temos a sorte de ver a música guiar o compasso da narrativa numa lógica que abarca aquela do grande gênero de filmes musicais da segunda metade do século passado, com números que excedem a vida, mas que, no caso de Hedwig, também se reportam à concretude da experiência de relação com o mundo. Isso ocorre quando podemos traçar linhas entre Hedwig e as discussões que ela convoca, mas penso especialmente em três linhas: a experiência de uma arte queer que pratica o fracasso, como propôs Jack Halberstam em A arte queer do fracasso; a existência de um ethos da dissidência e do confronto à toda norma, incluindo aí a indústria musical; a luta, como imigrante — questão aguda do nosso tempo —, para capturar e aniquilar o sentido do sonho americano e do American Way of Life

Hedwig nasce e cresce na Berlim Oriental, sob as vistas de um genitor sexualmente abusivo, passa por uma cirurgia de redesignação sexual forçada — que falha, fazendo uma piada ambígua com as difíceis condições humanas e materiais se desenrolando dentro linhas territoriais daquele canto do mundo —, se casa com um militar americano e parte para os Estados Unidos. Esses contornos narrativos dão espaço e consistência para as emoções de todo o grupo de personagens que se envolve com Hedwig, às vezes de difícil apreciação e tão disparatadas quanto algumas proposições sônicas do funk mandelão.

Hedwig And The Angry Inch (2001)

Ambos os filmes não estão livres da sensação de que a música acontece à revelia do cinema. O aparato cinematográfico se empenha em capturar algo de uma fugacidade particular à música, mesmo sendo próprio de seu acabamento — a imagem em constante movimento — uma qualidade efêmera, que acontece no tempo específico de sua exibição, e também o excede em função das conexões sensíveis que vão se formando após o filme. Contudo, justamente o tempo parece unificar ambas experiências estéticas sob o signo do audiovisual: em Terror há condições específicas de tempo e procedimento de filmagem. O filme resulta de uma pesquisa de doutorado de um de seus diretores, que por si só é um tempo enquadrado, e consegue, estando em boa hora e bom lugar, alçar o vôo que DJ K faz para sua turnê internacional na Europa. Já Hedwig se lança em uma viagem sônica íntima, que recupera estratos de um tempo-em-transição: do fim da Guerra Fria, que anuncia uma despolarização e o tímido início de uma guinada em direção a um mundo multipolar, que se efetiva nos movimentos geopolíticos do nosso tempo. Duas formas muito distintas entre si de trabalhar com o tempo e sua recuperação, que acabam se reportando uma à outra quando temos a chance de ver os filmes em sequência, ou pelo menos próximos.

Ambos os filmes trabalham sob o olhar atento da política de seu tempo, considerando Terror e as proposições de ocupação e desocupação das periferias das grandes cidades brasileiras, e Hedwig nesse movimento pendular do Eu ao Outro, pela via da transgressão das normatividades do corpo queer, informado pela possibilidade de composição de si junto à música. O que os diferencia e, curiosamente, também aproxima, é um olhar que escuta e uma audição que trabalha o lugar do espectador quando se defronta com esses filmes. Terror revisita os processos de composição e destruição musical que orientam as próprias vidas dos DJs e MCs dedicados a fazerem explodir os ouvidos e mentes nos bailes das favelas paulistanas. Demarca-se um território e aí inscrevem-se relações de amizade, companheirismo, e família, reunidas sob o abraço agregador da música.

Além disso, o filme também aponta para vários dos problemas socioeconômicos que varrem as periferias das grandes cidades brasileiras (direito à cidade, mobilidade urbana, precarização do trabalho com arte), sem cair nas armadilhas formais do documentário sociológico/etnográfico ou do filme-denúncia. O fosso de classe que se exacerba, especialmente em relação à música, quando começamos a nos perguntar quem são esses artistas, de onde vêm, e sob quais condições sua música aparece. Nessa sutileza das negociações acontecendo nas bordas e fronteiras, a música parece cortar o tempo e o espaço e alcançar redutos de identificação e afecção possíveis somente na presença de sua apresentação. 

Hedwig revisita um tempo quando os processos de territorialização e codificação dos espaços e dos corpos estão à beira da falência, e a própria ideia de corpo como agente, ou sujeito, ou subjetividade, se dilui para podermos confrontar seu avesso, cuja imagem é a de um corpo transsexual mutilado, tornado arte e música. Então o filme sai de sua periferia para açambarcar a experiência de Hedwig nos Estados Unidos que, percebemos ao comparar com o que o filme mostra dos primeiros anos de sua vida, acaba por colocá-la em situação de nomadismo, uma itinerância que a faz reconstituir as linhas de afeto postas à frente através da música The Origin of Love.

Volto a pensar em como fui atingido por aquela sessão de Ciganos… em 2018 — tanto que me lembro ter saído da sala de cinema e, no jardim, esperando um ônibus, cheguei na sentença que intitula esse texto: O melhor lugar para ouvir música é a sala de cinema! Experiências como Terror Mandelão e Hedwig And The Angry Inch, que apostam não só nas qualidades visuais, mas também nas sonoras — e, de chofre e por tabela nesse argumento, qualidades hápticas —, apontam para usos do cinema que ultrapassam o espaço da tela e transbordam pura sensação. Sentir o tuim de DJ K dentro da minha cabeça e me lembrar de uma ladeira em Olinda pegando fogo de carnaval; sentir as lágrimas correrem aos olhos ao ouvir a canção de Hedwig sobre uma cosmogonia tão íntima, mas tão aberta e desejante, que é também minha. A música desses filmes, junto à fogueira a qual é a tela onde nos sentamos para ver e ouvir as histórias que o mundo nos traz pela via do cinema, canta muito mais alto e é ouvida de forma muito mais poderosa.

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