Um filme em película não nasce deteriorado: uma conversa com Débora Butruce | CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

Graduada em Cinema e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense,  e doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP com pesquisa voltada para a restauração de filmes no Brasil e a incorporação da tecnologia digital, Débora Butruce atua como preservadora audiovisual, produtora cultural e curadora. Membro fundador da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), é integrante da diretoria desde 2014 e, hoje, preside a instituição para o biênio 2022-2024.

Na  CineOP – 17ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, Débora foi mediadora da mesa: Diálogos da ABPA | Tecnologias e Democratização: Iniciativas Independentes de Preservação Audiovisual,  coordenou a Assembleia Geral da ABPA e as Reuniões de Trabalho dos Participantes do Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros. Em entrevista para Renan Eduardo, Débora Butruce compartilha suas percepções sobre as constantes crises das instituições de memória audiovisual brasileiras, as escolhas curatoriais de restauradores e as práticas de preservação audiovisual digital.

Renan Eduardo: Nos últimos anos, principalmente após o incêndio na Cinemateca Brasileira, vários profissionais têm chamado atenção quanto ao problema em torno da preservação  de materiais audiovisuais brasileiros. Pensando em estabelecer um diálogo com o público que tem pouco conhecimento sobre o assunto: você poderia fazer um panorama referente ao que acontece na Cinemateca e em outras instituições no Brasil? É possível dimensionar o problema?

Débora Butruce: Não acho que tenha sido somente a partir do incêndio que ocorreu na Cinemateca Brasileira. É claro que um incêndio numa instituição como essa – e vale pontuar que é o quinto, ela já passou por outros quatro – chama atenção. Sobretudo, da sociedade em geral, pois essa é uma área que fica bastante invisibilizada na cadeia do audiovisual. Mas, nós, enquanto classe de preservação audiovisual, estamos sempre alarmados, porque a área é muito instável, como se vivesse cronicamente em crise. Em relação ao incêndio, percebo que nunca conversei tanto sobre preservação audiovisual nos últimos dois anos, que foi o período da última crise da Cinemateca Brasileira. Um incêndio, um alagamento, etc., chamam atenção e isso trouxe à tona o assunto e a urgência de discuti-lo. É uma pena que a gente precise de tragédias para debatê-lo. O setor vive em crise.

Por um lado, acho bom porque a gente consegue ampliar o debate e a conscientização sobre a importância da preservação do patrimônio audiovisual brasileiro. Por outro lado, é uma pena que a gente precise de um incêndio para que esse assunto venha à tona. Então, olhando o panorama geral, para uma instituição que é uma das maiores instituições da América Latina, por sua infraestrutura, pelo seu parque tecnológico… A Cinemateca Brasileira tem um Laboratório de Restauração. É uma das poucas instituições de salvaguarda patrimonial que tem um Laboratório de Restauração dentro de suas instalações.

Temos uma instituição única, imensa e que, ainda assim, consegue passar por uma crise tão trágica. Então, analisando o panorama brasileiro, é uma instituição que tinha alcançado algum nível de consolidação. Ao menos, nos últimos anos, nós achávamos que tinha mas o que essa crise  veio nos lembrar é que “não, ela não tinha alcançado nenhuma consolidação”. Foi algo muito frágil que se criou para conseguir ser destruído tão rapidamente. O panorama brasileiro não difere muito disso não. 

A questão é que nós temos muitas instituições no Brasil com diferentes níveis de maturidade institucional. Temos instituições que precisam do básico, da infraestrutura básica, como uma mesa enroladeira, insumos para limpeza de materiais e algum nível de catalogação sobre as coleções que detém. Temos instituições com um nível muito básico, que precisam de muito desde sempre, e instituições mais maduras, ou supostamente mais maduras, como a Cinemateca Brasileira. Há vários tipos de instituições, desde as ligadas ao Governo Federal, que são poucas, até às estaduais e municipais.  

O que podemos falar de forma ampla é o clima de instabilidade e de crise que acomete todas. Temos alguns momentos de  arranjos institucionais benéficos, mas que, no geral, são momentâneos. Não existe uma política pública de alcance nacional para a área de preservação audiovisual. Então, o que essa instabilidade demonstra é isso. As ações são pontuais com arranjos instáveis que facilmente, dependendo da configuração de governo e dos agentes de cultura do momento, podem se desfazer.

Digital Ashes (Bruno Christofoletti Barrenha, 2022)

Renan: Em uma das mesas que você mediou na CineOP, Diálogos da Abpa: Tecnologias e Democratização: Iniciativas Independentes de Preservação Audiovisual”, pareceu que o tema central era a “autonomia”, como possibilidade de formação de iniciativas independentes de preservação audiovisual. Qual é a importância de construir espaços que descentralizem a figura da Cinemateca Brasileira como agente principal em relação à preservação e restauro no país?

Débora: A descentralização dos arquivos e acervos audiovisuais brasileiros é algo que estamos falando há muito tempo. Existem coleções, arquivos, acervos e iniciativas por todo o Brasil. Existe muita coisa que está sendo produzida fora do radar institucional, de maneira independente, comunitária, em coletivos. Muitas dessas iniciativas ficam de fora dos radares das instituições, quaisquer que sejam elas. Então, essas iniciativas são essenciais, porque conseguem agregar outro tipo de profissional, de pessoas, um outro olhar para a preservação. E ampliar a conscientização sobre a importância da preservação. São iniciativas essenciais em termos de autonomia. Esses agentes são os mais adequados para identificar quais coleções, obras e materiais devem ser preservados localmente. Será que uma instituição grande localizada no Sudeste é a ideal para pensar sobre políticas de preservação no Nordeste? O que está acontecendo no Brasil fora dos radares institucionais? Esses agentes talvez sejam os mais adequados para estarem atentos. 

As instituições não dão conta de dialogar com toda a gama de produção audiovisual que vem sendo feita em muitas plataformas. Não existe uma política pública de alcance nacional, não existe uma política pública que pense arranjos regionais. Então, por um lado, é essencial que exista a autonomia das iniciativas e de reflexões como “o que preservar?” e “como preservar?”. E, ao mesmo tempo, a utopia é que exista uma política pública que consiga olhar e abarcar todas essas iniciativas. Infelizmente, como já estamos notando há muito tempo, não podemos depender do Estado, né? É uma prerrogativa do Estado a preservação do patrimônio audiovisual brasileiro, mas não podemos depender dessa instância, porque os governos mudam e ela, infelizmente, está sujeita aos humores de cada governo. Acho que precisamos ver a preservação como um elo integrante da cadeia produtiva do audiovisual e, a partir daí, conseguir pensar de maneira ampla todas essas iniciativas. 

No fim das contas, eu vejo com muito bons olhos. Nesse “Diálogos da ABPA”, durante a CineOP, foi apresentado um projeto super interessante em termos de tecnologia e desenvolvimento tecnológico local, o Cinemáquina, que irá beneficiar, sobretudo, uma região específica do Brasil que não tem nenhum tipo de instituição voltada para isso. No caso, o Sergipe. E que pode ser replicado para vários outros locais. Esses arranjos regionais são super importantes, é algo que nós debatemos muito, sobretudo pelo risco do que pode acontecer aos acervos devido à centralização. A centralização é um fator de risco para o patrimônio audiovisual. Então, iniciativas como essa são essenciais, tanto pela capilaridade que elas podem ter, quanto pelo olhar que só elas podem trazer em relação ao que é importante preservar regionalmente.

Renan: Queria trazer um ponto em relação ao debate sobre formação e capacitação. Como graduado em Cinema e Audiovisual, foram poucas as vezes que tive acesso aos debates sobre preservação e restauro. Mas, por exemplo, não tive nenhuma disciplina com esse tema. Quais são os desafios na formação de profissionais para a área de preservação, considerando que nem as graduações estão “dando conta” disso?

Débora: Olha, é um grande desafio. Acho que seria a base para a consolidação da área. Porque mesmo que não exista interesse em atuar como profissional de preservação, o estudante vai ter esse olhar. A conscientização é essencial, sobretudo para a preservação de obras que são nativas digitais, ou seja, filmes que são realizados totalmente no ambiente da tecnologia digital. Isso vai demandar uma postura muito mais ativa de todo mundo, seja realizador, seja cidadão. Se nós queremos preservar as nossas memórias pessoais, por exemplo, vamos precisar dessa postura ativa em relação à preservação.

Existe um levantamento de 2019 sobre a quantidade de cursos de Cinema e Audiovisual e a quantidade de disciplinas de preservação audiovisual ofertadas, e que comprova que são poucos os cursos que a oferecem. Existe uma indicação do Conselho de Educação de 2006 que prevê a obrigatoriedade das disciplinas de preservação nos cursos de Cinema. Foi uma conquista, mas na prática isso não se efetivou. A formação, portanto, é precária e escassa. O que temos visto é a oferta decursos curtos de forma esporádica. Como profissional da área, tenho ministrado cursos de curta duração que acabam tendo um alcance interessante, principalmente nos últimos dois anos, em função da oferta de cursos online. Mas, novamente, é algo pontual.

Nós, da área de preservação,  batalhamos para que disciplinas sobre preservação audiovisual sejam incorporadas. Isso é difícil no âmbito público, porque tem que mudar o organograma do curso, o que acontece de tempos em tempos, então sabemos que não é tão simples assim. Nas universidades privadas, isso pode ser feito de maneira mais rápida… Mas, acho que o que acontece é a falta de entendimento da preservação como elo integrante da cadeia de produção. Por isso que não tem nos cursos de cinema e audiovisual, entende? Como a área não é vista como um elo, não é vista como relevante a ser oferecida como disciplina. Acho que isso seria uma mudança absoluta, essencial. Como disse anteriormente, tanto para pensar no âmbito da realização voltada para o mercado, quanto, sobretudo,  para o  realizador independente. Como conseguiremos preservar as obras que estão fora do radar institucional? Ou como preservá-las quando não querem que elas estejam nas instituições?

Além disso, tem a dimensão pessoal e doméstica. Viramos criadores de conteúdo digital. Diariamente, o volume de conteúdo audiovisual que a gente cria é impressionante… O que é que vai permanecer? Vamos deixar essa escolha na mão das plataformas? Sem querer ser muito apocalíptica, mas eu vejo, num futuro muito próximo, isso sendo cobrado, sabe? Me dá calafrios ver muita gente que conheço que só salva coisa nessas plataformas de redes sociais. Porque as pessoas tem uma demanda de compartilhamento mas acabam delegando quase como uma curadoria de sua vidas e de suas memórias pessoais para essas plataformas, né?

Sabemos  que tem um nível de efemeridade grande nessas trocas. Ninguém tá falando que todo mundo vai salvar tudo, todos os momentos de interação, mas acho que tem memórias pessoais muito relevantes que se perderão se nós delegarmos isso a essas plataformas. Então, essa questão da conscientização é também para a nossa vida cotidiana. Para além de a gente ter um olhar em relação a preservação do patrimônio audiovisual.

A princípio, a preservação analógica  pode ser entendida como uma atividade que, de certa forma, remetea uma postura considerada mais passiva.Se a gente pensar em um filme em película, qualquer que seja o suporte: 35mm, 16mm, Super-8, enfim… Você faz um filme e guarda-o numa instituição, em determinados parâmetros controlados de temperatura e umidade… E “pronto, caso resolvido”, vamos dizer assim. 

O conhecimento sobre os materiais analógicos, especialmente os relacionados aos suportes fotoquímicos, é um saber consolidado. Apesar de vez ou outra ainda nos surpreendemos com deteriorações mirabolantes, esses casos são exceções.  O digital vai demandar uma postura muito mais ativa. Primeiro, porque a deterioração dele é silenciosa. Um HD, por exemplo, que muita gente tem em casa, dura, em média, de cinco a sete anos, e a qualquer momento pode sofrer danos, não rodar mais e as chances de recuperação são muito pequenas. O digital é muito absoluto em sua destruição. É muito difícil conseguir salvar uma parte. A destruição é realmente completa, você não acessa mais nada. Então, você tem que rever constantemente seus arquivos e tranferi-los periodicamente.

O que estou querendo dizer é que a preservação digital, independente do que você faça na sua vida, vai demandar uma postura mais ativa se você quiser ter os seus registros. A formação passa por aí, sabe? Não refletimos muito sobre como funciona essas plataformas de compartilhamento.A maioria das pessoas acredita que elas estão   preservando suas memórias “para sempre”. Entretanto, não tem almoço grátis. Nunca tem. Temos que ter um olhar mais cuidadoso para os nossos conteúdos audiovisuais. Seja na maneira profissional, amadora oupessoal. A formação e a conscientização perpassam tudo isso. 

Temos lacunas muito grandes. Eu fiz curso de cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) e tive a oportunidade de cursar uma disciplina de preservação. Foi a primeira turma que a teve. Isso mudou completamente o meu olhar para a área cinematográfica em geral. Acabou que comecei a trabalhar com isso, mas, na época, isso já me suscitou muitas questões, mesmo antes de me tornar uma profissional de preservação audiovisual. A falta de oferta de disciplinas sobre a área é uma lacuna grande que tem que ser batalhada politicamente, porque, como disse, na universidade pública existe um outro nível de dificuldade para conseguir incorporar disciplinas na grade curricular. Mas, ao final, apesar das dificuldades, acho que só tem ganhos para todo mundo.

Renan: Inclusive, fiquei até com medo agora! Porque, lá em Ouro Preto, eu sempre fazia uma brincadeira de que todos os meus arquivos estavam dentro da minha ecobag… E eles estavam mesmo! Guardo tudo dentro de um único HD e algumas poucas coisas no computador… Se caísse uma chuva ali, perderia tudo. E, pra piorar a situação, meu HD já tem cinco anos de vida…

Débora: Faz isso não! Você tem que salvar pelo menos em outro local, seja em outro suporte físico ou na nuvem, sem querer ser terrorista… Mas o digital exige redundância. Isso que não estou nem falando de protocolos mais complexos de preservação digital, estou colocando em um nível muito básico. Meus amigos sempre falam “ah, de novo Débora, que saco!”, mas é necessário. Porque não acontece até acontecer pela primeira vez. Já vi acontecer algumas vezes e é muito triste, né? Eu mesma já perdi arquivos, porque pensei “ah, eu vou fazer aquela viagem e não vai me acontecer nada”… Aí roubaram meu celular e eu ainda não tinha salvo parte das imagens em nenhum outro lugar. Hoje em dia, o celular é uma ferramenta essencial, pois concentra um monte de coisas importantes da nossa vida. É um cuidado que temos que ter, não temos saída.

A Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974)

Renan: Então, quanto às práticas de preservação digital, o que você recomenda?

Débora: Bom, existem iniciativas e plataformas, sobretudo em inglês, com muitas informações sobre boas práticas ara a salvaguarda de arquivos digitais, tanto para realizadores quanto para memórias pessoais. Em português, infelizmente, ainda temos pouca coisa. A ABPA – Associação Brasileira de Preservação Audiovisual – traduziu para o português o Guia para Arquivamento de Vídeo para Ativistas, da Witness – que usa o vídeo como ferramenta de pleito de direitos humanos. Eles incluem outras perspectivas por conta da natureza do ativismo através da gravação de vídeo, mas tem dicas e ferramentas muito úteis para você ter algum nível de catalogação e de preservação dos arquivos digitais. Está online, é gratuito. Está no site da Witness e poderá ser encontrado no site da ABPA, que está sendo formulado e será lançado muito em breve. 

A ABPA vem pensando em publicar um manual específico mas simplificado, porque a preservação digital, por conta dos muitos formatos, gera muitas dúvidas, o que acaba confundindo e afastando as pessoas. Então, acho que esse tipo de conhecimento tem que estar acessível, numa linguagem acessível e com ferramentas simples e gratuitas. Fui reeleita recentemente para a presidência da ABPA junto com uma diretoria muito bacana. Nós temos em mente agora, nessa nova gestão de dois anos, de conseguirmos publicar esse manual. A dica básica é ter salvo no mínimo em um outro local, tanto geograficamente quanto em termos de suporte. Em um nível bem básico, você precisa ter salvo no seu computador em sua casa e ter um HD na casa de outra pessoa. Porque também existe roubo e outros sinistros possíveis… São coisas que a gente sempre espera acontecer para tomar algum tipo de atitude. Não estamos falando em ter dois HD’s na sua própria casa. É preciso ter, efetivamente, em um outro local. É a tal redundância a que me referi anteriormente. 

Em termos de produção audiovisual, que é um volume de dados muito grande, já é outra história… Acho que as obras poderiam começar a incorporar esse olhar da preservação desde o momento da produção, sabe? Se eu for filmar em 6k, preciso pensar no volume de dados que eu vou gerar a partir dessa minha escolha tecnológica, baseada em números, parâmetros. O que vai ser importante salvar, os arquivos originais em RAW e todas os formatos de saída que confeccionarei. Seria importante pensar, além do formato indicado para exibição comercial, numa saída que incorpore  a dimensão da preservação.

Nesse ponto, essa iniciativa que está acontecendo em relação ao filme A Rainha Diaba (Antônio Carlos da Fontoura, 1974) é bem interessante. Porque é um processo de digitalização que incorporou o olhar da preservação. Fui consultora do processo e além do acompanhamento desde a escolha dos materiais e o escaneamento, também  estabeleci  algumas saídas, em termos de formatos de arquivo, indicadas para preservação. Muitas vezes, após uma digitalização, são guardados somente os arquivos digitais gerados pelo software do scanner, que, em sua maioria, são em formatos proprietários. Portanto, você não vai conseguir acessar esses formatos em outro tipo de programa, o que limita a manipulação posterior destes arquivos. Acho que é urgente que as produções audiovisuais e também os projetos de digitalização comecem a incorporar aspectos direcionados para a preservação desde o início. E isso não tem um custo muito alto. Perder custa bem mais.

Existem algumas maneiras de você fazer isso de forma ideal e com custo mais alto, quando pensamos em um planejamento maior a nível institucional, e de forma mais acessível a realizadores independentes. O primeiro ponto é incorporar esse olhar, ter essa consciência sobre a importância de preservar. Porque o custo vai ser menor, você vai conseguir acessar soluções mais baratas e mais efetivas para o seu modelo de produção. Se for uma produção que vai trabalhar com material de arquivo, então, a princípio, já existe algum tipo de sensibilidade. Mas, acho que a gente precisa ter esse olhar para todo tipo de produção. Seja uma ficção, seja uma produção que não tenha nada a ver com esse universo… Para que as perdas sejam minimizadas a longo prazo. Porque a tecnologia digital, supostamente, nem deteriora, né? O que deteriora são os suportes que carregam as informações…Você só não acessa mais e simplesmente acabou. Então, para evitarmos esse tipo de evento trágico, precisamos estar preparados a ter uma outra postura e um olhar ativo para a preservação dessas obras audiovisuais já nascidas digitalmente.

Renan: Considerando o volume significativo de obras já produzidas no Brasil, imagino que seja desafiador encontrar, selecionar e preservar um acervo tão vasto. Podemos pensar num exercício curatorial dentro desse processo de restauração? Como ele se dá?

Débora: Uau! Essa é uma pergunta complexa. Em geral, o que acontece nos projetos de restauração alavancados por arquivos é o restauro de filmes que estão em eminência de desaparecimento, ou seja, que estão em um estado de conservação muito precário e que demandam uma ação emergencial de transferência de suporte. Isso pensando num âmbito institucional. O que fazemos na restauração é transferir a obra original para um suporte saudável da maneira mais fiel possível.

Em relação à curadoria, um primeiro momento que enxergo é esse,  priorizar obras que estão em estado de conservação precário. Um outro lado sãoas obras consideradas canônicas, que acabam conseguindo angariar recursos de forma independente. O caso da restauração da filmografia dos cineastas do Cinema Novo é um exemplo. No início dos anos 2000, com a incorporação das ferramentas digitais, se iniciou uma movimentação, liderada sobretudo pelas herdeiras dos cineastas, que culminou com a restauração das obras do Glauber Rocha, do Joaquim Pedro de Andrade, do Leon Hirszman. São cineastas fundamentais, mas a preservação tem que dar conta da diversidade do patrimônio audiovisual brasileiro, que vai muito além do cânone. Logo, esse trabalho dentro das instituições é muito importante porque podemos passar a priorizar outros parâmetros.

Sabemos que a restauração nos últimos anos conseguiu criar, ainda que de forma precária, um modelo de negócio que consegue se retroalimentar. Sobretudo fora do Brasil. Existem algumas mostras e festivais dedicados a filmes restaurados, como o Cinema Ritrovato, na Itália, e o Tout la Memòire du Monde, na França. Grandes festivais também têm incorporado a exibição de restaurações: o Festival de Cannes, tem o Cannes Classics; o Festival de Berlim tem o Berlinale Classics. É ótimo que esse tipo de filme restaurado recircule. Mas, em termos de curadoria, é muito desafiador, porque tem muita coisa para ser restaurada. Por conta desse clima de instabilidade contínua e de crise quase permanente que a gente vive, as instituições não trabalham com a quantidade de recursos adequada. Há um passivo muito grande a ser restaurado e a restauração é um processo longo e bem caro. Então, é muito melhor nós preservarmos adequadamente, fazermos uma conservação preventiva. Chegar na situação de restauração seria um último passo.

No entanto, a restauração virou um commodity, digamos assim. Parece que um filme restaurado digitalmente ganha um estatuto de valor maior do que a obra original. E isso é um equívoco, porque gera essa falsa impressão de que o digital seria sempre melhor. Mas, por que o digital seria melhor? Um filme em película não nasce deteriorado. Nasce belíssimo, quando acaba de ser processado analogicamente num laboratório de maneira adequada. Nasce belo e com toda a potencialidade estética apresentada em sua melhor forma. Essa ideia da restauração, sobretudo por conta do aumento da qualidade de resolução (o 2K, o 4K), passa essa falsa noção que seria melhor do que a obra original. A restauração é um processo complexo, custoso que, infelizmente, somente algumas obras e alguns acervos conseguem acessar, seja por conta de força política ou por serem obras canônicas. O que é interessante nesse processo de seleção é priorizar aspectos que envolvam, sobretudo, o estado de conservação. Um parâmetro mais adequado para se restaurar o cinema brasileiro seria esse, mas muitas coisas são restauradas por demanda.

Foi lançada há pouco tempo a restauração de Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) em 4K. É um filme importantíssimo, um clássico absoluto, mas foi divulgado que os negativos estão em bom estado, então pensando no âmbito geral do cinema brasileiro, que está extremamente deteriorado, quais seriam as prioridades? O processo de restauração sempre prevê uma tomada de decisão, desde a escolha do título até qual versão vai ser restaurada. São decisões difíceis de serem tomadas.

Muitas vezes, por conta dessa situação precária do cinema brasileiro, nós temos acesso somente às cópias, pois os negativos dos filmes já não existem mais. Temos que lidar com muitas intempéries. É uma ação importante que demanda equilibrar todos esses aspectos. Desde o estado de conservação até qual obra seria uma prioridade ou não. Uma obra clássica do cinema brasileiro obviamente chama muito mais a atenção e tem maior possibilidade de arrecadar mais recursos para sua restauração do que um cineasta ou uma cineasta obscura. Tentamos equilibrar todos esses aspectos durante um processo de seleção, mas nem sempre é possível, vamos ter que priorizar um ou outro.

Share this content: