Não queremos ficar caladas: uma conversa com Eunice Gutman | Dossiê #3: Desejar imagens

Nota da editoria: Essa entrevista foi realizada durante a realização da mostra Mulheres: Uma Outra História, organizada pelo Another Gaze, Cinelimite e Instituto Moreira Salles. Na ocasião, foram exibidos curtas-metragens de realizadoras como Kátia Mesel, Eunice Gutmann e Maria Luiza d’Aboim. Uma parte desse material foi publicado na Revista do IMS em 2023. De modo a fazer circular o pensamento dessa realizadora, decidimos compartilhar a conversa na íntegra, como parte do Dossiê #3: Desejar Imagens.

A identidade de realizadora de Eunice Gutman chegou no mesmo tempo em que se reconhecia como feminista. Da viagem à Europa no período da ditadura-civil militar brasileira até o retorno ao seu país de origem, a carioca conheceu a história das mulheres, as reflexões em torno do gênero e precisou firmar-se enquanto profissional, para continuar a fazer aquilo que desejava: trabalhar com cinema. Em sua filmografia, é possível localizar um diálogo instigante entre gênero, classe e raça, um olhar cuidadoso para suas entrevistadas e o desejo por descobrir e discutir temas pouco convencionais à sua época, como a prostituição e a luta por moradia na perspectiva de mulheres trabalhadoras.

Diretora de diversos curtas-metragens em filmes assinados individual e coletivamente, além de ter sido uma das fundadoras do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro (1985-1987) ao lado de Regina Veiga, Ana Carolina, Tereza Trautman, entre outras, Eunice Gutman segue sendo uma das cineastas brasileiras com o compromisso firmado com a luta pela emancipação feminina, tendo lançado seu último filme no ano de 2022, durante o Festival do Rio. A artista carioca é sinônimo de uma busca incessante pelos direitos sociais das mulheres. E pelo próprio cinema.

Lorenna Rocha: Numa entrevista para o Another Gaze (2022), você comentou que fazia filmes como forma de revelar coisas para si mesma, para se autodescobrir, enquanto mulher. O que acreditava que poderia entender melhor sobre si ou do Brasil nos anos 1980, quando decidiu se aproximar de Jovina e Marlene, duas mulheres negras de uma comunidade do Rio de Janeiro, para o Duas Vezes Mulher (1986)?

Eunice Gutman: Esse é um filme sobre mulheres imigrantes. Há muitas pessoas que saem do Nordeste para as comunidades do Rio de Janeiro, para ter uma nova vida, outras oportunidades. O Brasil é um país de pessoas que vieram de outros lugares do mundo, seja por vontade própria ou forçada. Então, de certa forma, essa é uma história que está dentro de nós. Minha mãe veio de Pernambuco e meu pai é da Polônia. Tinha curiosidade em ouvi-las relatar como foi a vida delas, a sua chegada ao Rio de Janeiro. Era muito interessante para mim descrever a vida das comunidades. Fui lá, pesquisei daqui e dali, e encontrei Jovina e Marlene.

Lorenna Rocha: No documentário, é muito evidente essa voz ativa e reflexiva das duas personagens,
mulheres negras e trabalhadoras que estão diante da câmera, sujeitas que nem sempre eram lembradas quando falava-se da luta por moradia e do mundo do trabalho no Brasil. Quando decidiu fazer Duas Vezes Mulher, de alguma forma, estava buscando dar respostas ao cinema brasileiro da época, muito masculinista e, por vezes, pouco racializado quando pensava-se sobre a luta dos trabalhadores?


Eunice Gutman: Quando vamos falar de processos migratórios, e passo a entrevistar duas mulheres, é pelo interesse de saber como elas reagem a esse mundo patriarcal. Meu início no cinema não se deu com filmes feministas. Em algum momento, lendo livros de Simone de Beauvoir e me informando sobre o assunto, teve uma frase [da Carol Hanisch] que me tocou profundamente: “O pessoal é político”. Minha vida é política e foi a partir disso que veio a vontade de discutir sobre os temas a partir da perspectiva das mulheres.

Lorenna Rocha: Fico com a sensação que você se tornou feminista ao mesmo tempo em que se entendia enquanto diretora de cinema. Faz sentido?

Eunice Gutman: Exatamente. O primeiro filme que dirigi foi para o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), um centro de alfabetização para adultos. A personagem era uma senhora de 77 anos, que dizia que à medida em que ela aprendia a ler, ela descobria que o mundo era maior que sua casa. Achei isso fantástico. Foi uma batalha para fazê-lo na época, porque era um homem quem ia assumir a direção, alguém que não tinha conhecimento nenhum sobre cinema. Falei com os diretores do Mobral que havia estudado na Bélgica e que ia dirigir o filme. Foi meu primeiro filme enquanto realizadora porque me coloquei como uma pessoa que sabia fazer aquilo. Eles adoraram. Exibiram E O Mundo Era Muito Maior que a Minha Casa (1976) em todos os lugares.

Me animei, porque nem eu mesma achava que conseguiria ser realizadora. Quando cheguei na Europa, o curso de direção era voltado para homens. As mulheres lá faziam a montagem dos filmes. Mas, quando voltei ao Brasil, a sala de montagem não era “um lugar apropriado para mulheres”. Dei muita risada, não desisti e comecei minha carreira como montadora. Após o Mobral, dirigi três filmes: Com Choro e Tudo na Penha (1978), Anna Letycia (1979) e Só no Carnaval (1982), em parceria com Regina Veiga, que foi minha colega na Escola de Cinema de Bruxelas. Existia uma grande onda feminista na Europa e nos Estados Unidos. Depois chegou aqui no Brasil. Isso ajudou a nos unirmos enquanto mulheres. Foi assim que começamos as atividades do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro. Depois teve outro em São Paulo, em outras regiões, mas depois parou. Foi uma força que nos animou muito a fazer filmes.

Lorenna Rocha: Como era sua relação com o pessoal do coletivo, com Tereza Trautman, Ana Carolina, Regina Veiga? São cineastas muito importantes para a história do cinema brasileiro…

Eunice Gutman: Me relaciono com essas mulheres até hoje. Resolvemos nos juntar porque havíamos
percebido coletivamente que o cinema estava na mão dos homens. Era preciso dar uma força para a outra. Não aceitar essa divisão imposta pelo patriarcado.

Lorenna Rocha: Como você percebe o impacto da ditadura civil-militar no seu trabalho?

Eunice Gutman: Nós estávamos na Universidade naquele período, os estudantes foram muito perseguidos. Todo mundo resolveu ir embora, a maioria para Paris, porque era centro de referência. O irmão da Regina Veiga era meu amigo e ele estudava em Bruxelas. Havia falado que lá o custo de vida era mais barato. Eu estudava Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro. O curso de cinema custava 50 dólares por ano, não era nada. Bruxelas era adorável, consegui morar bem, tudo era mais acessível. Ficávamos o dia inteiro na escola de cinema, com aulas práticas e teóricas. Alguns professores saiam da França para nos dar aula. Quando terminei o curso, me ofereceram três empregos. Um deles era na TV Belga. As televisões europeias produziam filmes naquela época e ofertavam emprego para quem estava se formando em cinema. Mas, brasileiro tem mania de voltar para o Brasil, né? [risos] Ia fazer uma visita e nunca mais saí daqui.

Lorenna Rocha: Por ter se formado em Educação antes de começar a estudar cinema, você acredita que o ato de lecionar impactou no seu entendimento sobre cinema ou sobre o tipo de filme que gostaria de fazer?

Eunice Gutman: Minha mãe desejava muito que eu fosse professora. Era uma coisa revolucionária ter um emprego e um salário próprio. Ela me convenceu a fazer um concurso para o Instituto de Educação. Passei e me tornei professora de crianças. Acordava às cinco horas da manhã, detesto acordar cedo até hoje [risos], e, apesar de gostar muito de dar aula, sabia que não era o que eu queria para vida. Foi após esse momento que me matriculei no curso de Ciências Sociais e comecei a conhecer todas aquelas pensadoras. E aí a história correu.

Lorenna Rocha: O cinema tem uma função educativa ou pedagógica para você?

Eunice Gutman: Sempre tem. Acho que todas nós somos um pouco professoras. Era a profissão que era permitida para a gente.

Lorenna Rocha: Como você decidiu atuar como documentarista? E não decidiu ir para a ficção, por exemplo?

Eunice Gutman: Muitas mulheres faziam documentários porque era mais barato, o orçamento era menor. Uma vez, ouvi um diretor francês dizer que o documentário também é uma ficção. Porque, quando vamos entrevistar um personagem, estamos levando perguntas que tem a ver com nós mesmos. Estamos criando uma história através daquela pessoa. Por quê fazemos determinadas perguntas e não outras? Isso também é ficção. Há vários aspectos na vida de uma pessoa. Somos nós que escolhemos o que desejamos que ela fale.

Lorenna Rocha: E o que há de mais instigante para você nestes momentos de entrevista? No corpo-a-corpo com as entrevistadas? O que sente enquanto diretora?

Eunice Gutman: Gosto quando encontro reciprocidade aos meus pensamentos, quando se forma uma parceria. Realmente, nós estamos criando uma história junto ao personagem. Mas, também tenho filme de ficção: Tempo de Ensaio (1986). Fiz com Joana Fomm e a minha irmã, Regina Gutman. O tema é uma peça teatral que apresenta os problemas de uma mulher que sente necessidade de mudanças em sua vida cotidiana de mãe e esposa.

Lorenna Rocha: Você comentou sobre construir uma história com as personagens e me lembrei do Amores de Rua (1994), onde há uma abordagem política sobre a prostituição de maneira muito pertinente. Poderia comentar sobre esse filme?

Eunice Gutman: Durante a década de 1970, eu participava de algumas reuniões feministas aqui no Rio. E, num desses encontros, vi a Gabriela Silva Leite falando, uma lucidez incrível, que me fez querer fazer um filme com ela. Acabou a reunião daquele dia, falei com ela, que topou na mesma hora. Pedi dinheiro ao Banco Itaú e os caras – sempre eram homens que me recebiam – falaram: “Eunice, prostituição? Vem cá, não tem outro tema não?” [risos] Achava interessante porque trazia como questão um lado da mulher que foi inventado pelo patriarcado. E, de outra forma, havia mulheres que tornaram-se prostitutas por vontade de exercer uma liberdade no mundo. Mas não é uma vida fácil. Fiz o filme e a Gabriela Silva Leite falou coisas fantásticas! Fomos para Nova York, Buenos Aires. Participei do Congresso da ONU, em 1995, após ter ganho 10 mil dólares e uma passagem como prêmio num festival na Argentina. Com o dinheiro, contratei uma fotógrafa e fizemos Palavra de Mulher (1999), um filme sobre a conferência. A temática não saiu mais de mim. É a minha vida.

Lorenna Rocha: Como tem sido para você presenciar esse processo de revisitação, preservação e difusão de sua obra, por iniciativas como essa do Another Gaze, com o Cine Limite e o Instituto Moreira Salles?

Eunice Gutman: As discussões presentes no meu trabalho eram vistas como algo não oficial, assuntos para não serem revelados. Com essa nova onda do feminismo, ficou totalmente comum, tenho que me animar, colocar os filmes em festivais, programá-los. Recentemente, fizeram uma exposição com meu trabalho em Laranjeiras, uma coisa linda. Fui homenageada pela Cavídeo (produtora do cineasta Cavi Borges) e eles me ajudaram a terminar meu último filme, Luzes, Mulheres, Ação (2022).

Fiz vários filmes com personagens feministas e pensei que ninguém ia vê-los. Então, decidi juntar e fazer um longa. Entrevistei mulheres mais jovens e filmei algumas passeatas a partir de 2013. Exibimos na última edição do Festival do Rio. Acho que estamos num momento de vitória, temos muito mais facilidade para ver os filmes. Isso influencia as novas gerações, influencia positivamente. Estou gostando muito dos filmes das jovens! No fundo, é a mesma história, né? Por quê querem nos calar? Não queremos. Não queremos ficar caladas!

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