Lavrar a terra para forjar imagens ou lavrar imagens para forjar a terra | Estudo Para Uma Pintura O Lavrador De Café (Desali e Rafael dos Santos Rocha, 2023) | 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto

Uma criança segura um pequeno minhocário em mãos. Com uma enxada, cavuca a terra à procura de minhocas. O título e as cartelas são feitos em papéis levemente amassados em branco e filmados. Parte do mato de um quintal pega fogo entre muros lacunares de concreto. Três figuras posam à câmera: uma menina envolta por uma toalha de mesa, um homem capinando com uma camisa amarrada no rosto protegendo-o do sol e um menino cujos olhos são tapados por uma ripa de madeira na cerca à sua frente. A repetição do gesto com a enxada entre a criança e o homem aproxima-os e, através da montagem, sugere habitarem o mesmo lugar. É neste espaço simultaneamente cotidiano e iconográfico que se faz o filme-processo Estudo Para Uma Pintura O Lavrador De Café (2023), dirigido por Desali e Rafael dos Santos Rocha. Com referência às obras de Cândido Portinari, os realizadores reenquadram e repensam imagens às voltas dos muros e cercas de uma casa na periferia de Contagem. 

Ainda que reúna uma grande quantidade de retratos de pessoas negras em suas vidas e trabalhos no Brasil, sobretudo no período dos anos 1930 à 1950, Portinari situa-se nas ambiguidades intrínsecas ao ideário moderno nacional e institucionalizado. Faz-se assim, com todas as contradições, uma referência para pensar a história da presença negra nas artes brasileiras. E, embora essas obras precisem ser pensadas em seus contextos, o gesto de Estudo Para Uma Pintura O Lavrador De Café é antes o de procurar pensá-las à luz do mais próximo de si. O quintal de casa, o convívio com os familiares, os retratos das paredes sugerem perguntas incessantes: Onde está esse lavrador de café? O que é diálogo e o que é subversão? Como pode um gesto cotidiano acionar e perturbar uma iconografia? Uma imagem puxa a outra. 

Caminhos abertos

Portinari têm suas obras atravessadas pela paisagem conflitante entre um projeto de progresso econômico e as condições de vida precárias dos trabalhadores do campo. O Lavrador de Café (1934) é exemplo disso. Em primeiro plano, vemos um homem negro descalço segurando uma enxada, pisando em solo queimado ao lado de um tronco de árvore cortado. Seu corpo é retratado desproporcionalmente de modo a sublinhar o ofício braçal, sendo suas mãos e pés aumentados. Em segundo plano, estão as plantações de café, os morros do interior paulista com trechos desmatados e um trem. As linhas retas dos cafezais seguem a linha de fuga enquanto a imagem do trabalhador destaca-se à frente da tela. O cafezal e o lavrador compõem a totalidade da paisagem e, por outro lado, parecem estar a um abismo de distância entre si, conforme ocupam dois planos em proporções muito distintas. 

O curta-metragem sustenta uma escolha mais complexa que a de simplesmente reapropriar-se.  São, em verdade, retratos completamente distintos daqueles de Portinari e é importante demarcar isso para olhá-los às suas próprias formas. Separam-se radicalmente por anos, técnicas, pontos de vista e interesses, pela origem dos realizadores e retratados, aparatos utilizados, pelo próprio sertão que, mesmo estando em toda parte, como escreve Guimarães Rosa, aqui encontra-se no cotidiano urbano de Contagem. As obras ora aproximam-se, noutra conflituam-se. Na medida em que o faz, deixa caminho aberto para que a tela de Portinari se desdobre para-além do autor. Há um interesse mais voltado à figura do lavrador de café. Conforme Desali e Rafael dos Santos assumem o caráter processual do filme, trazem à frente o traço propositivo e reflexivo do trabalho artístico manual. A cartela “onde os braços e pés são maiores que o corpo” assume outros sentidos. 

Deformação

À exemplo de um dos retratos feitos pelo filme, destaco o homem que aparece capinando a terra no início. Diferente da pintura de Portinari, na qual o fundo da tela compete com a figura nítida e frontal do lavrador, os planos enquadram-o de modo mais opaco. Em contraposição à profundidade de campo absurda dos cafezais na pintura, o homem encontra-se delimitado por muros de tijolos expostos e emaranhado entre árvores e arbustos secos. Inicialmente a câmera apresenta-o da cintura para cima com o rosto tampado por uma camisa protegendo-o do sol forte. Apesar de não vermos seus olhos, ele posa em direção à câmera segurando o cabo da enxada. Depois do retrato inicial, a decupagem fragmenta seus gestos. As imagens estão envoltas por uma moldura turva, embaçada, sendo as áreas de nitidez direcionadas aos seus pés e mãos. Ao fim, ele volta a posar para a câmera, dessa vez com um facão. Ainda mais turvo, o plano parece deformar-se com o calor do sol. 

De formas distintas, ambos trabalhos valem-se de algum tipo de deformação para aproximar-se da figura do lavrador. Em carta a Portinari, Graciliano Ramos (1946) escreve: “Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram”. Em O Lavrador de Café, a deformação dos braços e pés enfatizam o ofício braçal e a situação do homem negro no campo, e aponta para um pensamento acerca de seu corpo, encerrado ao signo do trabalho como função.  No retrato feito pelo curta-metragem, a deformação incide nas bordas da imagem. A atividade que exerce não é clara: não sabemos se é um trabalhador ou um homem cuidando do próprio quintal, ou ambos. E, conforme não vemos sua face, ampliam-se as camadas de indeterminação na tela. Não se trata, portanto, de retornar a Portinari para devolver às figuras uma representação mais verdadeira ou mais fiel a algum tipo de representatividade ideal. Pelo contrário, os realizadores dobram a aposta na deformidade e se distanciam de imagens totalizantes. Nelas, o trabalhador não está encerrado à uma paisagem ou um único signo. Figura incapturável: um lavrador que escapa à própria fixação do retrato ao mesmo tempo em que o faz convergir à sua presença, como seu centro. 

O quintal

O filme é realizado em uma periferia urbana, mas seu quintal conta outra história. Sugere-se uma relação entre fotografias de familiares e a pintura O Lavrador de Café. Uma delas, emoldurada, de um casal negro em frente à uma plantação. Um plano mostra um trator de demolição em frente a um prédio vizinho e aponta-nos uma pressão e um contraste a esta moradia, dos fundos de casa com terra, galinhas e bananeiras, com clara ligação à vida campesina. Pensar a figura do lavrador de café aqui, em meio a esse sufocamento produzido pelo “progresso” da metrópole, é perguntar-se também sobre o abatimento da modernização que levou trabalhadores do campo em direção às cidades. Aqui, o vínculo com a temática das obras de Portinari é mais estreito: está na família de quem filma, que mora nessa casa e cuida desse quintal. O gesto cinematográfico evoca o gesto lavrador de seus parentes, e vice-versa.

Quem mais ocupa este quintal são crianças, cujas ações evidenciam sábias habilidades inventivas com a matéria do cotidiano. No espaço fechado, as brincadeiras são gestos de ampliação. Entendemos que o filme é realizado em meio à pandemia de coronavírus a partir de uma cena em que elas cantarolam no quintal ciranda cirandinha utilizando máscaras de proteção. A sequência gradualmente escurece e elas ficam a girar no escuro repetindo incessantemente “diga adeus e vá embora”. Noutra imagem, vemos uma menina envolta por uma toalha de mesa segurando em mãos um pequeno brinquedo que pega do chão. Em um corte elipsado, ela desaparece e vemos apenas a toalha esvoaçando. Em ambas sequências, dela e da ciranda, as situações encaminham-se para estranhamentos visuais. Tanto o escurecimento da imagem quanto o sumiço da garota envolvem este quintal de dobras espaço-temporais, além das relações iconográficas. É difícil não pensar aqui em Quintal (André Novais Oliveira, 2015), também realizado em Contagem, conforme apresenta essa casa aberta à súbita ficção. 

A cartela “na minha memória também” antecipa a sequência final. O garoto que no início do curta-metragem encontrava-se atrás de uma ripa de madeira com os olhos tapados, agora está à frente. Em um gesto contrário à frontalidade da representação, ele vira o rosto para trás. Alguém entra pela lateral do plano e fotografa-o. Em seguida, numa foto de enquadramento similar, ele volta a olhar em direção à câmera. Desse retrato final deriva-se a pintura: as cercas são tomadas por tons amarelos e o fundo de rosa, uma paleta de cores mais exaltadas. As figuras e formas têm contornos difusos. Além disso, há uma moldura em branco envolvendo o quadro, remetendo à imagem em sua forma anterior, enquanto fotografia. Nesse quintal-ateliê, o inconstante vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar das crianças verte-se em constelações e embates imagéticos. Estudo para uma pintura o lavrador de café tem apreço pelas nuances de uma imagem se fazendo, buscando a partir delas retratos mais densos e abertos. A sabedoria do preparo da imagem conversa, ao fim, com o manejo lavrador da terra disforme. 

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