Cavaram Uma Cova no Meu Coração (Ulisses Arthur, 2024) e A Fidai Film (Kamal Aljafari, 2023) são obras que nascem de fraturas: a primeira, dos escombros deixados pela mineração da Braskem na cidade de Maceió, Alagoas; a segunda, das cicatrizes abertas pelo imperialismo na Palestina. Conscientes de que o cinema é uma arte que pode habitar em fissuras — entre ficção e documentário, arquivo e invenção, destruição e reconstrução —, esses filmes fazem arte como um gesto político, transformando a concretude violenta dos escombros em matéria-prima de uma nova realidade possível. Se, no espaço-tempo do real, destroços podem ser vistos como mero símbolo de caos e destruição, no espaço-tempo cinematográfico eles podem ser evidências de vidas desalojadas, memórias roubadas, terras vilipendiadas pela ganância.
Se o progresso, como diz Walter Benjamin, é tempestade que empurra a História em uma direção deixando escombros no caminho, a arte talvez nos ofereça um anteposto, um modo de rasurar o arquivo oficial, de incendiar o silêncio imposto com fogo imaginário. Atravessando o que foi soterrado e o que se reergue, de dentro do luto e das chamas, essas obras nos levam a pensar: o que pode o cinema em meio à tempestade cada vez mais destrutiva do progresso?
Braskem Assassina // Israel Assassino
Crianças invadem os escombros de casas destruídas pela mineradora Braskem, no bairro de Bebedouro, usando camisas como balaclavas e empunhando canos PVC como armas, imprimindo na tela um brincar juvenil que, somado à geografia do espaço que expressa a violência absurda do real, se transforma num brincar-resistência. O ato de usar aquele ambiente como cenário de filme é muito poderoso: o concreto destroçado se torna matéria-prima da arte cinematográfica, berço da pulsão criativa de jovens daquele mesmo lugar, que criam uma narrativa em torno de sua demanda por justiça, ao interpretar uma gangue formada para destruir a empresa de mineração.
Uma imagem aérea tomada a partir do uso de drone nos apresenta um verdadeiro ambiente de guerra. De cima, é possível ver os restos do que costumava ser um bairro residencial, agora aparentemente sem vida. Esse cenário é fruto da exploração de sal-gema, que, de acordo com um inquérito da Polícia Federal, ignorou parâmetros de segurança e provocou o afundamento de bairros na cidade de Maceió, resultando em mais de 60 mil pessoas que foram obrigadas a abandonar suas casas. Mas, se há alguma dúvida sobre a semelhança dessa situação a um estado de sítio, uma batalha, o filme expressa, através do relato de um dos adolescentes que diz, encarando a câmera, em alto e bom som: “Isso aqui tá uma guerra”.
Construindo certo hibridismo entre ficção e documentário, Cavaram Uma Cova no Meu Coração intercala as sequências onde jovens encenam uma resistência armada com relatos dos próprios sobre a situação vivida por eles e sua comunidade, de quando receberam a ordem de evacuação forçada, e as consequências psíquicas e materiais sobre a população. Essa dinâmica aos poucos vai sedimentando o sentimento por trás da história imaginada pelos jovens em seu ímpeto por justiça.
Esse espírito está imbuído desde a própria feitura do filme, uma vez que os jogos cênicos perpassam pela reconquista do espaço: as locações usadas no filme eram vigiadas e cerceadas pelos seguranças privados da Braskem, de forma que, para conseguir obtê-las, a produção, conforme relatado por Ulisses Arthur, teve que empreender algumas táticas para driblar a vigilância e executar o filme. Ou seja: a produção cinematográfica foi, eventualmente, também uma gangue de jovens que se uniu para enfrentar a mineradora. De fato, em diversos momentos é essa juventude que toma as rédeas do fluxo cinematográfico, de forma que ganhamos asas com eles e voamos com sua imaginação, assim como aterrissamos e voltamos à realidade severa, ouvindo relatos de como idosos morreram ou enlouqueceram por conta dos crimes da Braskem.
A retomada do território também se dá dentro dos planos, como na cena do pastor evangélico sozinho dentro de sua igreja, agora em escombros, pregando como se estivesse novamente a viver ali. E também se dá através da montagem, que a todo o tempo intercala os depoimentos que evidenciam a dor e a violência sofrida pelos personagens, com cenas de ficção que expressam seu senso e desejo de justiça, manifestadas pelo ato de reconquista daquele lugar. Ulisses explica que a parte ficcional do filme veio primeiro, através de uma oficina de cinema que ministrou para crianças e adolescentes da região. Sua força estética e narrativa são, portanto, exemplos da riqueza cultural que há em se ensinar ao povo e se aprender com o povo. É das ruínas do bairro que vem a inspiração do título do filme, mais precisamente de uma inscrição num muro que diz: “Enquanto eu dormia cavaram minha cova no meu peito. Braskem assassina!”. Frase poética, praticamente um haikai.
Cavaram Uma Cova no Meu Coração, então, é arte que se constrói a partir dos escombros, emulando o próprio movimento de todas as vidas que sofreram aquela violência e se reerguem a duras penas, resistentes. Como Zeza do Coco, verdadeiro bastião da cultura popular e uma das vítimas dos crimes da Braskem, que chora caminhando pelas ruas ao ver seu bairro destruído. Se os mais velhos já não conseguem conter, por tanta dor, suas lágrimas, os jovens fazem destas sua motivação para enfrentar a injustiça. Ao fim do filme, vemos imagens aéreas da Braskem pegando fogo. Esse o movimento da vida, que desmente o anjo da história, e que Ulisses Arthur bem manifesta em sua poética: por maior que seja a tempestade destrutiva do progresso, um dia as chamas da justiça hão de arder.
Braskem Assassina // Israel Assassino
A Fidai Filme (2024)
Esse tipo de intervenção, que busca expressar a justa revolta de um povo, é uma das bases na qual se sustenta A Fidai Film, do palestino Kamal Aljafari, agora através da lida com materiais de arquivo. Aqui, o diretor trabalha a partir de um volume imenso de imagens, a fim de construir, através da montagem e da intervenção, uma obra que é capaz de expressar diversos sentimentos que envolvem a experiência palestina: a vida no exílio, a destruição dos lares, a perda (e reconstrução) da memória material, a dor e a revolta decorrentes da violência desumana. O diretor trata o arquivo de maneira viva, intervindo sobre ele: riscos e rabiscos em vermelho aparecem sobre a tela, com a finalidade de esconder informações, distorcer ou destacar outras. Muitas imagens são pertencentes ao exército de Israel. Uma das mais impactantes envolvem o saque promovido contra os arquivos da Organização para Liberação da Palestina (OLP) em Beirute, em 1982, quando o Estado sionista de Israel roubou todo um rico acervo material da cultura palestina. Mais de uma centena de filmes montados e outros materiais que viriam a ser filmes foram sumariamente expropriados do povo palestino. Alguns foram recuperados graças a cópias em outros países, e Kamal os usa aqui, construindo matéria nova a partir de obras que sobreviveram nos escombros.
O diretor nomeia uma das partes de seu filme como A Câmera dos Despossuídos. Essa “câmera”, que nem mesmo é uma câmera, afinal o filme usa apenas imagens de arquivo, é um movimento de reconstrução e reconquista da memória através da linguagem audiovisual. Não só isso: é também uma forma de expressar a pulsão por justiça que inevitavelmente nasce a partir das violências. Ao longo do filme, vemos diversas imagens de um povo vitimado e que justamente por isso luta. A montagem nos leva do grito de mulheres enlutadas a cenas de manifestações populares, dos desertos da Palestina ocupada ao passado da paisagem pré-Nakba, com seus camponeses trabalhando no verde da terra. Também se colocam sobre a imagem relatos e textos que adicionam a esta uma outra camada de sentido. Uma delas reflete bem o espírito do filme, ao citar o início do romance Retorno a Haifa, de Ghassan Kanafani:
Quando Said S. chegou à entrada da cidade, vindo de carro pelo caminho de Jerusalém, sentiu algo que lhe travou a língua, induzindo-o ao silêncio, e dissolveu-se numa tristeza que tomou seu corpo. Por um instante, pensou em voltar. Sem olhar para ela, sabia que chorava em silêncio, enquanto ouvia o som do mar exatamente como no passado.
A montagem usa imagens de um carro que passa por uma estrada, enquanto vemos a citação acima. No momento em que o texto atinge seu fim, referenciando o som do mar como antigamente, corta-se para imagens do mar em preto-e-branco, e o som de águas revoltosas inunda a sala de cinema. Assim como Kanafani, Aljafari dá contornos ao que é a experiência de sobreviver sobre as ruínas. A evidente permanência do som do mar “exatamente como no passado”, é expressa no som da sala de cinema, e assim a arte constrói no presente o sentimento que remete a um tempo que já não existe mais. A melancolia derivada desse processo é catalisadora de cenas que apontam para um futuro possível, afinal, mesmo com a tempestade destrutiva do progresso, permaneceremos aqui, assim com o som do mar. Agora são as imagens aéreas das bases sionistas que estão em chamas.
Rasurar a imagem, em Cavaram Uma Cova no Meu Coração e A Fidai Film, é expressar que a imensidão de dor provocada pela tempestade do progresso há de ser combustível. Ambos nos mostram, com sua “câmera dos despossuídos”, que se a arte não é capaz de ser o próprio fogo que transforma o mundo no ardor das chamas, ela pode assumir a importante tarefa de incendiar o peito dos que lutam.
Braskem Assassina // Israel Assassino