‘O enredo atravessou, mas o samba não calou’ | Gurufim na Mangueira (Danddara, 2000)

No ano 2000, Danddara lançava seu primeiro trabalho como diretora e corroteirista, Gurufim na Mangueira. O filme acontece na quadra da escola de samba Mangueira, durante o velório de um jovem músico e líder comunitário (Ivo Meirelles), com a presença (e o batuque) da comunidade. Oito anos depois, em um texto publicado na revista Filme Cultura, a cineasta afirma que tal obra “inaugura a autorrepresentação da mulher negra brasileira como sujeito da narrativa ficcional”. Intitulado “Danddara: Autoimagem de uma Cineasta Negra”, a autora compartilha algumas reflexões sobre ser uma mulher negra e profissional do audiovisual, e sobre a formação de seu olhar enquanto atriz e espectadora. Em síntese, a diretora explica, a partir do conceito de olhar opositivo da bell hooks, como a experiência de ver filmes com sua mãe catalisou seu desejo de tornar-se cineasta. Mesmo tendo lançado seu filme próximo ao movimento do Cinema Feijoada, Danddara não é associada às mobilizações do cinema negro da virada do século XXI. Mais de 20 anos após a estreia de Gurufim, é no mínimo curioso perceber que esse filme continua sendo pouco debatido no campo cinematográfico brasileiro.

Gurufim na Mangueira (2000)

“Era do funk, mas era um bom pai de família”

Gurufim na Mangueira inicia com uma cartela onde está escrito “Bem-vindo à Mangueira”. Antes do filme nos apresentar a quadra da escola carioca, o Palácio do Samba, com seus característicos tons de verde e rosa, vamos juntos com o jovem Mosquito (Silvio Guindane) a uma espécie de Orum, onde Mosquito encontra-se com Maestro, que está sendo velado na quadra. Nesse plano “pós-morte”, construído por Danddara num pequeno terreno descampado em meio às árvores, é onde os personagens se encontram com o falecido. Lá, todos usam branco. A cenografia traz elementos que aludem a uma espiritualidade negra, com a presença de velas e uma cruz no chão com cores em referência ao cosmograma Dikenga

Nesse espaço, Mosquito manifesta todos seus anseios ao Maestro, em relação ao futuro da banda de funk a qual ambos faziam parte. O falecido era líder do grupo. O maestro, ao invés de acalmá-lo, diz apenas que Mosquito teria que “virar homem”, entregando-o o apito de condução da bateria. Esse gesto resulta em Mosquito passar o velório inteiro esperando uma outra oportunidade de conversar com o morto para sanar sua contínua angústia. 

Voltando à quadra da Mangueira, onde estão os vivos e se dá o gurufim, Mosquito vê um grupo de mulheres cantando para velar o corpo do Mestre, homenageando os “mestres do samba, do jongo e do caxambu”. Mosquito interrompe, complementando: “da capoeira, do maculelê, do reggae, do afoxé, da folia de reis, do maracatu, da rumba e do funk também, porra”. Essa frase de defesa do funk junto a outras manifestações populares “tradicionais” negras, é seguida por uma performance do Funk’n’Lata, grupo formado por Ivo Meirelles, que mistura diversos gêneros como funk, hip hop, soul, enquanto faz uso de instrumentos de bateria de escolas de samba, como o tamborim, surdo e agogô.

Danddara expõe aqui, em poucas sequências, um debate sobre a cultura popular negra. De modo dialético e não essencialista, Danddara tensiona as categorias do que convencionalmente chamamos de “tradicional” e “moderno”. A aproximação desses dois universos reverbera em outros momentos do filme, como a performance do Funk n’ Lata com a Velha Guarda da Mangueira. Ao invés de colocá-los em oposição, o investimento estético aponta que, na verdade, o moderno nasce a partir do que é “tradicional”, e a tradição, por sua vez, encontra novos lugares e possibilidades de existência a partir do seu encontro e contraste com o “moderno”.

Com esse pequeno “conflito geracional”, o gurufim segue sob o comando da viúva (Thalma de Freitas) do maestro, que faz questão de que o batuque ocorra de acordo com a vontade do marido. A velha guarda, no final das contas, aceita, até porque o morto “era do funk, mas era um bom pai de família”. Considerando a época em que o filme foi lançado, essa fala aponta para certa secundarização e resistência a essa manifestação cultural periférica, assim como demarca mais uma vez o embate entre “tradição” e “moderno”. A forma como o gurufim se constrói no filme parece ser uma defesa de aproximação desses dois universos. 

As contradições permanecem

O clima de celebração do gurufim é interrompido quando uma mulher branca (Ana Luiza Rabello) se joga em cima do caixão do morto dizendo que o amava. A situação fissura o tom festivo que estava ali. O líder comunitário, tão admirado e responsável por transformar a vida de tantas pessoas da comunidade, tinha uma amante. Tanto a viúva quanto a amante, em momentos distintos, se encontram espiritualmente com o morto. Quando a primeira encontra o Maestro e o confronta sobre a relação extraconjugal, ele diz que a amante não era ninguém, que “pegou essa moça umas duas vezes, se muito”. Já com a amante, fica evidente que ele conhecia até mesmo a família dela. Ou seja, ele enganava as duas. 

A situação dá um tom cômico para a narrativa e o personagem de Ivo Meirelles ganha características associadas ao estereótipo do “malandro”. Essa figura construída em Gurufim, no entanto, parece se afastar da simplista construção racista que produz um determinismo social do negro enquanto sujeito marginalizado. O personagem de Ivo Meirelles traz nuances mais contraditórias, não se reduzindo a uma mera reprodução do racismo. Pelo contrário, esse personagem traz em si diversos embates sobre a questão racial.

Um bom exemplo disso é a forma como o personagem de Ivo Meirelles se relaciona com sua amante branca. A troca de afeto entre ambos não representa para o maestro um modo de conquistar prestígio, ou de “vestir uma máscara branca”, pois ele já tinha reconhecimento dentro de sua comunidade. O encontro espiritual entre o maestro e sua amante finda com ela dizendo que percebia um abismo entre eles. Isso se dá pela descoberta da vida de homem casado do sambista, até pelo modo como ela se vê totalmente alheia ao gurufim, questionando se o ritual seria “perigoso”. Mesmo que haja um discurso sobre “lugar de preto e lugar de branco” em Gurufim, esse está mais associado às diferenças culturais de um grupo e outro, e a relação com a amante opera para demarcá-lo.

A revelação de que o líder comunitário era adúltero, no entanto, não retira o respeito que a comunidade tem por ele. Ao invés de assumirem uma postura puramente inquisitória ao comportamento do maestro, o filme apresenta uma gradual “reacomodação de forças”. Assim como a admiração se mantém, o amor que a viúva sente pelo maestro não se esvai, apesar do coração ferido. Como diz a música de Cartola que embala os créditos finais de Gurufim, “fico tranquilo em Mangueira, porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer”

Mas, a continuidade do ritual se dá com vários conflitos: entre “tradição” e “modernidade”, branquitude e negritude, a imagem imaculada do líder e a sua humanidade falha. Apesar do gurufim seguir dentro do esperado, isso não quer dizer que todas as tensões presentes foram resolvidas. As contradições permanecem. Por exemplo, a viúva aceita que a amante acompanhe o cortejo, mas não sem exigir que a personagem de Ana Luiza Rabello pare de olhar para ela. 

Gurufim na Mangueira (2000)

“O enredo atravessou, mas o samba não calou, semeando a liberdade”

Na saída do cortejo, a câmera percorre a quadra até encontrar Mosquito. Ao lado dele está o maestro, cantando e tocando no violão o samba Nostalgia da Modernidade, avisando que “o enredo atravessou, mas o samba não calou, semeando a liberdade”. Mosquito diz às crianças que aquele palácio, referindo-se à quadra da Mangueira, também as pertencia. Depois disso ele toca o apito do Maestro, se revelando pronto para assumir a missão. 

Com esse gesto, Danddara costura de vez o espaço da espiritualidade com o do Palácio do Samba, uma vez que Mosquito havia recebido o apito das mãos do maestro quando os dois estavam no Orum. Esse arremate transmite muito claramente a ideia de que Mosquito finalmente entendeu que, apesar das dificuldades e das incertezas que o futuro reserva, estar naquele território garante, de alguma forma, que haverá uma continuidade da cultura. É ocupando-o que ela coletivamente se constrói e se preserva.

Já a finitude do Maestro não é o seu fim. Ele continua impactando o espaço em que fez tanta diferença e deixou sua marca. DEssa combinação parece a síntese do gesto de Gurufim na Mangueira: ao construir um território fílmico onde concentra em si diferentes temporalidades e manifestações culturais, Danddara abriga, num único plano, o que se foi, o que ficou, e o que virá dentro daquela comunidade negra. O samba continua.

Durante a sequência final, o Maestro está sendo levado no caixão para ser enterrado. Mesmo com o caixão fechado, vemos Maestro junto a Mosquito cantando e tocando um samba. A finitude do Maestro não é o seu fim. Essa combinação parece ser a síntese do gesto de Gurufim na Mangueira: ao construir um território fílmico onde concentra em si diferentes temporalidades e manifestações culturais, Danddara abriga, num único plano, o que se foi, o que ficou, e o que virá dentro daquela comunidade negra. O verso de Nostalgia da Modernidade parece traduzir a experiência do gurufim que acabara de ocorrer. O samba continua.

Share this content: