A circularidade do tempo de Sol Nascente: uma conversa com Adirley Queirós e Joana Pimenta | 55ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Durante a cobertura do 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Lorenna Rocha, editora-chefe e fundadora da camarescura – estudos de cinema e audiovisual, conversou com Adirley Queirós e Joana Pimenta, co-diretores de Mato Seco em Chamas (2022). Exibido em festivais como Berlinale – 72nd International Film Festival Berlin, Cinéma du Réel (2022), Toronto International Film Festival (2022), entre outros, o longa-metragem tem chamado atenção da crítica e vêm recebendo premiações significativas nos últimos meses. Apesar da parceria inédita na função de direção cinematográfica, Queirós e Pimenta trabalharam juntos anteriormente em Era Uma Vez Brasília (2017), onde a diretora portuguesa assinou a fotografia.

Em Mato Seco em Chamas, um grupo de mulheres ex-presidiárias, Chitara (Joana D’Arc Furtado), Léa (Léa Alves) e Andréia (Andréia Vieira), controla uma rede ilegal de refino e distribuição de gasolina após Chitara encontrar petróleo em um lote de terra na Ceilândia (DF). Por meio dessa trama, conhecemos as histórias lendárias das “gasolineiras da kebrada”. Em entrevista para a camarescura, a dupla de diretores compartilha detalhes sobre o processo de produção e pós-produção do longa e a construção da linguagem do filme a partir de temas como sonoridades, temporalidades e performatividades. 

Lorenna Rocha: Uma das coisas que mais chama atenção em Mato Seco em Chamas (2022) é sua dimensão sonora e musical. Os sons do maquinário, do trago do cigarro, dos fogos de artifício e, até mesmo, os monólogos protagonizados por Léa, Chitara e Andréia parecem construir uma grande orquestra. Tudo é som, né? Isso parece ser uma aposta do filme, construir uma linguagem sobre (e a partir) de Sol Nascente através do som. Nesse sentido, gostaria de ouvir vocês sobre essa possível relação entre linguagem, território e sonoridade.


Joana Pimenta: Acho que isso tem muito haver com o modelo de produção. Não fechamos uma rua para filmarmos. Não é o cinema que se impõe no Sol Nascente, ele se adapta à cidade. Nós vivemos num lugar onde as pessoas levantam muito cedo para trabalhar e que durante os finais de semana querem colocar um som, ficar na rua, fazer churrasco, né? É muito importante para nós que nosso trabalho seja visto como ofício. Mas, ao mesmo tempo, como uma outra coisa que acontece na Ceilândia. Muitas vezes, saímos para filmar aqui e não fazemos nada, porque o vizinho tá com a família em casa, o som tá alto. Perguntamos se tem como [baixar o som], se não tem como, a gente simplesmente não filma, volta todo mundo para casa, de boa. 

Devido à esse modelo de produção, acabamos ficando muito atentos ao som da cidade. Isso se tornou um elemento integral da paisagem sonora do filme. Desde o início, nós queríamos que o som guiasse a imagem. Pensávamos muito que, por exemplo, quando a gente achasse petróleo, tivéssemos o som do cavalo (máquinário) batendo. Como poderíamos criar isso? Trabalhamos com o Francisco Craesmeyer (direção de som), que fez todos os trabalhos do Adirley até agora, e com o Vitor Queiroz, assistente do Chico. O que usamos, na verdade, foi o som direto, que lutamos para fazer, para construir. Tem pouquíssimo som de arquivo adicionado na pós-produção e isso tinha um diálogo estreito com a arte e a fotografia do filme. Todas aquelas máquinas são velhas, mas funcionais. O som tinha que ser específico daquele lugar, não poderia ser algo genérico, sabe?

Pensávamos também o som em termos de performance. Que performance o filme inscreve na memória da cidade? Conversávamos sobre isso em relação à campanha da Andréia (Andréia Vieira), por exemplo. Aquela campanha do Partido do Povo Preso (PPP) existiu durante dois ou três meses no Sol Nascente. Alugamos diretório, criamos panfletos, fomos de porta em porta, fizemos outdoor. Articulamos reuniões com ex-presidiárias para tentarmos entender o que poderia ser esse possível eleitorado. E essa performance aconteceu na rua, nas vésperas das eleições, em um trio elétrico. Mas agora, de certa forma, ela já faz parte da memória da campanha política da cidade. No final das contas, isso é mais importante que o filme. Essa performance diária que acontece, entende?

As pessoas perguntam muito se a galera do Sol Nascente já viu o filme… Bom, muitos deles, viram ontem [no Festival de Brasília], né? Não há salas de cinema na Ceilândia. Projetamos filme na rua. Mas, na verdade, eles viram Mato Seco em Chamas enquanto ele estava sendo realizado. Todo mundo [em Sol Nascente] tem uma memória do filme. O que estávamos tentando construir com o som tem haver com isso. Aquela plataforma de petróleo existiu em Sol Nascente e ficou montada durante um ano. Toda noite a cidade ouvia os sons do cavalo. Então, era um som que se impunha, uma imagem que se impunha. 

Lembro que cada vez que eu tinha que viajar por conta das aulas [Joana é professora na Universidade de Harvard] ou porque precisava estar longe, ia dormir muito feliz pensando: “Caralho, a gente tem uma plataforma de petróleo funcionando na última rua de Sol Nascente!”. Era uma ideia muito maluca, mas uma aventura muito grande também. E era o som que anunciava o filme, o petróleo e o imaginário que estávamos construindo ali. Ele se impunha na cidade dessa forma. Por isso era muito importante que o som de Mato Seco em Chamas fosse o som daquele lugar, não um “som de cinema”.

Adirley Queirós: Acho muito foda o que tu falou, Joana. Essa pergunta de Lorenna me fez lembrar de uma coisa que acontecia na Ceilândia, nos anos 1980. Na década de 80, a Ceilândia era a cidade do rap, assim como São Paulo. Sempre falo que se eu tiver que ser tributário à alguém é ao rap. Meu cinema é tributário ao rap, todos meus amigos eram desse movimento. Antes de fazer cinema, eram essas músicas que eu escutava. Elas são crônicas cinematográficas incríveis, né? Na Ceilândia, existia dois grupos famosos: o Câmbio Negro, que é o primeiro grande grupo musical de rap do Distrito Federal. É o primeiro grupo a colocar guitarra, bateria, antes dessa turma toda. Ela tinha o X que é a maior entidade cultural de Ceilândia. E tinha o Dia Jamaica. 

Na época do Rock Brasília, nos anos 1990, que era feito basicamente por homens brancos (Legião Urbana, Capital Inicial), os caras que eram filhos dos embaixadores que moravam aqui… O Hermano Viana, fundador da Revista Bizz, veio tirar uma foto do Rock Brasília. Inclusive, foi essa revista que cunhou o termo “Rock Brasília”. Ele tirou a foto, se incomodou e perguntou: “Não temos nenhum cantor negro? Não tem nenhum artista negro na cidade?” Obviamente, existiam vários. E aí eles foram na Ceilândia buscar o Câmbio Negro, o X. E isso gerou um atrito lá, que fez com que se criasse as duas bandas: Câmbio Negro e Dia Jamaica. Ceilândia Norte e Ceilândia Sul. E eles começaram a guerrear. Existiam gangs do Câmbio Negro e gangs do Jamaica. Eles lançavam vinis falando um da banda do outro! Começaram a guerra entre eles fazendo vinis!

Durante muito tempo na Ceilândia, existia uma disputa de som. Só som. Se eu fosse da Ceilândia Norte e chegasse na Ceilândia Sul falavam: “Os caras da Norte estão aí”. E eles botavam o som, balançando as paredes. Lá na Norte acontecia a mesma coisa. Então, a ideia de som para mim, enquanto imaginário do território, sempre foi constituinte. “Como o som está presente? Como o som está nos espaços?” Quando íamos gravar diálogos do filme, em subjetiva, inevitavelmente tinha um negócio ligado, um som na esquina… Quando o Galeia tá falando… Acho absurdo aquele cenário que a Joana monta, a luz, o cenário, é tudo muito bonito. Mas, na parede do fundo, os caras estavam ouvindo música. Você lembra, Joana?

Joana Pimenta: Sim…

Adirley Queirós: Quando a gente coloca aquela música de Reginaldo Rossi, é porque eles estavam ouvindo Reginaldo Rossi toda hora. Então, pensamos assim: “Vamos colocar Reginaldo Rossi também, porque aí vai juntar as coisas. Ao invés de esperarmos que eles desliguem o som, vamos adaptar o som ao filme”. O som que é construído no território da cidade forma um imaginário sobre ela. A cidade é barulhenta e eu adoro esse barulho. Muleka 100 Calcinha é barulhenta e é onde me emociono. O rap é alvo, é talo. Inclusive, a gente usa uma música do rap dos anos 1990 no filme. Mas, por quê? Porque a Léa (Léa Alves) cantava essa música o tempo todo. Quem alertou para isso foi a Joana. Trouxemos a música para transformar a Léa nesse lugar poderoso. Lembro da primeira vez que a Léa [Alves] viu a montagem com essa música. Ela chorou muito e disse assim: “Caralho velho, era a música que a gente cantava na cadeia!”. Isso é muito bonito para mim.

Sobre o som dos objetos, lembro que Joana sempre falava: “cara, a gente tem que construir uma plataforma em que o atrito seja o atrito do real”. Ela brigou por esse “atrito do real”. Chegamos na pós-produção com o André e o [Daniel] Turini, e a primeira proposta que eles trouxeram, vou zoar com os meninos, mas é verdade, era uma coisa meio “Parque dos Dinossauros”, sabe? Uma coisa limpa… A gente queria som de atrito. 

O som também tinha essa função de trazer a velhice das coisas, para não idealizarmos aquele lugar, sabe? Não queríamos fazer um simulacro de petróleo. Como seria para os populares fazerem esse petróleo? Se tivesse petróleo na Ceilândia, um vizinho com certeza ia achar uma forma de fazer sair petróleo, ia inventar uma forma, furar, puxar energia. Ia extrair, não tenho dúvida disso. E isso ressignifica tanto a materialidade quanto a sonoridade [das coisas], né? O som tinha muito essa constituição também. E a cidade, enquanto estávamos filmando, era como a Joana disse, o som [do cavalo] era algo que todo mundo comentava. Entrávamos em Sol Nascente e as pessoas falavam: “Eu ouço o som, tem um som de posto de petróleo”

E os motoqueiros? O que eles gostam, na verdade, é de puxar, arrancar motor, o barato deles é o som da moto. Quando estávamos na montagem do filme, falávamos assim: “Vamos botar isso para tremer a sala [de cinema], porque é disso que eles gostam. Põe a sala para tremer, se não gostar, sai da sala.” Queríamos ouvir o som tremer, não queríamos um som educado, no sentido de uma educação cinematográfica. Nós chegamos para exibir o filme e, muitas vezes, caímos nessa conversa: “Põe no volume 6.” “Pode deixar no 8.” “Ah, mas vai estourar as caixas.” “Não vai estourar as caixas, cara. Eu tava na mixagem, não estourou lá. Vai ser alto, é diferente de estourar as caixas”. Até a briga por esse som é uma coisa muito difícil. Depois que você faz o filme, é difícil, porque a sala de cinema recusa que o filme é alto. Para eles isso é um erro, sabe? Um mal gosto. É tipo aquela coisa do forró, o cara põe a notinha e faz a performance dele. Eu acho isso lindo. Mas as pessoas veem como mau gosto. Isso me faz lembrar dos bailes que íamos, onde dançávamos e nos emocionávamos muito. Tudo isso tem a ver com a memória constitutiva da cidade.

As pessoas mais velhas, por exemplo, falam muito assim: “Olha, o que eu lembro da cidade é dos sons de martelos construindo barraco.” Todo mundo fala: “O que a gente lembra é da batida: tuf, tuf, tuf.” O som cria a imagem. Primeiro o som, depois a imagem. Nós constituímos a imagem pelo som. Em nosso caso, especificamente, também pensávamos muito numa ideia de ficção, às vezes, quase científica. E, como podemos construir, com pouco dinheiro, uma ideia de ficção científica, se não chamando o som para o primeiro plano? O som tem que enunciar uma coisa muito potente ou muito vazia. Ou um silêncio. Então, o jogo com o som era fundamental para nós.

Mato Seco em Chamas (2022)

Lorenna Rocha: Tudo no filme é performance, né? A Joana comentou um pouco sobre isso. E tudo é performance porque tudo também é som, eu acho. A câmera se mostra bem interessada em chegar junto da performance produzida pelas pessoas, objetos, máquinas. Um amigo até comentou mais cedo que a arma da Léa era como se fosse uma continuidade dela. O carro, o Brutus, meio que vira os policiais. Uma coisa de extensão, né? A sensação que tenho é que vocês parecem estar bem interessados nas coisas produzindo performance. E isso dá uma camada desejante ao filme, um tom erótico, não no sentido pornográfico ou da sexualidade, mas de afetação. Sabe essa coisa da máquina ser desejante? O carro, as mulheres, as histórias delas. E isso tem uma relação com o som, ele potencializa isso. Vocês poderiam comentar sobre?

Adirley Queirós: Você falou uma coisa massa, não tinha pensado dessa forma. O personagem do Brutus, é o próprio Brutus né? Aconteceu exatamente isso no processo do filme. Imagine nós entrarmos no filme com três personagens que são policiais. Qual o arquétipo imediato que temos dele? Tropa de Elite (José Padilha, 2007), Capitão Nascimento, né? O Brutus era uma performance pública. Nós pegávamos o carro de madrugada e andávamos por Sol Nascente. Todo mundo morria de medo, porque não avisávamos a ninguém. O carro por fora é velho, frágil. Nós que construímos ele maior. Gravamos muitos dias ali dentro e era sufocante, ficávamos com sono, não aguentávamos. Mas ficávamos rodando pela cidade. Chega um ponto em que os personagens viraram um carro. Um carro melancólico, perdido. Eles olham muito para os lados, porque o carro não dá seta, de repente não funciona. Acaba a gasolina e tem que empurrar o carro. Então, começa a se criar uma fragilidade em torno dessa performance toda. E essa fragilidade para mim é o que dá vida àqueles personagens. Se não aquilo tudo não era nada, era uma besteira, uma piadinha sem gosto de nada. A performance é como se fosse uma arma para nós, ela cria uma possibilidade, porque ela nos obriga a ir ao corpo-à-corpo. Performance é corpo-à-corpo. 

Quando a Andréia [Vieira] vai fazer a campanha do PPP é uma performance corpo-à-corpo. Lembro que esse dia era um dia antes da eleição do segundo turno [de 2018]. Não sei se você sabe, mas Sol Nascente é a cidade de Michelle Bolsonaro. Ela nasceu lá. Essa é a nossa grande contradição: a Michelle Bolsonaro é uma mulher de quebrada. Eu sempre falo que se ela não fosse bolsonarista, votaria nela. Ela é de Sol Nascente, uma mulher de quebrada, três gerações de quebrada. A avó era gangster, a mãe era meio mala. Ela é maloqueira igual a Léa, igual às meninas [Chitara e Andréia], igual uma certa geração que participei. A gente ia armado para os bailes, era um outro tempo, outra geração. Nós estamos filmando num espaço de disputa evangélica. Que é diferente do povo evangélico, né? As meninas [Léa, Joana D’Arc, Andréia, Débora] são todas evangélicas. A gente liga para elas e estão sempre no culto. 

Quando fazemos aquela performance lá [da campanha da Andréia], com os motoboys indo na contramão, fazendo uma motociata. Antes do Bolsonaro… Cara, como é que o Lula não pensou nisso?! Como é que o cara não enxerga que os motoboys é a trupe do proletariado? Os caras que mais sofrem nesse país. Se um dia quisermos achar uma pessoa para abraçar em relação às questões trabalhistas, é esses caras, porra. Eles são os cavaleiros contemporâneos. Trabalham na vida louca, sem nenhum direito trabalhista, difícil para caramba. Quando propomos a performance para eles, foi incrível. Eles rodavam a moto, tinha uma câmera na frente, eles nem sabiam quem a gente era. Nós paramos o trânsito, na contramão, e os caras piraram. Eles pareciam Dom Quixote, alucinaram. Lembro que as pessoas sempre falam: “Eu já vi esse filme na cidade”. Mas eles não viram o filme lá ainda. O que eles viram foi a performance e montaram um filme na cabeça, que provavelmente é muito melhor que o nosso. 

Você falou isso da performance. O Brutus é uma performance. Ter uma máquina funcionando dentro de um lote é uma performance. É uma instalação. Aquele lote era uma instalação. As pessoas olhavam de longe e diziam: “O que é que é isso?”. Era uma coisa super estranha. Então, acredito que essa ideia de performance contribui para que o ator e a atriz acreditem que é possível fazer tudo isso que estão fazendo. Antes dele ensaiar, ele [o ator] vai ter que mexer com aquilo lá. Por exemplo, a Andréia tinha que saber cantar com a Débora, para a performance da campanha. Mas, antes de fazer aquele momento, elas são de verdade do rap. Andréia é uma dançarina absurda, maravilhosa. O nome da Débora é Débora Glamurosa, ela é do funk. Ou seja, antes de tudo isso, esse corpo performático já existia.

Para termos aquela instalação lá [do cavalo], que demorou muito tempo para fazer, gerou todo um conflito. E isso é massa, porque não é só a arte que tá lá, nem a só a foto, nem só a direção. Nosso desejo era criar uma performance das autorias coletivas do filme, para que tudo isso pudesse existir. A gente falava muito assim: “Qual o objeto com que a gente pode gastar [dinheiro]?” Então, vamos pegar esse objeto que custou muito dinheiro para fazer e criar tudo que pudermos com ele. Não podemos montar um cenário desse tamanho para fazer um plano, com esse tanto de dinheiro gasto. Então tudo isso contribuiu, sabe?

Essa conversa me fez pensar numa outra coisa. Como a direita capturou nossa performance, né? Eles ganharam a eleição por isso, na minha teoria. Nos tínhamos uma performance, enquanto pessoas que se diziam progressistas, né? Eles pegaram isso e agora dizem que o “nosso lugar é na rua”. Isso para criar elementos fantásticos… A direita faz isso…

Lorenna Rocha: A direita é performática, né?

Adirley Queirós: Mas ela tornou-se performática após o golpe da Dilma [Rousseff]. O que quero dizer é que a performance serve para os dois lados. Quando a performance perde a vergonha de ser cínica, ela é muito poderosa. E é isso que a direita faz. Ela perdeu o medo de ser cínica, não aceita mais a gramática de acusação. Nós recuamos nessa guerra performática, mas nós deveríamos encará-la. Os corpos, dentro do arcabouço performático, eles sempre vão ser diferentes, né? Ainda que um corpo periférico tente imitar uma performance [hegemônica], já é outra coisa. Que nem você falou [no debate do Festival de Brasília, sobre a sequência das presidiárias no ônibus], tem a musicalidade, o desemprego, né? Para mim, o desemprego muda tudo.

Por exemplo, os motoqueiros iam para aquela cena lá porque, obviamente, eles ganhavam um cachê. Depois iam pelo cinema. Não podemos idealizar que eles iam pelo cinema. Eles curtiam muito, mas estavam trabalhando. As meninas perguntaram na cena do ônibus: “Cara, posso mesmo fazer isso?” “Pode, é cinema.” “Esse dinheiro é o mais fácil que ganhei, porque eu trabalho dançando, entendeu?”. E é isso, é um trabalho, e nós desejamos que essas pessoas tragam o que há o melhor delas para nós, que é a performance do motoboy, dar cavalos de pau, circular de um lado para o outro. E são essas coisas que eles [os motoboys] transformam em conversas cotidianas. Na esquina, eles não vão falar de trabalho. As histórias de uma viagem de ida e volta são fantásticas, é Dom Quixote, vai e volta. Isso é performance, sabe? E acho que assimilamos isso no filme.

Joana Pimenta: A câmera também está muito por aí, nessa questão da performance. Quando escolhemos as pessoas com quem vamos trabalhar, nós a escolhemos porque temos uma grande curiosidade, um grande interesse em saber mais sobre elas. Talvez mais do que elas estarem ou não próximas do papel ou arquétipo que construímos, sabe? Porque filmamos sem roteiro, né? Então, escolhemos pessoas com quem nós queremos viver durante 18 meses. Com quem a gente acha que vamos estar muito interessados naquilo que elas têm para dizer. Então, essa curiosidade, a performance dessa curiosidade, do encontro da câmera e do corpo da atriz, torna-se essencial. Muitas vezes nós não sabemos o que elas vão falar, nem para onde vão se mexer. Nosso trabalho de direção e de direção de fotografia é quase fazer performance ao vivo, de tentar achar um encontro com elas. É um jogo, uma dança.

Por isso acho também que quando a gente faz o trabalho de seleção das atrizes, pode até demorar muito, mas é imediato. Procuramos a personagem de Chitara (Joana D’Arc Furtado) durante seis meses. Mas quando conversamos com a Chitara, foi tudo muito imediato. A sensação era que nós queríamos saber tudo sobre ela. Queria ficar vendo ela durante anos da minha vida. Acabamos Mato Seco em Chamas e já queremos fazer um outro filme com a Joana D’Arc, sabe? Tem muito isso. 

Essa relação da câmera, não tem nada assim de tentar pensar muito… Nós temos o rigor dos enquadramentos, batalhamos muito por eles. O rigor da luz, ainda que seja bem simples, nós temos muito tempo para trabalhar. Acho que somos muito rigorosos naquilo que fazemos. Então, acaba por ser uma construção muito detalhada, as texturas, de pensar a luz. De trabalhar muito, sentar com elas, e dizer: “Imagina o seguinte: se você quiser andar deste lugar para aqui não vai ter luz nenhuma, você vai chegar completamente no escuro. Mas se você quiser voltar para cá, aqui tem luz.” Então, vamos tentando entender muito desse espaço. Quando a gente diz “ação!”, tá tudo aberto.

Acho que essa energia de ninguém saber o que vai acontecer… Um exemplo: o primeiro plano que filmamos com a Léa, que tá no filme, é um plano até meio fora de foco, nem deveria estar no filme [risos], mas ele é muito importante para nós. Porque, durante meses, nós ouvimos a Chitara e a Andréia falarem sobre a Léa. E a Léa estava presa, né? Aí, de repente, do nada, ela volta para Ceilândia. Duas semanas depois nós estávamos filmando juntos. Lembro como eu e o Adirley estávamos muito impressionados. Você viu a Léa, né, ela é uma realeza, um assombro. Então, quando ela entra e começamos a falar com ela… Léa estava muito intimidada, obviamente, porque havia acabado de sair da prisão, entrou numa realidade que não tinha nada a ver com a que ela havia deixado sete anos antes. E ainda estava fazendo um filme. Então, ficávamos com muito cuidado, tentando encontrar um lugar para começarmos a trabalhar com ela. Nesse primeiro plano, eu não conseguia antecipar nada, porque a Léa para mim é uma aparição. Não conseguia antecipar absolutamente nada, como ela se mexeria. A câmera está perdida ali. Para nós, era muito importante mantermos esse “erro” na montagem final. É uma câmera e uma direção completamente perdida. Porque, de repente, alguém se impõe de uma maneira determinante no filme.

Nesses primeiros dias, ficávamos muito cuidadosos com a Léa, a cabeça dela estava uma confusão grande. Pensávamos: “Vamos fazer tudo com calma, se ela não tiver afim, a gente não filma.” Quando falávamos “corta!” a Léa sumia. A gente achava ela do outro lado da rua… E eu falava “Oh Léa, bora fazer mais um plano…” E ela: “Bora, vamo.” Só que rapidinho ela sumia de novo. Ficávamos muito curiosos para tentar entender o que estava acontecendo. Um dia fui falar com ela: “Léa, desculpa, no cinema, às vezes, repetimos muito as coisas, se fala a mesma coisa muitas vezes, é um saco.” E ela me respondeu: “Não, Joana, eu entendo completamente. Lá na cadeia, quando ficamos muito tempo dentro, há muita gente que entra, que vai e volta, né? Não são sempre as mesmas pessoas que ficam muito tempo presas. Não é sempre o mesmo grupo que está com a gente. Então, você tem que contar a mesma história, muitas vezes, porque se você perde a emoção de contar a história, você perde a voz de comando. Então, temos que contar sempre a história, com a mesma emoção, como se fosse pela primeira vez.” 

Acho que é isso, é achar esse lugar de performance conjunta.

Adirley Queirós:
Essa história é incrível.

Joana Pimenta: É… Acho que essa performance que acontece é uma junção entre a imagem, a cidade, o corpo. Tudo ali, todo mundo está tentando achar o que fazer entre o ação e o corta. É quase, não sei… Gosto muito daquele momento em que a gente começa a filmar, porque é uma tensão muito grande, né? Você esquece do mundo. Estás ali, né? E esse sentimento está presente no filme. Acho que é isso que buscamos construir.

Léa Alves e Joana D’Arc Furtado em Mato Seco em Chamas (2022)

Lorenna Rocha: A narrativa do filme é marcada pela não-linearidade e isso ganha destaque na trajetória da personagem Léa. É como se houvesse um movimento pendular (ou espiralar) entre encarceramento e liberdade, prisão e rua. Esse passeio entre as temporalidades de Mato Seco em Chamas se dá, entre outras coisas, pela montagem. Como foi trabalhar com a Cristina Amaral? Como se deu a construção desses tempos?

Joana Pimenta: Cristina [Amaral] é maravilhosa. Mais do que tudo, ela é uma das pessoas mais humanas que já conheci na vida. Nós passávamos muito tempo com ela, conversando, não necessariamente sobre o filme, mas de um monte de outras coisas. Lembro que… [risos] Eu sou muito mais ansiosa que Cristina e Adirley… Então, eu ficava: “E o filme?” E ela respondia: “O filme vai aparecer…” “Sim, pelo amor de Deus, mas quando é que esse filme aparece?” [risos] Ficávamos dias em São Paulo, antes da COVID-19, e muitas vezes não olhávamos um plano! Era só conversando. Aí, falávamos um monte de coisa, ficava tarde, todo mundo ficava cansado e dizíamos: “Vamos para casa, não sei o quê, amanhã retomamos”.

Com a pandemia, ficamos montando em três lugares diferentes, sem poder nos encontrarmos, montando à distância. No entanto, acho que esse momento inicial foi incrivelmente importante para a construção do filme. Não acho que esse tempo se dá nesse movimento pendular, nem de uma espiral. Mas conversávamos muito sobre o tempo circular que existe em Sol Nascente. Você está num lugar onde a maior parte das pessoas ou esteve presa ou tem um familiar direto na prisão. Uma mãe, um filho ou alguém mais próximo. Alguém que essas pessoas vão visitar. Então, a prisão é a maior instituição do Sol Nascente. É aquilo que determina a vida da cidade. A que horas as pessoas têm que levantar para pegar o ônibus, para chegar na Papuda ou na Colméia. “Que horas é a visita?” “O Bolsonaro vai terminar com a visita, como é que fica?” Todas as conversas giram em volta disso.

Uma outra coisa é que as conversas giram entre quem está lá [na prisão] e quem está aqui [em Sol Nascente], né? Isso também determina o tempo de viver a cidade e o tempo de contar as histórias. Porque uma história começa na rua, continua na prisão, volta para a rua. As histórias estão sempre… Alguém estava aqui ontem, mas já não está mais. Existe uma política de encarceramento nas periferias brasileiras, onde pessoas são presas sistematicamente. Sempre muita gente, de repente, se torna ausente. Nós queríamos muito que o tempo de narração do filme, o tempo de montagem, fosse circular. 

Nós não vivemos esse tempo linear, com início, meio e fim. A história é interrompida, vai e volta. A Léa ouviu falar do filme pela primeira vez quando estava dentro da prisão. Tinha uma personagem, que não tá na montagem final, a Karen, que trabalhava no [regime] semiaberto. Conseguimos filmar com ela para a campanha da Andréia, Karen era uma espécie de cabo eleitoral. Mas, ela teve uns problemas e teve que voltar para o regime fechado, não conseguimos continuar com ela no filme. Karen trabalhava de manhã com a gente e, quando voltava para prisão, falava tudo para Léa. Lá dentro, a Léa ouviu que a irmã dela estava fazendo um filme e ouviu as histórias dos dias de filmagem. Então, foi de lá que ela começou a significar essa história.

Quando a Léa sai, ela já sabia de tudo. “Minha irmã tem um negócio, eu vou ajudar ela, vou fazer a segurança dela.” A conversa com Cristina [Amaral], sobretudo, era essa: “Como achamos um lugar para fazer um filme em que a personagem está e depois ela está presa e já não está mais? Como queremos construir isso?” Como fazer uma montagem com uma série de coisas que não se completam? Durante a pandemia entendemos que essa era a estrutura do filme. Porque a vida é assim. Tudo que a gente vive é assim. Mato Seco em Chamas tinha que refletir isso de alguma forma. Ao invés de tentarmos achar uma justificativa para a personagem que não estava mais – ela saiu porque saiu, porque é assim que a gente vive o dia-a-dia. Muito legal essa sua pergunta, porque procuramos muito por isso e acho que não há muita gente conversando sobre. O tempo do encarceramento também é o tempo do filme.

Adirley Queirós: Cristina é uma diva, né? Para mim, Cristina e Paula Gaitán são as duas maiores cineastas brasileiras vivas, sabe? Às vezes, a gente não percebe o poder e a influência que o montador tem sobre o filme todo. Como Joana falou, Cristina não é só montadora. Ela é uma amiga, uma pessoa que tem a memória do cinema brasileiro, que tem a memória de vida. Ela é a maior para mim. Gosto de estar perto da Cristina. Ouço ela. E esse era um debate de Cristina e Joana. Eu estava como espectador nesse assunto durante muito tempo. Elas traziam essa questão do tempo de maneira prática, tinha uma proposta.

Como Joana explicou, talvez na época eu não pensasse isso de forma tão racional, mas ouvindo a Joana falar, lembro que, lá no início, ela ficava comentando sobre essas coisas de sair e entrar. Como poderíamos impor ao filme um início, meio e fim, se a vida dessas pessoas não é assim? Estar na cadeia, por mais triste que seja, não é estar ausente da vida. É estar presente na vida, só que encarcerado. Parece que a gente quer negar que essa história, que essa política de encarceramento do povo preto, periférico e pobre, existe, né? Não devemos negar as histórias da Léa. É trazer as histórias dela para contar que somos oprimidos. Não é querer regenerar a pessoa… O cinema tem muito disso, né? Cara, eu queria ser a Léa em muitos sentidos, sabe? Léa para mim é uma diva. Queria ser poderoso, lindo, performático, ter aquele cabelão que parece um manto sagrado. As coisas que a Léa tem são performáticas. As roupas dela são performáticas. Não foi a gente quem inventou isso.

A influência que Léa tem sobre os homens é algo inacreditável. Porque, por onde ela passa, as pessoas dão um passo atrás, porque não conseguem ler ela. Léa não está numa chave de leitura tão rápida. Demora-se a ler a performance dela, do corpo dela. Ela é a própria circularidade, porque ela mesma confunde nossa cabeça. A todo momento ela confundia a gente. Por exemplo, tem uma cena que acho linda. Que é quando ela está cantando uma música gospel super bonita e com uma arma na mão. Ela manipula a arma, cantando gospel, aquela arma é de verdade. Isso é uma guerra santa. Ela não tá pensando o que fazer, de fazer uma coisa depois a outra. Não tem peso na história dela. Ela está no mundo circular total. É natural para ela cantar uma música evangélica e segurar uma arma. É a vida dela. É realmente natural ela olhar para a irmã dela, com o maior carinho do mundo, olhar para mim… 

Essa coisa do erótico. Eu concordo contigo, Mato Seco em Chamas é extremamente erótico. Dos filmes que fiz, esse é o mais erótico disparado. Eu ficava com tesão com o filme. As mulheres são super bonitas, elas atuando, o corpo é muito bonito. Eu sou um homem olhando para a câmera. O filme é muito erótico porque a dramaticidade dele se impõe, sabe? Não é uma relação imediata com a exploração da sexualidade ou do pornográfico. É uma eroticidade que passa no lugar de dizer: “Meu corpo é muito foda, e respeite mesmo, porque ele é muito foda.” Isso para mim sempre esteve no filme. 

Não queríamos fazer um filme com a premissa do empoderamento. Nos primeiros roteiros, a personagem Chitara chamava-se Pantera. Essa coisa “clássica” de querer empoderar. Mas, depois… Chitara vem de onde? Dos Thundercats, pô! A Chitara [Joana D’Arc Furtado], quando era pequena, na roda de capoeira, era chamada de Chitara. Essa coincidência, muito espiritual, apareceu. Chitara e Léa propõem esse jogo da roda também, sabe? Porque, apesar de serem irmãs, elas se reencontraram no filme. Mato Seco em Chamas produz um elemento que é criar um mundo em que elas possam existir, que as lendas delas, que não são de derrota, possam existir. 

O povo periférico quando tem 40, 50 anos, tem muito isso de esconder suas histórias, porque elas são sempre associadas a maloqueiros, puta, a tudo que é visto como pejorativo, não o contrário. O filme propõe que essas histórias que vão ser contadas por elas não sejam histórias de derrotadas. São lendas. Vocês [Léa, Andréia e Chitara] são lendas do cinema brasileiro, do cinema mundial. Os arquétipos estão preparados e, quando o cinema joga com eles, quando elas se empoderam desse lugar da performance, da musicalidade e da circularidade, elas se tornam poderosíssimas. O empoderamento aqui é no sentido de dizer: “Essa historia é minha, sou dona dessa história, eu sei a lenda que existia nos anos 1980. Eu sei como vivi a cadeira. E a cadeia, apesar de ser pesada, a gente só sobrevive nela contanto e recontando nossas aventuras, entendeu?”.

Dando uma volta na questão da política: Como é que Bolsonaro consegue capturar todo o nosso imaginário em relação às armas, ao corpo erótico, à uma certa violência, que na realidade, também precisamos dela, né? O velho testamento contra o novo testamento. Bolsonaro é o Isaías, o homem fálico da espada. Lá atrás, o Lula era a Teologia da Libertação. Como que esse contrapontos vão se colocando sempre? O contraponto existe no mesmo lugar. Então, como que vamos simplesmente falar que arma é ruim, no sentido simbólico, do imaginário, para uma geração dos anos 1980? Todos tinham armas. Eu tinha uma arma. Vamos esperar essas pessoas morrerem? Hoje em dia a gente quer isso também, né? Essas pessoas já viraram dissidentes, dentro de uma ideia de política. Mesmo sendo os corpos que mais sofreram opressão, para a ala progressista, são corpos dissidentes, porque são “maloqueiras”, “gostam de armas”, “são eróticas do funk”, porque elas ressignificam uma música [menção à Helicóptero, de Mc Guuga e Dj Pierre] que está tocando. Mas isso também gera um conflito, né? Nós queríamos provocar isso, né, Joana?

Joana Pimenta: Sim…

Mato Seco em Chamas (2022)

Adirley Queirós: Nós falávamos muito sobre isso. Nós somos isso, mas em conjunto com as meninas. Elas se amarram nisso, eu me amarro nisso. “Tá legal? Tá confortável? É assim que vai rolar?” As músicas são elas quem propõem, sempre. As roupas são propostas delas. Não idealizamos roupa para personagem, só se for uma ficção científica clássica. A Andréia Vieira é uma diva, a mulher com mais personalidade que conheço. Ela vai de shortinho para o culto. Ela tem uma figurinista, sempre teve.

Joana Pimenta: Piriguete Fitness!

Adirley Queirós: Tinha uma cena com a Piriguete Fitness, ela fazendo a roupa da Andréia, super erótico isso, né? 

Lorenna Rocha: Libera esse corte…

Joana Pimenta: Era muito lindo…

Adirley Queirós: Super bonito. Ela pega a roupa, a Andréia mostra a bunda e diz: “A minha bunda tem que ficar maior, não menor!”. É super lindo, ela quebra tudo. Essa cena provocaria, né? Mas ela quem inventou esse nome [Piriguete Fitness]. Tudo isso tem conflito e é muito massa para refletirmos sobre o filme que estamos fazendo. A ideia não é fazer um filme que fique isento das discussões, tampouco isento das críticas. O desejo é que nós coparticipemos da crítica. Para mim, em termos de cinema, a gente só vai conseguir “ir para cima” se, de fato, assumirmos as contradições que há entre o discurso e a prática cinematográfica.

O cinema não é maior que a antropologia, a filosofia, mas também não é menor. É um outro mecanismo para provocarmos reflexão. Então, se entramos tributários a tudo, não há cinema, há cartilha, e isso é diferente. Mesmo sendo uma cartilha progressista. Não existe política sem o politicamente correto, porque ele é uma arma que temos para criar políticas públicas. Se a gente não cria identidades, não cria grupos identitários e não vai disputar a esfera política, estamos lascados. Mas, o cinema, acho que é um pouco diferente. Ele é um lugar, inclusive, de irmos em conflito com os nossos, politicamente falando. “Gente, eu tô com vocês lá no partido, me inscrevo no partido, vou fazer campanha na rua, eu vou pra rua com bandeira, mas meus filmes não vão ser assim, desculpa.” Acho que o cinema tem esse poder. 

Quando você chama atenção para os corpos… Nós provocávamos esse lugar da dinâmica. Quer dizer, “provocávamos”, porque nós não sabíamos disso. A gente não sabe. No momento, desconfiávamos que existia uma tensão ali no ar. Desconfiávamos que aquilo lá poderia ser pesado. Desconfiávamos que, ao mesmo tempo que era pesado, acabavam [as filmagens], e a gente curtia. Dançávamos juntos, curtíamos juntos. Então, por quê é tão pesado assim, se todo mundo, de certa forma, também gosta disso, que é a nossa memória? Não estou aliviando os conflitos. Como é que pode ser evangélica e ao mesmo tempo gostar de arma e da putaria do funk? Acho muito bonito. Porque para mim essa é a gramática de um certo povo periférico.

Mas, muitas vezes, a gente que tem acesso à Universidade, às políticas públicas, faz um papel de moralidade para periferia: “Ah, não pode ser assim. Ouve isso, vê isso, não pode falar essa palavra, fala essa palavra.” Nós queríamos negar esse papel, queríamos voltar para uma certa tosquidão, deixar esses códigos moralizantes de lado. “E se a gente entrasse no jogo com o cinema, não para moralizar, mas com a nossa própria regra gramatical?” Esse cinema não depende do outro país, desses códigos, nós somos o país. Era uma teoria que tínhamos e tentávamos jogar isso no filme.

Nota da editoria: Joana Pimenta precisou sair da entrevista por questão de agenda e decidimos coletivamente por continuar a conversa com Adirley Queirós.

Lorenna Rocha: Adirley, você falou no debate da sessão, após a exibição do filme no Festival de Brasília, e retomou agora, que existia um desejo por trabalhar com a linguagem e comentou sobre a reformulação da frase “O petróleo é nosso” para “O petróleo é nóis”. O entrave de Mato Seco em Chamas, de alguma forma, se dá distante do âmbito partidário, mas apresenta uma reelaboração da própria ideia de instituição, é tipo um contra-ataque armado para essas arquiteturas. Parece haver um desejo por autogestão, uma aposta nisso. Isso se manifesta na assembleia dos motoqueiros com as gasolineiras, a própria Chitara como uma líder comunitária. As periferias do Brasil, de várias formas, fazem isso, né? Se autogovernam, seja para se protegerem da polícia, seja para garantir acesso a direitos básicos. Fico com a sensação que há uma tensão entre institucionalidade e autogovernabilidade bem expressa no filme. Poderia comentar sobre isso para finalizarmos a entrevista?

Adirley Queirós: A premissa do filme era essa: as meninas acham petróleo, declaram guerra e sugerem uma independência do Brasil. Queríamos nos livrar do Brasil, de uma ideia de nação. Acho que isso que você trouxe está muito presente mesmo, o filme é todo isso. O papel imediato ali se confunde com uma ideia trabalhista, mas também com questões de negociação, do comercial, porque eles querem lucrar com aquilo, né? Bom, o cinema é um modelo de produção para mim. Se você vê o modelo de produção, você vê o reflexo dele no filme.

O cinema nada mais é do que opções de como você vai governar um filme, como vai produzí-lo. Nós fazemos filmes na Ceilândia apartados de Brasília há mais de 15 anos. Fomos obrigados a fazer assim no começo, porque nós não existíamos enquanto cinema para eles. A gente era tudo coitado, né? “Os coitados de Ceilândia”. Depois a gente sacou que isso, na verdade, era nossa força. Não precisávamos conversar com essas pessoas. Elas nunca iam ceder ao nosso pensamento, porque estávamos propondo outra coisa. Não queríamos ser igual, nem fazer escolinha com eles.

Quando começamos a fazer os filmes, nos ligamos nessa história de ter que fazer todo o processo, de dominar os meios de produção. Como que faz a elétrica de um filme? A gente não sabia. Mesmo que a elétrica, dentro do cinema, tenha uma hierarquia muito abaixo, os operários olhavam para gente com muito preconceito. Porque não somos o metiê do cinema, entende? Ele é sedutor, né? Trinta pessoas em set, só gente bonita… Nós fazemos filme com poucas pessoas. Esse charme acaba em meia hora, porque estamos trabalhando. Todo mundo é muito alucinado, ninguém fala com ninguém. Só no final do dia. Denise Vieira (direção de arte) nunca me perguntou como vou filmar alguma coisa. Ela sabe que vamos filmar aquilo lá. O objeto que ela constrói pode até ser outro, mas vamos filmar a partir do que existiu. Não é uma idealização da parada. “Ah, Denise, não tem isso?” Não vamos falar isso. Porque se não tem é porque o dinheiro não deu ou não funcionou.

Essa gestão que a gente fez do próprio ato de fazer cinema também está na proposta do filme. É essa coisa, de uma linguagem mais marxista, de dominar os meios de produção: “Como é que faríamos a nossa tecnologia se descobríssemos petróleo?” Desde sempre a gente inventa as coisas, né? Quando falamos para Chitara que ela é “A Rainha da Quebrada”, que ela quem manda, domina, quem abastece e dá as ordens… A gente queria construir a nossa empresa estatal da Ceilândia, entendeu? Montar nossa própria empresa, não era para assimilarmos uma empresa que já existe.

Nós fizemos um outdoor, que queima no final do filme, e ele ficou na cidade durante um ano, gerando várias conversas. Ele ficou um ano parado lá e as pessoas perguntavam onde poderiam comprar aquele petróleo. Fizemos cenas na feira livre (caíram nos cortes finais), onde vendíamos gasolina e muita gente comprou. Tudo isso da autogestão que estamos falando não tem a ver só com os objetos ou com o dinheiro, é também algo do campo simbólico: “Eu posso me autogovernar. Posso fazer minha empresa, disputar esse espaço. Também posso ser chefe. Eu não quero ser só empregado numa vida. Eu quero também ter o direito de ter autonomia sobre as minhas coisas.”

Lembro quando fomos para o primeiro debate sobre o filme e nos perguntaram por quê nós estávamos falando do petróleo e não da água. Perverso, né? Vocês fuderam a água todinha… É muito perverso dizer que estamos estragando a água, né? O petróleo é ruim agora porque tiraram o pré-sal da gente. Se ainda fosse uma política de estado, se o pré-sal fosse importante, seria didático nas escolas. Nós podemos ressignificar esse lugar. Tem muito a ver com o imaginário, sabe? Como o imaginário pode reconstruir e recondicionar esses lugares? No cinema, isso pode ter muito mais potência. Porque quando você recondiciona esses lugares, você cria objetos que são objetos vivos, entendeu? O próprio cavalo é um objeto vivo. Ele virou um símbolo da cidade. As pessoas passaram madrugadas indo ver o cavalo e tirar fotos.

Lorenna Rocha: Essa comparação entre petróleo e água… Acho que isso é um reflexo de uma busca pela realidade no filme, talvez porque essas pessoas são da periferia, né? Claro que existe uma camada documental no que vocês estão fazendo, até porque o trabalho se propõe a isso. Mas essa coisa da inventividade, de criar memória para uma cidade através do cinema, de uma lenda protagonizada por essas mulheres para Sol Nascente, sabe? A questão da água parece estar na leitura do que se entende como “urgente”. Nesse sentido, parece não haver espaço para ressignificação, criação em cima das coisas. Isso tem a ver com a captura dos imaginários também e, no limite, do que desejamos ver nas telas de cinema…

Adirley Queirós: Nessa discussão progressista, parece que a periferia tem que ser sempre reeducada, sabe? É uma reeducação sobre ela. Eu não concordo nenhum pouquinho com isso. Os nossos corpos causam estranhamento. Mas não devemos assimilar essa ideia de reeducação, temos que nos apropriar de nossas lendas. Não é ouvir um pensamento que vem de fora. Mesmo que esse pensamento de fora venha de um corpo oprimido, quando vira instituição, ele se torna opressor. Porque isso cria uma camada muito forte de desejos. Estamos sempre nos sentindo culpados por “falar errado”, “falar gíria”, porque estamos bebendo na rua ou porque faltamos trabalho. Como o Lincoln [Péricles] fala, né, trabalhar é que cansa.

O corpo periférico sempre está entre. Entre o que o progressismo entende como mundo ideal e o que o mercado acha que é o fim do mundo. O arcabouço gramatical que temos que reconstruir é justamente essa disputa do entre. Lembro que nas eleições [de 2022], as pessoas falavam que íamos estar muitos pontos a frente do Bolsonaro. E eu falava: “Como assim? Na minha rua, eu só vejo bolsonarista. Não é possível que a gente tá num mundo tão diferente assim.” [Os progressistas] são tão preconceituosos que continuam achando que a população evangélica brasileira é só 20%, por conta do censo de 2010. Vai sair o novo censo e esse número, no mínimo, será de 40%.

Essa discussão progressista deixa um vácuo identitário que é muito foda. Participei da disputa identitária no cinema há muito tempo. Em 2005, contribui para uma ideia de “cinema periférico”. Não tô criticando a ideia de ter uma identidade nesse sentido. Mas, acho que deveríamos fazer uma autorreflexão. Porque, ao mesmo tempo que nossas identidades são vanguardas, elas criam uma retaguarda muito poderosa. As pessoas que são nossas amigas, que são nossos parentes, não estão com a gente. Somos privilegiados em muitos sentidos. Poucos estão na universidade ou são cineastas. Poucos são aqueles que conseguem um relativo sucesso. Aquelas que não conseguem, como lidamos com isso? Ou você acha que elas simplesmente estão achando que tu é massa? Não pô, elas também estão angustiadas, desejosas. Estão entendendo porque você faz, porque você não faz.

Se não houver diálogo com esse lugar, ele vai ser capturado obviamente por acesso à direita, porque a direita promete isso para as pessoas. O que a direita promete hoje para o homem pardo ou o homem branco periférico? O que a direita promete pra minha geração? É uma alucinação total, mas dizem: “Vocês são oprimidos, vocês são homens, precisam provar sua masculinidade”. É uma promessa muito sedutora para um homem de 40 anos, porque ele está num vácuo de identidade. Ele não é um homem intelectual, branco, de direita, que pode viver num mundo codificado. Por mais que seja escroto, racista, não é… Penso que isso também vira política. 

Às vezes, no cinema, nós perdemos o tato de lidar com esse lugar. Tínhamos que pensar bem assim: Como essas questões podem ser colocadas, sem ser algo reacionário? “Como assim vocês estão oprimidos? Tá brincando com a minha cara que um homem branco é oprimido, sabe?” Mas esses pardos, homens e mulheres pardas de periferia, que são muitos também, estão neste momento vivendo um vácuo identitário. Se a gente vacilar, acho que vamos criar mais e mais gerações de extrema direita. Porque é o único lugar que eles tem pra se defender. É a narrativa que assimila o corpo deles, mesmo se eles não gostarem. Acho que é importante olharmos que, quando a gente fala de “filme periférico”, são filmes contraditórios. Os filmes do Lincoln [Péricles] tem isso, do André Novais [Oliveira], do Affonso [Uchôa], eles colocam a contradição.

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