Improvisação como disponibilidade para estar junto: uma conversa com João Dumans e Viviane Ferreira | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, As Linhas da Minha Mão (2023), de João Dumans, é um filme que reúne sentimentos, sensações e estados de presença contrastantes como vulnerabilidade e confiança, estaticidade e mutabilidade, silêncio e barulho, documental e ficcional, improvisação e atuação. Viviane Ferreira, carinhosamente chamada de Vivi ou Viva, protagoniza o longa do diretor mineiro, compartilhando suas memórias, sua arte e sua lida cotidiana com transtornos psíquicos. 

Entre a mulher-atriz, mulher-feminilidade, mulher-paciente, mulher-amiga, mulher-performer, encontramos um retrato generoso e cocriado entre Dumans e Ferreira, onde a temática da loucura e da saúde mental é menos um ponto de partida para a criação de um filme, do que uma fenda que torna possível o encontro entre diretor e mulher-personagem. Na conversa realizada pela editora-chefe da camarescura, Lorenna Rocha, João Dumans e Viviane Ferreira compartilham sobre os processos de criação de As Linhas da Minha Mão e percepções em torno de questões que tangenciam o filme, como o envelhecimento, a juventude, a encenação e a improvisação.

Nota da editoria: Apesar da entrevista ter sido marcada com diretor e atriz, Viviane Ferreira só pode chegar um pouco depois ao nosso encontro. Sendo assim, a conversa que se segue iniciou-se com João Dumans e, posteriormente, contou com a presença de Vivi. Algumas perguntas foram repetidas e direcionadas à ela e outras, devido à configuração inicial, foram mantidas apenas para o diretor. O que você encontrará a seguir é um material que contou com algumas bricolagens para garantir fluidez à leitura e preservar a perspectiva de ambos em relação às questões apresentadas pela entrevistadora. Buscamos manter a troca entre os três da melhor forma possível, de modo a não desconfigurar os sentidos e os momentos de interação entre todos. 

Lorenna Rocha: As Linhas da Minha Mão (2023) é dividido em atos. Penso que a Vivi é uma personagem cheia de contradições e cada parte do filme acompanha as mudanças dessa mulher ou ao menos o modo como ela decide se apresentar para nós. Observei que há um contraste entre sua câmera, que é na maior parte do tempo bastante estática e investe em planos bem fechados, e a personagem que parece está sempre escapando do enquadramento, pois se mostra uma mulher mutável. Gostaria de te ouvir sobre esse contraste entre a rigidez da forma do filme e a mutabilidade da personagem que você está retratando.

João Dumans: Tenho impressão que apesar de não existir exatamente uma curva dramática no filme, ele vai passando de um estado para o outro. É um modo de conduzir o olhar do espectador. E isso cria um ritmo também, afinal, entendemos que cada um desses atos tem uma tonalidade, um timbre específico. Eles constroem um conjunto de ritmos, de estados emocionais que se somam. Existe uma consciência em relação a como essa estrutura funciona ou o que está sendo construído através dela.

Da minha parte, há uma recusa inicial de me valer de certas formas de representação associadas à loucura. Não é necessariamente uma recusa, porque acho que essas formas têm a sua força e cada filme encarna suas questões de uma maneira. Só que tenho a impressão que existe uma certa tendência no modo de representação da loucura, que tem a ver com estruturas que querem absorver o caráter mais imprevisível, transitório, caótico ou irracional desse universo. Aquela velha conversa de deixar a forma se contaminar pelo conteúdo. Ou seja, a ideia de que se um filme é sobre loucura, ele deveria se deixar levar pela desorganização, acaso ou imprevisto.

Minha questão em relação à Vivi, minha percepção e fascinação por ela, no entanto, estavam muito relacionadas à clareza e a precisão com que ela articula certas ideias. Com o seu poder de síntese e de explicação de realidades e estados emocionais complexos. Pode parecer contraditório, mas era justamente sua capacidade de formular racionalmente certas coisas que me fascinava. Coisas que me parecem ser bem difíceis de formular. Seja em relação à loucura, à solidão, a questões afetivas e sexuais, etc. De alguma forma, esse desenho mais rígido do filme e o lugar discreto que a câmera se coloca em relação à Vivi… Na verdade, nem falaria em rigidez, mas em uma certa delimitação desses atos, que se relaciona com a tentativa de construir uma forma que seja o mais econômica possível. O objetivo é jogar luz sobre a evolução e os caminhos do raciocínio dessa personagem. Das expressões desse corpo, desse rosto, em sua evolução natural, na construção de um pensamento. 

Como observar atentamente um corpo desenvolvendo um pensamento muito agudo e preciso sobre a vida, um pensamento que está se construindo ali na sua frente? Me refiro especialmente ao terceiro bloco, onde temos esse plano mais longo. O começo do filme, por exemplo, me espanta um pouco, porque as pessoas dizem que não conseguem se relacionar muito com ele. Em geral, acham mais difícil ou mais distanciado, quando, na verdade, o que me seduz na Vivi já está ali: a forma muito autêntica e despreocupada que ela fala de si mesma. O que fica pra mim nisso tudo é essa pessoa que já não organiza mais os seus desejos e pensamentos em relação à expectativa do outro, mas que consegue fazer uma reflexão sobre si mesma para tentar sobreviver e atravessar estados emocionais, dificuldades e sofrimentos relacionados à loucura. Dessa imersão, ela trouxe coisas muito valiosas. O filme era um espaço para que ela compartilhasse isso. 

Lorenna Rocha: Essa sua identificação com o pragmatismo dela acaba se refletindo na forma do filme, quero dizer, talvez seja desse modo que o diálogo entre forma e conteúdo se imponha: na tentativa de criar uma estrutura fílmica que possibilite adentrar nessa racionalidade, pragmatismo e confiança que a personagem construiu para (e sobre) ela mesma…

João Dumans: Não acho que seja pragmatismo. Porque o pensamento dela se constrói com muitos desvios e digressões. É exatamente por isso que era preciso acompanhá-la, que precisávamos não cortar o plano. Estabelecia-se ali uma confiança de que aquele pensamento estaria evoluindo em direção a algum lugar, que não era preciso ter pressa. Ele só não é objetivo ou pragmático. No entanto, é preciso em sua finalidade. É uma precisão cheia de desvios, de descaminhos, de desordem, de polifonia. A ideia era diminuir um pouco o papel da câmera como elemento de intervenção e construção de sentido. Queria deixar que o pensamento da Vivi conduzisse o espectador e que a loucura se presentificasse a partir desses raciocínios e ideias em construção. Esse pensamento que vai e volta, se perde, até que encontra uma saída.

Lorenna Rocha: Você falou anteriormente sobre a dificuldade das pessoas entrarem no filme. Acho que essa desorganização do pensamento dificulta estabelecermos uma relação de primeira, sabe? Lembrei do filme da Paula Gaitán, O Canto das Amapolas (2023), que é todo narrado, e teve algum momento durante a sessão que fiquei pensando: “Mas, afinal, o que é que estou ouvindo nisso tudo?”. Senti o mesmo com a Vivi. A dificuldade de entrar no filme parece vir mais desse lugar, do que de uma falta de disponibilidade da espectadora em relação à personagem… 

João Dumans: Sim, totalmente. Acredito que ambos são filmes de suspense em algum nível. Não sei se faz sentido. Existe um gesto claro de colocar o espectador diante de uma pessoa, numa situação sem nenhum amparo, sem nenhuma cartilha ou referência que remete a lugares conhecidos, que te ajudem a entender o que o filme é. Isso é o mais interessante para mim: o fato de você estar numa situação em que não consegue achar ou se remeter a uma cena exterior, a um filme ou a um lugar que seja reconhecível, que te dê o conforto de saber o que você vai ver ou está vendo.

Lorenna Rocha: Me chamou bastante atenção durante a mesa Encontro com o filme, quando o Luiz Pretti (montador do filme) afirmou que a figura dele está sempre associada ao tempo do corte e que vocês, nesse processo, preservaram o tempo da conversa. Enquanto uma pessoa que faz terapia e acompanhamento psiquiátrico, sei que o ato de falar é algo de extrema importância nesses espaços. Fiquei imaginando o filme quase como um consultório terapêutico, sabe? Não estou falando que você está curando nada! [risos] Estou chamando atenção para uma certa dinâmica: essa mulher que fala e essa câmera que escuta. Queria te ouvir um pouco sobre essa relação entre escuta, fala, performance e câmera.

João Dumans: Há uma certa dualidade nesse lugar de atuação da Vivi. Não tenho a menor dúvida de que, enquanto ela fala da própria vida, ela está trabalhando uma consciência corporal de atriz. Faz as duas coisas ao mesmo tempo. Como ela mesma diz, ela sempre se prepara como alguém que está indo para a guerra. Não faz nada por acaso. Quando nós íamos filmar, o estado de concentração, de preparação em que Vivi se colocava, era o estado de alguém que estava se preparando para atuar, desempenhar um papel, fazer um trabalho. Ela recorria a diferentes ferramentas de atuação para cada situação em que ia performar. Tem uma construção de ambiência, de figurino. Uma concentração em relação à atitude emocional necessária para aquele momento que implica a presença e a disponibilidade do corpo de uma atriz.

Vivi é uma pessoa que leva o trabalho artístico muito a sério. O único bloco que filmamos e que foi completamente frustrante para nós, foi um em que a atriz com quem ela estava contracenando, uma menina muito jovem, não correspondia muito bem ao diálogo e ao momento. A jovem ficava o tempo inteiro querendo cortar a cena porque estava cansada, sempre queria fazer outra coisa. Aquilo frustrou a Vivi de tal maneira que chegou a ameaçar a própria existência do filme. Ela ficou indignada que alguém que estava tendo a oportunidade de participar de um filme, de estar diante de uma câmera, não estava levando isso a sério. 

Vivi é muito gentil, sempre muito generosa. Só que dessa vez ela estava com raiva e me perguntou: “O que você achou daquela cena?” E eu respondi: “Vivi, foi muito ruim, acho que não tem nada ali para nós.” E ela rebateu: “Ainda bem, porque se você tivesse gostado, nós teríamos um problema”. [risos] Ela não admitia que alguém estivesse fazendo cinema ou arte sem levar aquilo muito à sério. Por isso que falei no debate que não importa muito a questão do gênero cinematográfico, mas do método e das relações que se estabelecem, do tipo de concentração que se exige de quem está diante da câmera, que se dispõe a fazer um trabalho. No fundo, essa distinção entre o que é da ordem ficcional ou documental fica ultrapassada. Porque, na verdade, nesse filme ou em qualquer outro, tudo é uma questão de como as pessoas estão engajadas nessa relação e nesse processo.

Lorenna Rocha: E como você percebe isso, Vivi?

Viviane Ferreira: Para mim, as coisas super se confundem, porque gosto mesmo de trabalhar. Nem me chamo de atriz, me nomeio “performer entre arte e vida”. Onde meu trabalho está, há uma verdade muito pessoal, particular e subjetiva. E o contrário também é verdade. Quero que a minha arte reflita isso. Por isso foi muito legal o meu encontro com o João, porque ele se dispôs a isso. Ele quem sugeriu que eu pudesse vir para dentro do filme. Na primeira fase, existia um roteiro e eu ia interpretar a personagem Laura. Havia momentos de direção bem diferentes, o trabalho de atriz era mobilizado pelo João. Quando nós desviamos o nosso caminho, nunca mais houve isso, sabe? Ele ficou com a câmera disponível para captar meu movimento, minha intenção e minha fala. O mais quente da interpretação é a própria vida. Isso se confunde o tempo todo, mesmo quando são só memórias. Nossas memórias estão cheias de vida.

Viviane Ferreira em As Linhas da Minha Mão (2023)

Lorenna Rocha: Nesse sentido, como foi para você construir uma interpretação de si mesma para o filme? Você falou muito do figurino no debate, achei um máximo a história do vestido de oncinha! [risos] Se quiser compartilhar mais sobre isso…

Viviane Ferreira: João sempre tinha algumas sugestões de figurino, dava algumas indicações no geral. Eu levava as sugestões na malinha, mas ia, por exemplo, vestida com outra roupa que não tinha nada a ver com o que ele tinha falado. Na hora, ele me via e falava assim: “Nossa, excelente. Quanto mais inusitado, melhor.” Sempre procurava demonstrar meu humor através do que eu estava vestida. Naquele dia do vestido de oncinha, que está no filme, estava muito brava! Quando ele me viu atravessando na rua e vi a cara dele, falei: “Nó, exagerei!” [risos] Mas, ele respondeu: “Não, está ótimo!”. Sempre havia muitas opções comigo, andava com umas malas enormes, mas era importante para mim relacionar o meu humor com meu figurino. Combinamos assim. Só que essa aqui [mostra a camisa onde está escrito “Só os lokos sabem”], João me deu de presente. 

A personagem sou eu mesma. Nunca teve uma composição de trabalho, no sentido de esclarecer o texto ou o diálogo. Eu nunca sabia o que ia falar, nem sabia o que ele ia me propor, em qual contexto iria me colocar. Nosso combinado era esse: “Eu vou te colocar em algumas situações e você reage como você mesma.” Não havia exatamente um preparo de ator ou de atriz a não ser estar viva. E mesmo que estivesse louca… O Moto-contínuo… Aquela sessão em que estou com as velas e a cena final, eu não imaginava que iam caber no filme. Eram performances paralelas que pedi para o João filmar, porque trabalhei como ritual de cura. Então, talvez isso fosse compor a personagem. Fora disso, não compus mais nada. O que aconteceu é que, durante a pandemia, João estava em Ouro Preto e eu em BH, cada um na sua casa tomando uma cervejinha e trocando ideia, ele conheceu essa personagem e se interessou por ela. A personagem cinematográfica e a mulher super se confundem. Acho que ele quis mostrar os dois.

João Dumans: Gostaria de retomar algo que a Vivi falou. Acho importante pensar melhor sobre o que significa improviso, o que significa esse lugar específico da atuação onde a vida e o cinema se confundem. Digo isso em relação ao cinema brasileiro como um todo, que construiu muito de sua força a partir disso, das diferentes formas de trabalhar com essa matéria. Para cada realizador, trabalhar com um não-ator, um ator não-profissional ou um ator iniciante, improvisar, significa coisas diferentes. Às vezes essas diferentes formas são colocadas no mesmo plano e ficamos patinando um pouco, sem conseguir sair desse lugar.  No nosso caso, o improviso consistia na disponibilidade de estar junto e tentar encontrar alguma coisa que nós ainda não sabíamos o que era. Só que isso não é “fazer qualquer coisa”, entende? Acredito que, primeiro, o improviso depende de estímulos à imaginação.

Viviane Ferreira: Sem dúvida.

João Dumans: Não adiantava eu ir com a Vivi para um lugar qualquer e dizer: “Vamos lá. Fala aí sobre a sua vida ou faça qualquer coisa.” É preciso que haja uma história, uma preparação ou uma situação específica onde a imaginação possa trabalhar, um lugar onde ela deseja se expressar e possa vir com toda força. Todo mundo que já fez um filme sabe o quão frustrante é colocar duas pessoas diante da câmera, pedir para elas conversarem e não sair nenhum diálogo. É preciso haver um direcionamento emocional, uma preparação, algo construído. Tanto de longo prazo como mais circunstancial. No caso da preparação mais circunstancial, tem a ver com os estímulos que o espaço e o figurino, por exemplo, trazem. Já a construção de longo prazo é o caminho que você e aquela pessoa fizeram para chegar onde estão. 

No nosso caso, esse é um caminho longo. De conversas sucessivas, que me fizeram entender a Vivi muito melhor e ela a mim. De forma que, quando você vai improvisar, é preciso confiar que o ator ou a atriz entendeu sobre o que é o seu filme. Que sabe em qual direção você está querendo se mover e ele está preparado nesse sentido. Acreditar que ao longo de todas essas conversas, ela entendeu o filme, mesmo antes do próprio filme estar por si construído, ela entendeu qual gesto ou movimento está em jogo naquele trabalho. Não tenho dúvida disso. Quando nos colocamos para filmar, não sabíamos para onde estávamos indo, mas havia ali uma conexão, uma afinidade de intenção. Vivi compreendia o que eu estava buscando e eu percebia os lugares onde ela se expressava da forma mais interessante.

Viviane Ferreira: Um bom exemplo é aquela cena da chuva, que é linda, né? Para chegar naquele momento em que caminho daqui para lá, de lá para cá. Nós fizemos antes, no mesmo lugar, um amplo exercício onde eu parava as pessoas e perguntava: “Você acha que já cometi algum crime?” e íamos intensificando o ritmo, havia muita gente passando por ali. A maioria das pessoas falavam que não. Mas teve uma que respondeu que sim. E eu perguntei: “Qual tipo de crime, meu amigo?” e ele: “Papéis”. [risos] Nem mesmo ele me imaginou com uma arma na mão, de tão pacifista que sou. De repente, João sossegou desse anseio de movimentação e falou: “Agora só anda de lá para cá, de cá para lá”. Achei ótimo, porque estava afim de fumar um cigarro. [risos]

João Dumans: É um pouco por aí… nesse sentido, não importa se é documental, ficcional. A questão é como produzir uma relação real ou autêntica com aquele momento. É preciso se deixar afetar pelo o outro e o outro se deixar afetar por você. É tudo uma questão de presença e de conseguir com que a relação se estabeleça. Que a escuta de um esteja disponível em relação ao outro.

Lorenna Rocha: Sim…

João Dumans: Vou fazer um pequeno desvio: quando estávamos fazendo o filme ficcional, ele tinha vários núcleos, mas estávamos com muita dificuldade de encontrar uma forma de encenação. Houve um dia que era o dia de filmagem da Vivi. Filmamos umas cenas mais estáticas, umas leituras, foi ótimo, porque ela foi se familiarizando com a câmera. Teve uma preparação que não exigia nada de fala, era mais corpo. E tinha uma cena com o Douglas, que é a pessoa com quem ela conversa no quarto no terceiro ato. Ele foi convocado como ator, eles não se conheciam. Havia uma cena dos dois e eles tinham ensaiado durante muito tempo. Era uma cena na varanda que a Vivi daria algumas coisas velhas para o Douglas, que fazia o personagem de um catador. Vivi era uma professora que morava numa casa com várias coisas velhas e entregava para ele. Já era umas cinco horas da tarde, eu achando que a cena daria muito errado, porque não tinha preparado a cena, não estava conseguindo visualizá-la na minha cabeça…

Às vezes, quando a gente está dirigindo, pensamos assim: “Nossa, se eu fizer um negócio desse vou passar vergonha na frente da equipe. Talvez seja melhor me preservar, dizer que o dia já está acabando, que não vai dar tempo de filmar e esquecer essa cena.” Até que em algum momento eu deixei isso pra lá e disse: “Vamos filmar!” Tem essa tensão no set de ficção, especialmente quando se está trabalhando de forma mais improvisada. Há o medo de errar ou de fazer algo que constranja quem está trabalhando. No fundo, essa é uma preocupação idiota. Então, eu só falei: “Vivi, traz as coisas pra dar pra ele e, no meio da cena, ele vai te pedir para ler uma carta de tarot.” Falei para o Léo começar a gravar, sem saber o que ia acontecer. E a cena ficou incrível. Não porque dirigi eles. Não falei como ele ou ela deviam se comportar. Eles já tinham vivido coisas juntos, já sabiam sobre o que era a cena. Os dois, de forma muito inteligente, conseguiram criar algo e conversar naturalmente. Algo aconteceu e estava completamente fora do meu controle. Os dois interagiram de uma forma muito forte. O desejo de filmar com a Vivi tinha a ver com tentar entender o que tinha acontecido naquele momento. Por quê aquilo havia dado certo? O que tinha ali que fez com que os dois estivessem à vontade para criar, imaginar, estar disponíveis emocionalmente, diferente de outros momentos que estávamos filmando?

Quando vi aquela cena, percebi que havia um caminho, algo que deveria ser construído em torno disso. Essa cena era na varanda. Não é à toa que seja justamente ali que começa As Linhas da Minha Mão. Voltei nesse mesmo lugar, coloquei os dois atores na mesma posição. Eles fizeram uma cena completamente diferente, mas o ambiente é o mesmo do primeiro teste. Havia em mim esse desejo de investigar de onde vem essa espontaneidade, essa liberdade, sabe? Como fazer com que alguém se sinta livre enquanto está atuando? Que uma pessoa possa mobilizar livremente seus sentimentos, sua inteligência, sua própria forma de falar?

Viviane Ferreira: Isso é muito bonito. Porque é um fio muito delicado, muito tênue. Só não posso dizer que estou “just living”, porque aquilo não é o cotidiano. Sei que estou sendo filmada e isso faz toda diferença. Agora, por exemplo, estou falando o que vem na minha cabeça, mas sei que estou sendo gravada. Há um mínimo de cuidado prévio e isso traz um estado diferenciado. Nós tínhamos uma confiança muito grande e nos tornamos grandes amigos. Eu sabia que os processos estavam caminhando para o indeterminado, mas eu tinha absoluta confiança no João. Isso me deixou muito segura.

Lorenna Rocha: Vários filmes da Mostra Aurora e Olhos Livres tiveram um teor biográfico ou eram retratistas em algum sentido. Sempre fico intrigada em relação a como nós criamos (ou não) identificação e empatia com a pessoa que está na tela. O que é que nos faz ficar na sala de cinema? Por quê ficamos em alguns filmes e desistimos de outros? Acho que essas coisas tem a ver com a questão do método. E, especificamente no teu filme, fico pensando na tua presença, para além da incontornável Vivi. A minha sensação é que eu estava te vendo sem te ver. Sua câmera não é impositiva, mas ela também não titubeia. Essa percepção acaba passando uma certa firmeza em relação à troca de vocês, que talvez é o que de fato nos faz permanecer com ambos. Como você vê isso, João?

João Dumans: Acho que essa é uma pergunta super importante, porque pode nos ajudar a pensar em alguns limites estéticos e éticos do filme. Esse titubear, obviamente, esteve presente. Não só como insegurança natural de alguém que está fazendo um filme, e um filme processual, onde também não se sabe para qual direção se está indo, mas das tensões existentes na relação entre mim e a Vivi. O cinema é muito importante, mas a vida é mais importante que o cinema. E, às vezes, nós fazemos escolhas baseadas nisso e acho que elas são necessárias. De certa maneira, não quis que essas tensões tivessem um protagonismo no filme. Que o tipo de relação que estabelecemos, qualquer que seja, fosse mais importante que o resto ou que o filme se desenvolvesse em torno disso. Parece que há um grande enigma, estou falando desse jeito, mas não há enigma nenhum. Não há nada que aconteceu que não esteja presente no filme. O que acontece é que eu e Vivi nos conhecíamos relativamente à pouco tempo. Fazia talvez um ano e meio que a gente se conhecia, a partir do cinema, e nós fomos construindo uma relação que ainda estávamos descobrindo por onde ela ia acontecer. De alguma maneira, o filme diz muito do lugar e da forma como essa relação foi sendo construída.

Acho que é uma crítica válida exigir contradições e conflitos num filme. De maneira geral, sou uma pessoa que tende a procurar isso no que assisto e a gostar de trabalhos que trazem algo da ordem da irresolução, que as contradições nos coloquem para pensar. No entanto, acredito que as contradições do As Linhas da Minha Mão passam, sobretudo, em torno dessas coisas que estamos dizendo relativas à loucura, aos processos racionais e irracionais, ao sofrimento e à alegria que marca a experiência da loucura. É interessante como sua pergunta [no debate, sobre isso] virou uma chave na minha cabeça, porque falei para mim mesmo: “Ah, é mesmo, é óbvio!” Estou muito presente e era uma sensação muito estranha durante a filmagem… estar filmando e ter meu nome falado diante da câmera… era muito estranho. A câmera não titubeia, mas era como se um pequeno choque atravessasse o meu corpo naquele momento. Como se me perdesse por um instante e não entendesse exatamente qual lugar eu estava ocupando, não só naquele espaço, mas dentro daquela história.

Quando a Vivi diz que vai fazer uma performance para declarar o amor dela por mim, eu não fazia a menor ideia de que ela faria aquilo. Isso mexeu muito comigo, fui pego completamente de surpresa. É fato que não há um elemento de ruptura ou de tensionamento, mas há um estranhamento que percorre o filme e acho que ele é justo em relação ao tipo de sentimento que tive enquanto estava filmando. A experiência desse estranhamento pelo espectador talvez acabe criando um paralelo com o estranhamento que senti. 

Não houve entre mim e Vivi nenhum aprofundamento afetivo, nada disso. Por outro lado, houve uma relação emocional muito grande que nos permitiu que esse filme fosse feito. Com frequência, estava vivendo esse estranhamento de estar atrás da câmera e ao mesmo tempo estar sendo mencionado. A decisão de deixar esse momentos e a declaração da Vivi era um pouco também de sugerir a complexidade dos sentimentos que estavam envolvidos ao longo desse processo. Isso não é um elemento primordial, porque talvez tomaria um protagonismo maior do que precisava, mas o filme deixa pistas e indícios para que as pessoas também possam fabular, pensar um pouco em torno disso e entender a complexidade dessa relação.

Lorenna Rocha: Esse lugar da proximidade e da confiança é algo que vocês parecem compartilhar enquanto sentimento em relação ao processo de criação do filme e isso é bem bonito…

Viviane Ferreira: Lorenna, vou falar uma coisa que disse ao médico residente que tem me acompanhado. [risos] Ele me falou que era muito fácil me acompanhar, porque o doutor Breno [preceptor do estudante e médico de Vivi] me conhecia muito. Breno me acompanhou durante doze anos. E eu respondi: “Olha, doutor Pedro, doutor Breno me conheceu antes do filme. Antes de eu conhecer o João. E isso muda tudo em relação à minha saúde mental.” Quando me vi sendo objeto de interesse de um homem que considero tão sensível e inteligente, isso muda minha relação comigo mesma, me impacta positivamente, a minha autoestima se transforma. Nunca chegamos a ter uma relação afetivo-sexual, mas é um amor. Um amor-amigo, cheio de desejo e de realizações.

Lorenna Rocha: João, queria te ouvir sobre os momentos de tela preta durante o filme. Parece haver algo bem lacunar nesse investimento formal, assim como são nesses momentos que percebemos uma presença bem imponente da camada sonora. Durante minha conversa com a Paula Gaitán, sobre o filme dela na Mostra Olhos Livres, ela comentou algo peculiar sobre o uso do som nesse longa: “Eu subia o som do filme porque não conseguia lidar com o que estava vendo e me relacionando. Sempre falava para minha mãe ‘entendi, entendi’, mas não entendo até hoje sobre algumas coisas que ela estava falando”. Fiz uma conexão agora entre esse não entendimento dela com o que você trouxe enquanto estranhamento em relação ao seu filme. Talvez a tela preta fosse o seu jeito de comunicar essa não compreensão diante do processo, da Vivi, do seu lugar nessa história… 

João Dumans: Acho que há duas coisas aí. A tela preta está ali ajudando a organizar esses blocos, mas também reflete muito do meu sentimento em relação às situações que nós armávamos. Era sempre uma espécie de voltar ao zero, a um certo lugar de origem. Claro que eu já estava marcado por aquele acontecimento, aquela fala, aquele lugar. Mas é quase como se, de alguma forma, eu voltasse a um não entendimento, para um lugar de desconhecimento, de falta, que para mim era propositivo. Ainda não entendo completamente, não sei o que isso quer dizer ou para onde isso pode levar. Essa tela preta, contraditoriamente, serve como um lembrete de que há lacunas ali. Que é impossível que aquela conversa ou situação específica tenha uma síntese. 

Chegar nesse lugar me ajudou a determinar um recorte temporal para ele. Em algum momento, eu disse: “Isso tem que acabar assim e isso vai ser em um período curto de tempo”. De alguma maneira, tinha nas mãos aqueles blocos que não se comunicavam diretamente. Então, era preciso marcar essa diferença de algo que remetesse a essa falta de completude. A analogia mais próxima que consigo fazer é com um poema. Há lacunas internas, brechas, vazios, faltas e silêncios. Mas, no fim, tudo isso se amarra por uma decisão absolutamente racional de terminar colocando uma última palavra. Da mesma forma que em um poema, a energia inicial é uma energia passional, intuitiva na composição. No fim, acho que tem algo da razão que vem organizar esses fluxos, insights e sentimentos.

Vejo o filme muito dentro desse movimento duplo: de um lado, deixar que a realização dele corresse muito solto, mas, por outro, que no fim haja um gesto mais racional, construtivo, de organização de tudo aquilo que havia de forma bastante improvisada. A música desempenha um pouco esse papel, porque ela tem uma afirmatividade. E ela também diz que o que estamos vendo ali é uma construção. Acho que isso tem relação com Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), com o movimento que eu e o Affonso fazemos a partir de vidas  experiências muito concretas e reais. Para nós, o cinema e a criação exigem gestos de abstração que vão projetar essas experiências mais espontâneas num outro nível formal, na dimensão da linguagem. Tanto o off, quanto a literatura, a música, o teatro, pegam isso que é da ordem do espontâneo, da vida, do cotidiano e eleva a um nível de preocupação formal e artística, estética, para que isso não caia numa ideia de trivialidade ou cotidianidade. Ou seja, para marcar uma diferença expressiva no gesto que é o próprio filme. Há algo que parte da vida, da espontaneidade, mas a construção também passa por esse lugar.

Lorenna Rocha: Para além do filme de vocês, houve alguns outros na Mostra Tiradentes, como O Canto das Amapolas e A Alegria é a Prova dos Nove (Helena Ignez, 2023), que foram realizados por mulheres mais maduras ou que trazem o tema do envelhecimento. Olhando em paralelo, percebo que vocês apostam numa vivacidade, numa juventude que se expressa pela personagem da Vivi. E não é num só lugar saudosista, de “porra-louquice”. Essa juventude vem da imaginação, da própria loucura e do processo de autoconhecimento que Vivi compartilha conosco. Vocês poderiam comentar sobre isso?

João Dumans: Isso é algo muito forte e acredito que tem a ver com a crença na riqueza da experiência. Em não permitir que a vida se assente em qualquer lugar ou num espaço confortável. Essa convicção de não deixar que a vida se acomode em qualquer tempo, idade, lugar ou situação. É uma crença na vida e no que ela proporciona enquanto experiência. Seja nas situações extraordinárias e absurdas, seja na experiência cotidiana de atravessar o sofrimento para estar bem. Acho isso muito forte no caso da Vivi. É um trabalho constante de não se deixar abater, nem se render às forças que querem te destruir.

Viviane Ferreira: Exato! Fico pensando na depressão como uma senhora fria e triste que vai ao nosso portão todas as manhãs, como diz o verso de uma banda da minha época. Na música, a pessoa sorri e manda ela ir embora. Tenho que fazer esse exercício diário, como João disse. E cada vez que consigo, a sensação que vem é a de juventude. De que tenho mais vida. Porque a depressão é o polo oposto, é a pulsão de morte. A euforia é uma pulsão de vida, mas não posso ir para lá, nem para cá, tenho que ficar navegando. E, nesse sentido, é importante ter pessoas, afetos a quem eu possa confiar. E dá certo. Normalmente, são pessoas mais jovens que eu. Gosto da força da juventude. Fui mãe muito cedo, aos 16 anos, e isso interfere… Parei tudo e fui criar minha filha. Trabalhei muito. E deu certo. Cada batalha que ganho da doença me deixa tão feliz… Isso me rejuvenesce um tanto.

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