Este texto nasce da observação de contrastes e simetrias entre eventos envolvendo as recepções dos filmes Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) e Vazante (Daniela Thomas, 2017). A observação das recepções negativas de espectadores e críticos negros a esses dois filmes em seus respectivos períodos de lançamento nos levou a pensar que, num país como o Brasil, o debate sobre os autorizados a representar “da melhor forma” corpos e personagens negras e não-brancas é em si histórico e tem sido (e continuará a ser, apostamos) historicamente atualizado/retomado.
Pensando especificamente no episódio de recepção de Vazante – contextualização que nos propomos a fazer adiante –, nos vem à cabeça as seguintes questões: o filme, ou melhor, sua recepção teria evidenciado um “olhar de branco” de Daniela Thomas para realizá-lo e lidar com sua repercussão em meio à produção e exibição cinematográfica contemporânea no Brasil? As críticas negativas feitas ao longa-metragem, em 2017, por uma parcela de receptores e críticos negros, considerou um “olhar de branco” de Daniela Thomas que falava junto com as imagens ou mesmo justificava o que elas mostravam ou não mostravam? Até que ponto debates sobre a racialidade dos realizadores de cinema se somam ou mesmo se sobrepõem às possibilidades de leitura dos filmes que os desencadeiam?
Como forma de refletir sobre essas perguntas, elaboramos e apresentamos neste texto uma breve análise crítica de Vazante que se vale do distanciamento de seu período de lançamento para tentar evidenciar uma participação mais complexa das personagens negras escravizadas presentes no filme, como, por exemplo, a do garoto Virgílio (Vinicius dos Anjos).
Por fim, para matizar as formas de recepção do longa-metragem em meio aos debates dos “autorizados” a representar melhor determinados corpos e personagens e nos ajudar a pensar sobre as problematizações aqui propostas, convidamos o crítico de cinema Juliano Gomes, um dos principais comentadores de Vazante em 2017, para uma entrevista. “A concentração racial dos meios de produção é um problema grave e precisa ser encarado de frente, por toda a comunidade. Porém, precisamos ser adultos e encarar o fato de que isso não ‘garante’ como os filmes serão, porque aí estamos no problema da determinabilidade, entende?”, provoca ele na conversa que pode ser conferida ao final desta escrita.
Xica da Silva: cinema de branco?
Durante nosso mestrado, cursado entre os anos de 2015 e 2017 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, analisamos trechos significativos de cerca de cinquenta textos/enunciados críticos ao filme Xica da Silva escritos e/ou tornados públicos em 1976, ano de lançamento do longa-metragem protagonizado por Zezé Motta. Dentre os comentários críticos encontrados e analisados, chamaram a nossa atenção um texto crítico negativo ao filme elaborado por Beatriz Nascimento, historiadora, pesquisadora acadêmica e importante militante do Movimento Negro Brasileiro à época. O artigo de Nascimento, intitulado “A senzala vista da casa grande”, foi publicado no jornal alternativo Opinião, em outubro de 1976, junto a outros textos críticos ao filme que compuseram o caderno especial “Xica da Silva – Genial? Racista? Pornochanchada?”.
No texto em questão, a historiadora afirma que o filme Xica da Silva propunha uma hipersexualização da mulher negra e que era uma obra desrespeitosa “por manter os estereótipos em relação a um povo [negro]”. A crítica ganhou grande repercussão devido ao fato de a historiadora ter publicizado o desejo de que Cacá Diegues não fizesse mais nenhum filme e indicado que seu longa fosse relegado “ao ‘índex’ das obras proibidas”.
Além disso, no texto, Nascimento vincula a forma de abordagem e representação da mulher negra e da escravização de negros no Brasil em Xica da Silva a uma forma “alheia” de olhar para esses temas naquele período histórico, e acaba associando o conteúdo da obra ao que julgava ser uma abordagem/visão de seu autor empírico: uma objetificação da história negra trabalhada por um “olhar de fora”, que não se ofenderia intimamente (“de dentro”) com as formas de exposição dos assuntos e corpos negros como proposto no filme de 1976.
No fim, o que a historiadora parece apontar com suas críticas é aquilo que escrevem Robert Stam e Ella Shohat[1]: “que alguém ou algum grupo está falando em nome de outras pessoas ou grupos”. Ou seja, que há uma forma de contar a história que está fora de lugar com relação ao que deveria ser narrado de outra forma, conforme as identificações e narrativizações de grupos “de dentro” das questões negras, que, vale lembrar, estavam muitíssimo articulados politicamente na década de 1970 no Brasil e em outras partes do mundo.
Já Santiago Júnior[2] avalia que a crítica de Beatriz Nascimento faz um processo inverso com relação ao que a historiadora julgava ter sido o caminho tomado pelo diretor de Xica da Silva para a construção do filme: racializa e objetifica o lugar social e racial de Cacá Diegues, um homem branco diretor de cinema, membro de uma elite intelectual e artística de esquerda do período, que teria, segundo Júnior, construído uma Xica da Silva a partir de um “olhar branco”, fazendo com que o filme mostrasse os negros, mas não fosse capaz de representá-los – no sentido de gerar identificação, reconhecimento e aceitação de espectadores negros. “A chamada de atenção para o ponto de vista do artista e intelectual branco que elabora a imagem do negro […] numa perspectiva do outro-negro, permitiu à Nascimento mostrar o outro-branco que cria a imagem”, escreve Júnior.
Vazante: retomada e atualização de um debate
O debate sobre as posições social, racial e de gênero do espectador e do autor como componentes fundamentais do olhar fílmico instaurado pela crítica de Nascimento se apresenta como algo muito contemporâneo. Isso fica evidente quando considerados os atuais e midiáticos questionamentos de receptores, críticos e realizadores negros e não-brancos sobre quem esteve historicamente com mais condições (materiais, inclusive) de representar negros e não-brancos na história do cinema.
Um exemplo muito evidente da tendência de retomada desse debate publicamente de tempos em tempos, especificamente no Brasil, foi a polêmica recepção do filme Vazante durante o seu lançamento em 2017. A trama do longa-metragem é ambientada no Brasil escravocrata de 1821 e conta a história de Beatriz (Luana Nastas), menina branca de 12 anos cedida de casamento a Antônio (Adriano Carvalho), português branco dono de terras no interior da colônia.
O filme teve sua primeira exibição pública no país durante o 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e foi muito criticado negativamente por críticos e espectadores negros durante o debate com a diretora, após sua segunda exibição no evento. No texto “A fita branca”, publicado na Cinética – Revista de Cinema e Crítica naquele ano, Juliano Gomes, que esteve presente no reconhecidamente acalorado debate sobre o filme com a diretora Daniela Thomas em Brasília, evidencia o que tanto incomodou a parcela dos receptores críticos negros à época, quanto à representação da escravidão e dos negros escravizados no filme: a “presença de um denso verniz que adereça esse tour exploitation sobre a própria exploração fundadora do país. Um verniz, porque não se desloca o campo de relações discursivas ao redor desses fenômenos, funcionando como uma espécie de atualização solene da perversa posição da impotente consciência branca”.
Depois da recepção negativa durante o debate em Brasília, a diretora Daniela Thomas disse que, se pudesse, talvez não tivesse filmado o longa-metragem, que se arrependida por tê-lo feito – declaração sobre a qual também disse estar arrependida em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo tempos depois. Em seguida, Juliano Gomes endossou o anseio expresso por ela, dizendo, então, que guardasse Vazante, que não o lançasse. Após a polêmica, a diretora, Gomes e Cacá Diegues foram os convidados de um episódio do programa de televisão “Conversa com Bial” (Rede Globo). Exibido em 10 de novembro de 2017, o programa teve como tema “a importância de debates promovidos pela arte”.
Aqui, ficam evidentes as simetrias entre a repercussão da recepção de Vazante e o episódio da crítica de Beatriz Nascimento a Xica da Silva. Diferentes leituras, aliás, associaram os gestos críticos de Beatriz Nascimentos, em 1976, e de Juliano Gomes, em 2017, às respectivas ideias de “patrulha ideológica” e à contemporânea “cultura do cancelamento”. Sobre isso, é importante destacar que o fato de Nascimento e Gomes estarem posicionados num evidente lugar de não poder de censura ou “cancelamento” massivo dos filmes, demostra que suas proposições, quanto a relegar Xica da Silva ao índex de obras proibidas e a endossar que Vazante fosse guardado e não lançado, são parte de gestos significativamente provocativos possíveis de acontecer na elaboração de críticas cinematográficas livres.
Olhares insubmissos
Quando pensamos na recepção de Vazante por parcela do público negro que criticou negativamente o filme em 2017, vêm à cabeça as seguintes perguntas: por que apenas determinadas percepções (muito mais ligadas a uma chave de invisibilização e estereotipação negativa) sobre as personagens negras no filme foram consideradas por aqueles receptores críticos? O que isso tem a ver ideações de representação positiva em meio às dinâmicas das relações e identidades raciais postas no mundo em que os filmes são produzidos e para onde eles voltam no momento da exibição e recepção? Até que ponto o “comprometimento identitário” dos receptores, frente a um histórico de sub-representação negra no cinema nacional e em meio ao crescimento do debate sobre quem esteve e está autorizado a representar negras e negros “da melhor forma” nessa arte, não leva à desconsideração de camadas mais complexas também passíveis de existir em tramas de filmes com corpos e temas negros mobilizados por realizadores brancos?
Em contraste com o que boa parte dos críticos negativos de Vazante alegaram sobre uma acachapante falta de subjetividade nas personagens escravizadas presentes no filme, acreditamos ser necessário observar outras forma de complexidade dessas personagens que não se dão pela fala nem pelo protagonismo diretos na trama, que, evidentemente, é construída de forma a priorizar os conflitos dos protagonistas brancos. Um destaque nesse sentido está relacionado à forma de construção do garoto escravizado Virgílio, sobre o qual pouco ou nada foi falado nas análises à época do lançamento do filme ou mesmo depois.
Na estória, Virgílio é filho da escravizada Feliciana (Jai Baptista), com quem o português e dono de terras Antônio mantém relações sexuais forçadas – estupros, como nos lembram as perspectivas de Lélia Gonzalez – e de quem vamos, como espectadores, conhecer o nome apenas ao final da obra.
Tão explorado em filmes do pós-guerra na Europa, o olhar da criança em meio a um contexto hostil também aparece em Vazante e ganha maior peso de sentido ao ser trabalhado na personagem de Virgílio. As formas como o longa-metragem mostra o olhar de criança pré-adolescente do garoto aparece para nós como alguns dos poucos momentos em que a estética de contemplação do filme é hackeada por nuances de problematização de ordem social-racial.
Em diferentes cenas, Virgílio olha ao mesmo tempo curioso e desconfiado para Antônio e seus escravizados. Isso acontece desde a primeira vez em que o menino vê o senhor português, quando este está chegando em sua fazenda depois de um período de viagem. Num primeiro momento, o conflito visual que Virgílio mantém com seu senhor pode ser explicado a partir dos contrastes entre suas posições sociais. Mas também pode ser lido considerando a jovialidade do garoto. Possivelmente devido à sua idade, ele é um escravizado com energia para ser menos conformado com as naturalizações das opressões e explorações pelas quais passam sua mãe e seus pares.
Em uma cena, o jovem observa Feliciana ajudar atenciosamente a um escravizado revoltado recém-chegado de África que está sendo castigado na fazenda por negar-se a se submeter à escravidão. O garoto olha os gestos de cuidado da mãe para com o seu igual com um ar que mistura justa e novamente desconfiança, curiosidade e estranhamento. Parece perguntar a si mesmo se era, então, possível ser tratado daquela boa maneira por alguém sendo negro e revoltado ali na fazenda.
O mesmo estranhamento no olhar de Virgílio pode ser percebido quando ele observa, mais resignado do que conformado, os diferentes momentos em que Feliciana é obrigada a ir, com uma corporeidade submissa reiterada pelos pontos de vista da câmera, deitar-se com o senhor da fazenda.
Em contraste com a forma como Antônio violenta a escravizada, está o tratamento físico que ele relega a sua esposa adolescente Beatriz. Após sua primeira menstruação, a sinhá branca é quase desvirginada na cama pelo marido. Porém, sendo uma mulher em florescimento e esposa oficial, tem seu perceptível medo da consumação do ato respeitado. Torna-se perceptível que, para que tal respeito se mantenha, a vazão sexual do europeu (violenta e bestial) é canalizada para o estupro de Feliciana – Frantz Fanon e Grada Kilomba explicam.
Esse foi um dos pontos mais mencionados nas críticas negativas feitas ao filme quando de seu lançamento. Alegava-se, com razão, uma enorme fragilidade ético-narrativa do filme ao mostrar, naturalizar e tentar equiparar, por meio de personagens, imagens e cenas seletivamente realistas, a opressão de gênero de uma menina sinhá branca à opressão e violência racial, social e de gênero sofridas pela escravizada Feliciana.
Apesar disso, propomos aqui uma observação sobre a interessante existência de um contraponto à naturalização desses contrastes que, a nosso ver, se dá, justamente, pelo estranhamento e insubmissão do olhar de Virgílio, culminando, em termos práticos, em sua paixão por Beatriz, a jovem e branca esposa de seu senhor. O amor dos dois adolescentes resulta na gravidez da sinhazinha, que pode ser entendida como ponto auge do filme e do conflito que Virgílio nutre por Antônio desde o primeiro momento que o vê.
A consumação sexual consensual e inter-racial entre Virgílio e Beatriz, dois jovens, contrasta-se com a violência que marca a relação sexual de Antônio e Feliciana, adultos em posições sociais mais evidentemente divergentes. O talvez complexo de édipo castrado de Virgílio, somado a uma possível e consequente “raiva de raça” dirigida a Antônio, o estuprador de sua mãe, faz com que sua suposta ousadia ou ingenuidade juvenil em se relacionar com a esposa branca de seu senhor se torne a expressão mais latente, palpável e perigosa do conflito entre as duas personagens masculinas.
Um arco narrativo que não nos parece alienado, mas sim complexo – apesar de ter sido pouco criticado como tal – ao nos remeter à expressividade do que fala a personagem-título de Malcolm X (Spike Lee, 1992), na primeira etapa no longa-metragem. Diz o protagonista a certa altura do filme: “Nós éramos nove filhos em nossa família. Minha mãe era uma mulher altiva, educada e forte. Tinha a pele muito clara, porque a mãe dela fora estuprada por um branco. Uma das razões por que ela se casou com o meu pai foi porque ele era muito preto. Ela odiava o complexo que tinha por ter sangue branco em seu corpo e queria crianças que fossem negras. Acho que isso pesou muito em mim e em muitos negros de hoje. Por tantas de nossas irmãs terem sido estupradas e violadas por homens brancos, homens negros sonham colocar as mãos no bem mais valioso do homem branco: a mulher branca”.
No fim, o que ocorre em Vazante é também uma disputa pela “posse” do corpo da mulher branca virginal travada entre o senhor de escravos e o filho de uma das escravizadas que ele “costuma” estuprar. A valorização da mulher branca nesse contexto pode ser melhor percebida quando consideramos, em termos históricos descritos e também naturalizados por Gilberto Freyre, a escassez de europeias passíveis de se tornarem esposas dos senhores de escravos no Brasil Colônia. Contexto que Darcy Ribeiro considerou como originário das diferenciações sociais e raciais das relações sexuais no Brasil. Segundo os autores, as escravizadas indígenas e negras passaram a ser escapes para o desejo sexual do colonizador branco sobretudo na falta da mulher branca em solos tropicais. Isso fez com que aquelas fossem associadas exclusivamente a interesses sexuais e não afetivos ou conjugais; interesses que foram endossados pelas leis do período que proibiam casamentos de negros com brancos e de negros entre si.
Nesse sentido, a relação sexual de Virgílio com Beatriz em Vazante, evidenciada pela gravidez e pelo nascimento do bebê negro da garota, também pode ser interpretada como uma masculina “vingança de raça” do filho de Feliciana. Um revés histórico-narrativo que, considerando o valor da mulher branca no contexto, fragiliza e ofende tanto a virilidade constituidora do poder (opressivo) de Antônio na fazenda e na trama que acaba sendo a principal motivação para sua apresentação como um evidente assassino.
Ou seja, é justamente a ferida causada na virilidade e no patriarcalismo branco colonialista que dá origem a um maior conflito e ira do senhor de escravos português, fazendo-o chegar a ações radicalmente violentas e racistas no desfecho da estória: o assassinato de Feliciana (grávida em decorrência de seus estupros), de Virgílio e de seu bebê mestiço gerado junto à Beatriz.
Ao dar destaque à ira racista de Antônio, obviamente, o filme toma posição quanto a qual subjetividade ferida escolhe dar espaço. Porém, aqui, mais uma vez, é preciso reconhecer o óbvio: a obra está coadunada e preocupada com um olhar que se dá a partir da Casa Grande sobre questões como o casamento precoce de jovens brancas no Brasil Colonial e as violências relegadas a escravizadas e escravizados negros em meio e também devido a esse contexto. Ponto de vista que, inclusive, explica as escolhas da fotografia e direção artística do filme. Não considerar isso é querer assistir a outro filme que não o realizado por Daniela Thomas, mas que pode e deve ser feito por outras pessoas, apesar das ainda existentes desigualdades materiais para a realizações cinematográficas de grande orçamento por diferentes corpos.
É preciso reconhecer também que, no longa-metragem, são apresentadas nuances de complexidades das relações e “vinganças sociais e raciais” protagonizadas por negros que os brancos racistas detentores de poder no Brasil desde o período colonial não toleram e, portanto, decidem, exemplar e historicamente, extirpar. Mesmo partindo das dores e poderes dos dominantes brancos, a obra expõe a complexa engrenagem psicossocial e das relações raciais que faz com que colonizadores e seus herdeiros façam de tudo, inclusive recrudescendo suas violências racistas, para continuarem a perceber a si mesmo como superiores e se manterem nessa posição.
Talvez essa seja uma elaboração racial inconsciente de Thomas (como representante de uma coletividade branca de classe alta no Brasil), que o filme mostra à revelia do que a autora conseguiu racionalmente prever e contar. Novamente, nos vem à mente os escritos de Fanon sobre os efeitos da racialização e do racismo na psiqué de brancos e negros a partir dos colonialismos. Ninguém está isento.
Problematizando as fronteiras
Na tentativa de olhar para Vazante, a partir de possibilidades interpretativas cunhadas com mais distanciamento da época de seu lançamento, para a sua recepção crítica em 2017 e para o debate sobre “os autorizados a representar melhor negras e negras no audiovisual nacional”, chamamos o crítico de cinema Juliano Gomes para conversar sobre diferentes pontos deste texto a partir de uma breve entrevista que pode ser lida a seguir.
1) O que você acha disso que abordo aqui no texto de, muitas vezes, a racialidade dos diretores ser o mais considerado para justificar o que os filmes mostram ou não, para avaliar as qualidades, as limitações ou os equívocos de filmes com personagens, histórias e temas negros? Você acha que isso aconteceu com Vazante?
Juliano Gomes: A situação histórica de homogeneidade na ocupação destas posições profissionais leva, logicamente, ao questionamento da natureza e da construção desse processo de exclusão histórica. Portanto, é uma questão verdadeira e verificável que quem dirige filmes, em geral, mesmo num país de maioria não-branca, são brancos. Assim, me parece razoável supor que um imaginário comum a essa posição sócio-histórica se revele nos trabalhos. Então, atentar-se a racialidade desses profissionais pode vir a ser uma ferramenta importante a ser considerada.
No entanto, a automatização essencialista da compreensão deste processo é um obstáculo que pode se avizinhar. Tanto para um lado como para o outro. De certa maneira, sublinhar demais esse aspecto pode funcionar como linha acessória a uma diminuição da nossa capacidade crítica de ver as coisas. Porque a diretora já era branca “antes do filme”. E se, para análise, o objeto cultural na sua materialidade não conta significativamente, acho que se pode estar perdendo a oportunidade de adensar um debate importante, em um momento histórico em que a coragem para essa complexificação se faz necessária.
A determinabilidade é sempre uma grande tentação para o trabalho crítico e teórico. Porque ela é sempre o mecanismo mais rápido de se produzir enunciados: “tal coisa determina tal coisa”. Minha posição é que sempre as coisas são mais complexas, multifacetadas, e um objeto cultural é sempre mediado por um conjunto de forças, muitas vezes conflitantes.
Sobre a recepção de Vazante, não saberia dizer o peso do critério. Seria preciso levantar. Tenho a sensação de que a massa de textos que faz objeções ao filme não é uma maioria tão esmagadora assim. Publicações em grandes jornais paulistas foram de muito apoio ao filme, por exemplo, como o texto da Lilian Schwarz. Acho que o mundo do espaço público da internet às vezes induz a certas ilusões de escala. Se esse critério pesou muito nas avaliações de Vazante, tenho a impressão de que sim. É, de certa forma, um filme mais “lido” do que visto. O que me parece um mau sinal, em relação a saúde de um debate crítico. Seria interessante que ele fosse mais visto e todos pudessem gerar suas conclusões.
Um dos problemas possíveis de Vazante é que seu modo de produção é “branco”, a distribuição do dinheiro, das funções… Esse é um dos limites que tenho com algumas posições políticas de inclusão e quem tem o “cinema comercial” como horizonte de desejo naturalizado. Me parece que faz mais sentido tentar que o “cinema não comercial” seja possível como exercício profissional continuado, do que naturalizar que filmes milionários são a salvação.
Inclusive, essa me parece a limitação de boa parte do escopo da discussão sobre o cinema e raça nas últimas décadas: uma naturalização do majoritário, tanto como objeto de atenção, como horizonte de desejo. É estranho discutir isso hoje quando o Estado Brasileiro destruiu quase toda institucionalidade ligada ao cinema e às artes. Não podemos ignorar isso e não devemos privatizar o imaginário desse debate, sonhando com o majoritário que se apresenta: as empresas de streaming, que são um exemplo de exploração, desigualdade e falta de transparência.
Fico extremamente preocupado quando vejo colegas que pensam que a saída está aí. Não, interessa “tingir de negro” as práticas capitalistas que, inclusive, são frutos e criadoras do comércio de pessoas escravizadas. É por isso que falo desse problema de só se imaginar o majoritário como horizonte de possibilidades. As instâncias majoritárias da economia recorrem ao expediente da “imagem antirracista” para não terem que operar mudanças estruturais. O capitalismo tem uma aguçada capacidade de aprender, ele é craque nisso. Por isso que devemos ser também, entende? Por isso falo de cultivo da sensibilidade como marco ético. Porque o poder é extremamente sensível e sabe mudar o discurso e se adaptar com facilidade.
A concentração racial dos meios de produção é um problema grave e precisa ser encarado de frente, por toda a comunidade. Porém, precisamos ser adultos e encarar o fato de que isso não “garante” como os filmes serão, porque aí estamos no problema da determinabilidade, entende? Estudando a história – por isso é central preservá-la – verificamos que a coisa é altamente instável. Invenção é o oposto da garantia, mas não é por isso que não devemos tentar, mas justo por isso.
2) Você acha que se Vazante tivesse sido dirigido por uma pessoa negra, a recepção de uma parcela significativa de espectadores negros críticos ao filme teria sido diferente? Ou não faz sentido essa pergunta, porque uma pessoa negra nunca faria um filme como esse?
Juliano Gomes: Se fosse mágico assim, estaríamos feitos. Se fosse só trocar as pessoas e um milagre acontecesse… Imagina? Sabemos que não é assim que as coisas funcionam.
Mas, sim, seria muito interessante que esse mesmíssimo filme fosse dirigido por uma pessoa negra. Em muitos sentidos: seria o maior orçamento que uma diretora negra teria condições de usufruir em sua produção, por exemplo. Mas também seria uma maravilhosa oportunidade de verificarmos um exemplo desessencializante.
Parece óbvio, mas é importante repetir: um artista negro pode produzir arte racista. E vice versa. O racismo é um processo social, um vetor estruturante. Acho que, se fosse feito por alguém negro, a recepção podia ser ainda um processo mais rico. Mas, assim, os atores negros estão lá. Inclusive, alguns muito experientes como Fabricio Boliveira. Um filme é feito por muitas mãos e muitos processos incidem nele pra que ele se torne como é.
3) Então concorda que não é verdade que só pessoas negras mobilizam bem a direção de atores negros e o desenvolvimento de temáticas negras no audiovisual e no cinema em específico? Como pensa isso olhando para o cinema brasileiro de hoje e de décadas passadas, como 1960, 1970 e 1980?
Juliano Gomes: Quanto à primeira parte da pergunta, isso é fácil de verificar. Em casos que você mesma cita. Agora, no âmbito do cinema brasileiro, as discussões sobre a politização da prática cinematográfica deram contribuições muito significativas internamente e externamente.
Naquelas décadas, estava-se discutindo Frantz Fanon, a condição latino-americana, a colonialidade, a nossa posicionalidade histórica aqui, com bastante maturidade se comparamos a outros países. Não podemos cair numa perspectiva infantilizada de achar que porque não era perfeito, então vamos jogar fora. É evidente, no caso de Cinema Novo brasileiro, que o processo que levaria os profissionais negros a dirigirem filmes não foi priorizado (apesar de ter acontecido em pequena escala, com alguns cineastas do Cinema Novo atuando como produtores destes filmes de diretores negros, como com o Waldir Onofre).
Porém, como você mesma elencou, esse cinema teve impactos também de natureza racial fora do país. O professor Elyseo Taylor trouxe cinema brasileiro e do terceiro mundo pros alunos da UCLA [Universidade da Califórnia – Los Angeles] nos anos 1960 e 1970 e isso foi crucial pra produção chamada de L.A. Rebellion, que o Woodberry, que você citou, faz parte. Como já falamos numa outra conversa, estive presencialmente com Billy em Lisboa, e você não imagina a emoção com que ele fala dos filmes do Cacá Diegues e do Cinema Novo desse período, por exemplo.
O cinema moderno dos EUA, na mesma época, não estava fazendo nada parecido com o que fazíamos aqui. Tente comparar os personagens e os filmes de Sidney Poitier e Antonio Pitanga, por exemplo. Temos muito a aprender com o que já foi feito. O visionamento de filmes de Cajado Filho, Agenor Alves, entre outros, certamente contribuirá para nossa capacidade crítica de pensar nestas questões todas, materialmente, e nos fortalecerá para que possamos lidar e valorizar as complexidades e paradoxos que iremos encontrar.
É aí que o vício da determinabilidade nos afeta: ele resulta em uma diminuição do nosso apetite pela complexidade. Abolição, filme de Zózimo sobre os 100 anos da efeméride de 1888, é dedicado a Leon Hirszman e Glauber Rocha. Isso é interessante, não deveria ser um fato histórico a ser “evitado”, mas sim pensado com a complexidade devida.
A história não é o que queremos que ela seja, ela é matéria de base para o desenvolvimento e aprimoramento de nossa capacidade de perceber. Nós devemos procurar a valorizar a complexidade. Por isso que acho que Vazante deveria ser exibido e debatido exaustivamente por aí. Todo mundo ganha com isso.
[1] SHOHAT, E.; STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
[2] SANTIAGO JÚNIOR, F. “Reações na (à) cultura visual: racialização e humilhação no Brasil dos anos 1970”. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.