O desejo de consertar um projetor de 16mm fez com que chegasse às mãos de Janaína Nagata um filme anônimo, sem procedência alguma, adquirido pela internet juntamente a um carretel. Na tela de cinema, acompanhamos o processo de investigação da realizadora e artista visual através da manipulação do material de arquivo e de pesquisas realizadas no Google. Em Filme Particular (2022), o contraste entre digital e analógico se estrutura como possibilidade de localizar e reconhecer informações, discursos e contextos políticos que estão imbricados nas imagens que foram capturadas num território estrangeiro, em outra temporalidade.
Com uma cartela informativa na primeira parte do longa-metragem, Janaína Nagata nos conta como conseguiu acessar o rolo de filme. Além de comunicar que ele seria exibido integralmente, afirma-se que não houve nenhuma manipulação no material de 19 minutos, “apenas” a adição de uma trilha sonora. É preciso reconhecer, no entanto, que essa escolha, assim como o próprio uso da cartela, são intervenções fílmicas. O gesto emite a construção de certo distanciamento entre a diretora e o arquivo e uma possível intenção de promover uma experiência “pura”, sem mediação para as espectadoras. A ação deixa escapar a tentativa de elaboração de um ambiente controlado, com certo receio de suas ações arriscadas.
Imagens de savana, de pessoas africanas em seus territórios de origem e da experiência turística de uma família nuclear branca em um espaço urbanizado formam o conteúdo do filme acidentalmente encontrado por Nagata. A frontalidade como homens e mulheres negras são observados pela câmera nos referencia à iconografia colonial, em sua reprodução de exotismos e na objetificação daquilo que está sendo filmado. A diferença racial fica ainda mais marcada pelo modo de produção das imagens, assim como pelo destaque entre a negrura e a brancura presente na tela.
Após a exibição completa do filme anônimo, a ação de rebobinar e a repartição da tela em duas, que projeta um desktop, dá início às manipulações fílmicas mais contundentes do longa-metragem. A montagem é marcada por justaposições, repetições e associações livres entre a película e o banco de imagens do Google. Com um olhar atento para os rastros deixados “acidentalmente” no filme original, a diretora localiza palavras-chave que auxiliam no reconhecimento da geografia e da época em que foram rodadas aquelas imagens. Estamos na África do Sul, nos anos 1960.
Até certo ponto, chega a ser um tanto “surpreendente” como os objetos secundários presentes nas imagens nos possibilitam ter acesso a informações de forma tão rápida. Exemplo disso é quando a diretora procura por um nome que está em um estandarte, que nos leva a uma fábrica de biscoitos doces e salgados. Ou quando uma placa de trânsito nos permite localizar um grupo étnico em uma região longe da capital sul africana. Torna-se ainda mais notável quando encontramos o mesmo objeto replicado em uma fotografia presente na Internet, como um escorrego da piscina de um hotel.
Apesar do seu estimulante método de organização e pesquisa fílmica, a escolha da criação de um plano-sequência talvez seja uma das grandes fragilidades da forma de Filme Particular. Enquanto investigação histórica, o longa quase não esbarra nas dificuldades de seu procedimento. Por justamente investir num ambiente controlado, sequencial e linear, tudo parece funcionar de maneira perfeitamente orquestrada. As barreiras da investigação só são apresentadas duas vezes: quando a diretora precisa pagar para ter acesso a um link recomendado pelo PimEyes ou quando ela não encontra informações sobre uma das pessoas que tenta identificar pelo mesmo aplicativo.
Assim como o artíficio do reconhecimento facial utilizado por Janaína Nagata, que desvenda a identidade de personalidades como Hendrix Frensch Verwoerd, principal implementador do regime de segregação racial na África do Sul, e Khotso Sethuntsha, guru milionário e consultor do líder político, o filme investe no formato da identificação instântanea. Esse fluxo contínuo de pesquisa encenado através da montagem, que formula um plano-sequência, faz com que a contranarrativa histórica armada pelo filme se apresente de maneira bastante superficial. Localizam-se regiões, símbolos, grupos étnicos, mas sem grandes aprofundamentos ou articulações mais complexas sobre as dinâmicas de poder e suas nuances políticas.
Por outro lado, o filme investe em alguns gestos de contraposição simbólica, quando mostra, por exemplo, imagens de manifestações pelo fim do apartheid, enquanto a família da película está posicionada em frente ao que viria a ser o Museu Nelson Mandela. A repetição do acenar de mão da menina branca para a câmera é colocado em contraste ao movimento das mãos dos manifestantes, causando um choque imagético e discursivo. Ainda, Filme Particular consegue fazer vibrar as consequências e reatualizações do colonialismo na contemporaneidade, quando aproxima as imagens do turismo da família dos anos 1960 com o turismo colonial nos dias de hoje.
É importante destacar que é nessa proposta de montagem que o longa constrói sua ação mais arriscada. A tela bipartida nos faz visualizar os registros da película em paralelo com uma menina negra que está sendo trançada por intermédio de uma mulher branca, que narra a ação do salão e fala sobre a jovem de forma exótica e infantilizada. A violência das imagens escapam, colocando a mobilização fílmica em seu limite, que fica entre a leitura crítica e o perigo da reencenação colonialista. Já num outro momento, o destaque no gesto de recusa de uma mulher negra que cobre o rosto com um pano branco para não ser filmada, deixa mais precisa as articulações críticas e a iniciativa de reconhecer o agenciamento das pessoas que estão em tela, em suas sutis contravenções.
Filme Particular chama atenção por trazer internamente o convívio de articulações formais distintas e instigantes, ao mesmo tempo que são superficiais, frágeis e arriscadas. Essa complexidade faz escapulir uma batalha travada de dentro da matéria fílmica, no impasse entre a tentativa de controle de sua operação e a materialidade controversa, violenta e sensível que o repertório imagético abriga em si. No entanto, o gesto de Nagata nos motiva a lidar com as questões das imagens-problema, de modo a confrontá-las a partir da revisitação, do rasgo que nos permite reformulá-las e questioná-las de forma crítica.