A redestruição do mundo | Dahomey (Mati Diop, 2024) | XV Janela Internacional de Cinema do Recife

Uma voz áspera e túmida domina a negrura da tela. Uma voz que se dirige a nós espectadores, que fala de si e de uma experiência noturna de esquecimento — esquecer de se lembrar, esquecer a raiz, a terra e o território. Se há lembrança, é para restituir algo da violência colonial que lançou essa voz na noite branca em que se encontra. Essa voz acaba traçando um mapa de um percurso que a colocará fora do piche das lembranças do saque, da desterritorialização forçada e da reterritorialização, despontando no coro de um debate de vozes dissensuais, que destroem as linhas do entendimento pacificador fornecido pela própria posição das obras em relação a onde se encontravam antes: expostas em um museu europeu.

Dahomey (Mati Diop, 2024) se movimenta em torno da restituição de 26 obras de arte  da França ao Benin, 26 fragmentos de uma história manual dos processos de colonização, vitimização e demonização dos países em África pelo empreendimento colonial francês. A voz áspera emana da estátua do Rei Guezo, que redistribui ao público uma parte sensível conservada em seus próprios limites de pedra. 

O que se conserva resulta de múltiplos reconhecimentos acontecendo simultaneamente. Primeiro: re-conhecer a violência colonial do saque e da pilhéria, que torna a obra de arte somente mais um artigo, um objeto desprovido dos sentidos pelos e para os quais foi construído. Seguindo essa linha, o próximo passo é pensar de que forma se restitui essa parte do sensível que foi roubada violentamente, o que Mati Diop coloca em perspectiva quando acompanhamos o debate de cidadãos beninenses em torno desse acontecimento. 

Por fim, há de se pensar os efeitos na trinca ética-estética-política, que se efetivam no discurso, naquilo que Jacques Rancière soube identificar em seu livro, O desentendimento, como uma “parte dos sem parte”, por onde e para onde fluem os diferentes termos de uma enunciação coletiva, inscrevendo-se como este corpo coletivo que se nutre e se movimenta através do tempo e do espaço históricos como uma parte muito bem definida. 

Em sua formulação imagética, o filme acaba apresentando o espírito político de uma juventude que não consegue exaurir o debate em torno dessas obras, já que existem tantas perspectivas quantas se possam captar através do som e da imagem. A segunda seção do filme ocupa esse afeto coletivo, e vai perfazendo um contraponto local e popular aos sistemas de conhecimento e referência europeus, hegemônicos. Daí decorre uma forte crítica à filosofia e, por extensão, às práticas hegemônicas de criação, conformação, e distribuição do conhecimento. O filme se demora em um longo debate em torno desse momento histórico de restituição, que, como um dos debatedores menciona, remete mais à “bondade” dos governantes da França e do Benin do que propriamente à presença restituída do espírito dessas obras. 

Se o filme se constrói nesse discurso investido nos carácteres da partilha dissensual, é porque se reorienta a forma de fazer passar essa voz das partes envolvidas no processo de restituir a história. E não sob a forma de disciplinas que dão a ver mais os seus próprios critérios e processos de auferir e validar as experiências do mundo. A crítica que faço a Rancière nesse caso, é a de que o caráter epistemologizante de uma filosofia que discrimina uma parte dos que não têm parte só poderia se endereçar ao seio do território do qual ela irradia. E o espírito dessa forma de ler e ver o mundo acaba reproduzindo as tipologias e os tiques da colonialidade na qual se originam. Dito de outra forma: é o texto filosófico-teórico que se reveste de uma película de autoridade, mas essa autoridade não é referendada senão por um sistema de autocongratulação e de autorreferência, que fala mais sobre um si-mesmo em relação às coisas do mundo do que o contrário, um argumento que deixa entrever outro e constrói outras conexões para além da circularidade positivista do sujeito cartesiano. 

O que Dahomey propõe, mesmo em seu título que remete à capital do Reino do Daomé, que perdurou durante quase três séculos, é um resgate que emana da destruição. Destruição da forma museológica sob a qual se reveste a obra de arte, produzindo o resgate do valor de uso do objeto. Lembremos, no caso do Brasil e da raiz eurobranca do museu, do acúmulo de artefatos dos territórios invadidos e saqueados pelos portugueses que foram encontrar sua noite no Museu Nacional. É um movimento de destruição que considera o estatuto da coisa, da finalidade do objeto: algumas das obras restituídas têm fundamento em tecnologias, materiais, e métodos religiosos, esculturas feitas para a veneração ou atos rituais. 

Como um sonho febril guiado pelo fio daquela voz áspera e túmida, o filme se movimenta nos espaços museificados — que poderia muito bem ser um duplo enegrecido da palavra reificado, especialmente pensando pela lógica da obra-de-arte-feita-para-o-museu. Uma estratificação forjada nas mãos violentas da pátria-mãe: primeiro pela via do saque, que esvazia os sentidos e significados dos objetos que rouba para exibir em suas galerias. Por outro lado, o filme desestratifica e restitui, junto às falas beninenses, o poder mágico desse objeto, que vive (também) na voz que o filme lhe confere.  E não deixemos de lembrar: para que houvesse essa restituição, houve, antes, uma violência que aponta para as dimensões estruturais do funcionamento do colonialismo europeu. Cabe a Mati Diop uma tentativa de destruir novamente esses objetos, capturando-os outra vez através do aparato cinematográfico, redistribuindo os quinhões de sensível perdidos na noite escura do museu eurobranco. 

Penso que o filme demonstra o quão na retaguarda se encontra o debate acerca da colonialidade e do colonialismo no Brasil. Desde os efeitos causados pela destruição de vidas indígenas — tanto no Brasil quanto no Benin e no resto das nações que sofreram com o amplo espectro de predicados da violência colonial. O debate não se desenrola à uma vontade pacificadora: algumas das falas dos debatedores vão escavando e burilando uma sensação de não-pertencimento, de deslocamento nas diferentes constituições do Eu beninense, do que é verdadeiramente beninense, e do que pertence ao colonizador francês.

Essa recusa da pacificação teve em mim, como espectador brasileiro, um efeito de reconhecimento elevado às potências do negativo: aquilo que reconheço como uma falta e como uma falha no debate brasileiro sobre as influências ocultadas ou ofuscadas pela branquitude, promovendo estriamentos na forma de constituir uma identidade nacional que deliberadamente dá as costas ao seu passado colonial. Mas esse dar de costas não é resolutivo — pelo contrário, acaba negando essas falhas e lacunas em prol de uma imagem mítica de pacificação nacional dos racismos, dos machismos, dos amplos déficits educacionais, da relação do povo brasileiro com suas próprias obras de arte e com suas imagens. Inclino-me à ideia de que as formas de governança e conformação do socius, ou seja, a inscrição, registro e demarcação dos corpos e de suas identidades e predicados, ecoam esse movimento de estrangulamento das questões coloniais que insistem em emergir. E irrompem não como sintoma de uma putrefação que aniquila os sentidos da alteridade e da Outridade, e sim como denúncia da própria impotência de um debate que não se efetiva sob o signo de um comum. O sentido dessa impotência se dá na fórmula “ou… ou…”: ou arte, ou política; ou política, ou estética; ou “democracia” racial ou colonialidade. Uma coisa ou outra, um olhar que não abarca a imagem completa do que significa, pensando em um ordenamento ético-estético-político, a restituição de uma peça tida como arte em uma episteme que não lhe é própria. Basta pensar na devolução do manto Tupinambá, “generosamente doado” em 2024 ao Museu Nacional do Rio pelo Museu Nacional da Dinamarca.

Por fim, penso nas correntes de assuntos e debates que vicejam especialmente nos ambientes das redes sociais baseadas em texto como o X ou o BlueSky, rastejando naquele questionamento “político”, algo que se expressa na formulação por que a esquerda não está discutindo X ao invés de Y? A pergunta não deveria ser o que se discute, mas como encampar uma discussão que não comece pela negação destes temas em detrimento daqueles outros. No debate beninense há espaço para algum dissenso, e, pensando com as imagens de Dahomey, há sutis clivagens de classe que informam o lugar das convergências de opiniões. Funciona aí toda uma práxis do discurso orientado à emancipação, que interseccionaliza e transversaliza os temas que a arte e o cinema alcançam com suas imagens. O filme opera uma escuta e uma redestruição do discurso que aí — na arte e sobre a arte — se produz através de seus atores. 

Redestruir deve ser um programa orientado a construir novamente por meio de uma rasura naquilo que está podre no nosso modo de relatar e de se relacionar com o mundo à nossa volta, incluindo aí o mundo sensível expressado via arte, imagem, escultura, cinema. Ainda que haja toda uma série de ambiguidades em relação aos predicados e práticas do colonizador — se inscreve aí todo um debate acerca de uma língua unificadora, cujo uso e operação naquele território instaura gangrenas coloniais. Rasurar o modo de endereçamento que começa nesse “centro” autodefinido que é o continente europeu, que considera indestrutível sua hegemonia fundada na branquitude etnocêntrica. É calcular e contar os “erros” irreparáveis dos povos genocidados e de culturas depauperadas em prol de uma forma de vida homogeneizante. Desrespeitar e questionar as regras — criadas para fazer perdurar modos de organização da fala e da discussão que se articulam através dessas partes muito bem distribuídas pela história dos vitoriosos, e não a dos vencidos. É fazer ecoar nas rádios do país inteiro um grito cordial, que amplia seu volume para alcançar o nosso continente, cujo aprendizado sobre o racismo e o colonialismo ainda tem um longo caminho a percorrer. Pensar que essa vinculação entre os problemas colonialistas de lá com os daqui coloca sua violência latente e invisível em cheque, sob uma perspectiva relacional. Um dos méritos de Dahomey é apontar, a um Atlântico de distância, questões que o Brasil faz questão de denegar, fazendo vista grossa, e passando por cima de sua própria história. O filme ilumina e banha de luz o outro lado do oceano para podermos, junto a ele, traçar as rotas para fora do breu da noite eurobranca. E, se não for pedir muito, caminhos que nos levem ao encontro de nossos irmãos, que possam também anunciar novos paradigmas e novas iluminações acerca do mundo que para nós se abre nas imagens do cinema.

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