Montagem como ritmo, câmera como pincel: uma conversa com Paula Gaitán | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

por Lorenna Rocha e Renan Eduardo

O impulso inicial para fazer uma conversa com Paula Gaitán era investigar seus entendimentos e procedimentos em relação à montagem. Além disso, havia o desejo de buscar informações que elucidassem ou que pudessem oferecer às leitoras uma introdução possível à prática da montagem. Durante a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Lorenna Rocha e Renan Eduardo, fundadora e entrevistador da câmarescura, se sentaram ao lado da cineasta colombiana-brasileira para se aproximarem dos processos de criação, das inflexões e dos percursos referenciais que incidem na atuação dela como diretora e montadora.

Lorenna Rocha:  O que é montagem para você?  

Paula Gaitán: Ritmo. Por outro lado, é como se fosse uma partitura. Para mim, a montagem é a coluna vertebral do filme, não o roteiro. Serguei Eisenstein (1898-1948) e Dziga Vertov (1896-1954) já falavam disso, não sou eu que estou dizendo. A montagem é a base da primeira leitura da história do cinema. Quando Vertov estava com a película fazendo decupagem de imagens quase subliminares, ele estava fazendo montagem rítmica, montagem paralela. Glauber Rocha (1939-1981) falava de montagem atômica, nuclear. Temos também os filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963). Há o plano tatame e ele também trabalha uma montagem bem específica. É linguagem. Acredito que seja muito importante para qualquer diretor ter a experiência física de trabalho com a montagem. O diretor pode estar na montagem sem pilotar o programa ou aplicativo de edição, mas é importante conhecer. Isso facilita o processo enormemente. A produção desse imaginário te dá ferramentas. É um conjunto de gramática, um vocabulário com vários fatores.

Lorenna Rocha: Durante o ‘Encontro com os filmes’ a partir de O Canto das Amapolas (2023), você comentou que montar os próprios filmes significava criar mais autonomia de trabalho e possibilidade de produzir em maior velocidade. Gostaria de te ouvir mais sobre essa relação entre montagem e direção cinematográfica.

Paula Gaitán: Trabalho muito com associações livres e conexões de cores. Geralmente, quando filmo e vejo o material, já o memorizo. Isso se relaciona com o fato de que, durante uma época da minha vida, trabalhei em televisão. Meu primeiro longa, Uaka (1989), foi montado em uma moviola. Há algo fascinante na materialidade da película e em tudo que está relacionado à ela. Demorei quase dois anos editando o som de Uaka, acredito que esse seja o meu melhor trabalho. Ele virou meio cult porque era em película, depois o negativo foi perdido. Recentemente pude restaurá-lo e um fragmento dele está em Luz nos Trópicos (2020). Os processos de montagem eram muito longos, passávamos horas dentro de uma sala de montagem com uma moviola, com todos os planos num varal, olhando para os negativos. Passei para o digital no meu segundo filme, Lygia Pape (1991).

Na época do governo de Fernando Collor (1990-1992), fui para a Colômbia e comecei a trabalhar na televisão cultural de Bogotá, uma TV estatal. De lá saiu toda uma geração de cineastas colombianos, porque até então não havia tradição de cinema no país. Estou recuperando vários documentários desse período agora. Essa experiência me ensinou a montar. Nós tínhamos apenas trinta e quatro horas para editar. Se alguém errasse no terceiro plano ou no meio, era preciso refazer tudo do zero. Precisávamos conceituar e nomear os planos antes da montagem porque, se houvesse qualquer erro, nós deveríamos voltar até o primeiro e o tempo era curto demais. Como era uma estatal, era preciso respeitá-lo. Isso me deu uma prática de memorização do material. 

Quando faço filmes com várias horas de material, penso na montagem ainda durante a filmagem. Inclusive, invento novos planos a partir disso. É uma coisa louca, é física, é a memória. Consigo te dizer qual o dia que filmei certo material, identificar uma sequência específica ou um plano dentro de uma sequência. Tenho uma memória visual aguda e, em geral, não erro. Quando entro na montagem, não escrevo nada. É um processo muito veloz de associação, porque conheço o que tenho em mãos, sei onde estão as coisas que preciso.

Lorenna Rocha: Olho para filmes como Sutis Interferências (2016), Memória da Memória (2013) ou O Canto das Amapolas, para sua filmografia de maneira geral, e me surpreendo como cada trabalho é radicalmente diferente. Você consegue traçar uma retrospectiva dos filmes que dirigiu e pensar na diferença da montagem entre eles?

Paula Gaitán: Consigo pensar sobre isso a partir do Diário de Sintra (2008). Tenho uma série de filmes que procuram um som muito estilizado. Há muita fusão. Não gosto da palavra “imersivo”, mas é algo que te dá um certo conforto na passagem de um plano a outro. Mas, mudei. Ela se dá agora só por corte. Gosto de um som mais bruto, não faço mais fusões, não boto camadas fakes, que dá essa sensação meio atmosférica, não trabalho mais assim. Trabalho com cortes secos e mais brutais. Comecei a me interessar por uma certa fricção entre os materiais, que sejam intervenções por contraste e não por diluição interna. É preciso que as passagens sejam mais acentuadas. Sutis Interferências e Noite (2014) são filmes que trabalham com essa lógica de ruptura. No primeiro, há também essa relação do corpo, da câmera e do som. 

Como realizadora, montadora e camarógrafa, comecei a me interessar por planos-sequência que possuem uma relação de atração e repulsão entre câmera e som. Essa dinâmica cria um embate físico dentro do próprio plano, como se houvesse uma luta acontecendo entre os dois elementos. Embora possa haver momentos de aconchego e carícias, em geral, a câmera está em ação e em discussão com o som, criando uma montagem interna dos planos. Essa abordagem mais direta do cinema, sem depender de uma pós-produção elaborada, é algo que me atrai. Não busco ser apenas diretora de fotografia, mas uma câmera que se movimenta com energia e envolvimento em cada plano, criando um diálogo vivo entre a imagem e o som.

Em O Canto das Amapolas, por exemplo, não tem nenhuma manipulação do material de Super-8. Uso a extensão dos rolos, que variam de dois minutos e meio à três. No momento em que estou filmando, já consigo identificar quais são os diferentes ritmos. Como no plano-sequência onde aparecem as fotos da minha mãe criança e depois ela fala “estávamos correndo”, mas isso foi coincidência. Não calculei o tempo da fala dela. São coisas que acontecem, mistérios. Chamo de mistérios da forma ou mistérios das intuições.

Nesses materiais feitos em Super-8, aproveito tudo, até plano fora de foco. Não tem uma hierarquia. Antes eram filmes mais formalistas no mau sentido [risos],  porque tudo é forma e conteúdo, né? Muitos filmes são precários, mas você precisa apenas ter uma câmera e o seu corpo para criar uma obra de arte. Vejo a utilização da câmera como um pincel, como se estivesse jogando pintura. Venho das artes plásticas, então talvez seja mais fácil para mim visualizar essa série de gestos. Mas você tem que acreditar nisso. Você tem que saber que está em risco e assumi-lo. Tem que ter coragem. Sem coragem não se faz obra nenhuma, não se constrói nada. E honestidade. Não é para fazer um filme querendo atingir mercados ou sucesso no mundo do cinema e da arte. Isso se tornou bastante superficial, há muitos filmes que se assemelham e é algo bem alienante. Não me interesso por esse tipo de coisa.

Um diretor que acho genial, que amo muito, é o Gabriel Martins. Ele sabe de tudo, até de efeitos especiais. E o Guto Parente também. Sempre falo que gostaria de ser como eles, porque são criadores! São duas pessoas que sabem de todos os processos. Gostei muito de ter visto Marte Um (Gabriel Martins, 2022), porque acredito que seja uma resposta a um tipo de cinema comercial e popular que está sendo feito. Há momentos da fotografia e da montagem que são lindíssimos, justamente porque se tem conhecimento do processo inteiro. É a capacidade de acompanhar tudo como se fosse um operário, isso é muito importante.

Lorenna Rocha: O crítico e jornalista Gabriel Araújo fez uma entrevista com Cristina Amaral para a Mostra Lona (2022), onde ela afirmou que gostaria de fazer montagem da mesma forma que João Gilberto (1931-2019) fazia música. Essa relação entre montagem e música está bem presente na sua filmografia. Poderia comentar sobre isso?

Paula Gaitán: Não saberia dizer em que sentido exatamente a Cristina está falando, mas acho que ela tem uma escritura mais fina que a minha. Ela sabe aprofundar cada corte, dar o sentido. É mais straubiana. Cada corte tem um sentido muito profundo, ela é mais precisa. A questão da música, para mim, se organiza no momento da montagem. Já montei um episódio com a Cristina. Sinto que o processo dela é mais racional e poético. O meu é mais intuitivo, impreciso e associativo. Às vezes, um corte se dá pela cor, mas a música é fundamental. Isso se dá em paralelo à montagem sonora. Tem montadores que primeiro montam a imagem e depois passam para a edição de som. Não poderia fazer um filme longo como Luz nos Trópicos se não editasse o design sonoro simultaneamente. Aconteceu o mesmo em O Canto das Amapolas. Fui colocando sons, fazendo layers sonoros, experimentando muitas coisas: editei som e imagem de forma simultânea.

Lorenna Rocha: Estava aqui buscando o trecho da entrevista em que Cristina compartilhou sobre como a música altera o corte dela: “Para a montagem, um montador tem que ter uma relação com a música e com o ritmo. O montador tem que saber dançar… Sempre me perguntam quem é meu mentor na montagem, eu digo que é João Gilberto. Ele faz uma coisa com a música que é impressionante. Ele desfaz o tempo inteiro a palavra da melodia. Ele não canta a frase escrita junto com a frase musical, ele sempre desfaz um pouco, ele avança ou ele atrasa, e ele tinha uma relação que é maluca. Você pode decorar todo o disco dele que na hora que ele for cantar, você vai cantar errado. Ele conseguiu achar uma coisa muito linda e pessoal que mexe com a gente. Eu enlouqueço ouvindo João Gilberto exatamente por essa liberdade de transição de estar entre a palavra e a música, que é uma coisa que eu tento buscar de certa forma no cinema e que eu nunca vou conseguir e nem vou chegar perto”.

Paula Gaitán: Nossa, que lindo! Essa frase é avassaladora, contundente.

Lorenna Rocha: O material bruto do teu cinema vem também pelo som, pelo descompasso sonoro. Ela menciona essa coisa da melodia e da palavra, fiquei pensando como é que isso poderia, de alguma forma, se encontrar com teu modo de pensar montagem, de fazer cinema…

Paula Gaitán: Talvez, mas acho que ela trabalha com esse refinamento do João Gilberto, né? A Cristina é de uma elegância… Ela domina o corte. Há aquela famosa discussão entre Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, em Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, Cineastas – Onde Jaz o Teu Sorriso? (Pedro Costa, 1999), sobre um frame a mais para cá ou para lá. Posso até ter essa sensação de um frame para cá e um frame para lá, mas sou mais imprecisa. Às vezes, essa imprecisão é mais action painting. É um gesto de inconsciência que está sendo feito.

Lorenna Rocha: Intuição?

Paula Gaitán: Isso! Vejo mais por esse caminho, pela associação de ritmos, cores, por essa parte “irracional”. Depois vem o sentido. Vou encontrando sentido nessas associações livres.

Renan Eduardo: É Rocha e Rio, Negro Léo (2020), O Canto das Amapolas e A Mulher do Fim do Mundo (2017) são filmes de escuta muito forte. Por exemplo, no É Rocha e Rio…, os planos se estendem junto a fala do Negro Léo, há planos bem extensos. Em O Canto das Amapolas, a montagem acompanha o embate entre você e sua mãe. Em A Mulher do Fim do Mundo, você acompanha o ritmo da Elza Soares, a cadência mais branda de um momento da vida dela.

Paula Gaitán: Vou contar como fiz a montagem desses três filmes. No caso da Elza, foi surpreendente, porque não sabia que ia ter que montar essa música. Foi um susto. Algum dia mostro a quantidade de estudos que fiz para essa montagem. Talvez, na minha carreira, na minha vida, eu nunca tenha feito tantos estudos de ritmo. Primeiro, fiz com fotos, com plano de cor. Antes, peguei frames da internet e frames aleatórios para entender a batida do ritmo da música. Fiz muitos ensaios. Seria lindo mostrar isso um dia.

Elza estava com problemas de locomoção, sabe? Ela realmente não conseguia caminhar, era um problema na coluna. Eu precisava encontrar mobilidade na estrutura da montagem, mesmo ela estando imóvel. Tomei algumas decisões em relação à dinâmica do clipe a partir dessa série de estudos. Nunca havia feito um estudo de ritmo como esse, mas o que daria movimento à cena seriam as atrizes, elas seriam projeções do corpo da Elza. Não queria usar um plano geral dela, porque percebi como ele revelaria essa questão física, então decidi trabalhar com a lente. Criei contraste nos corpos que se movimentavam com o primeiro plano dela, com os olhos, um gesto do rosto. Foi algo bem original, porque não usei nada da estrutura do show. Estávamos com uma lente macro e a Elza foi super generosa. Tudo se passa do ombro para cima para não revelar muito dessa imobilidade, como se isso partisse dos olhos dela. Os olhos, as mãos e a boca dariam todo o movimento. 

Disso, viria a montagem das atrizes Grace Passô, Mafalda Pequenino e Mariana Nunes. Fiz planos de uma dramaturgia mais fechada no rosto de Mariana, um trabalho de atriz. Mafalda traria movimento porque é bailarina e Grace tem um trabalho com o corpo, que também já vinha do repertório dela. Ela vinha caminhando, um outro tipo de mobilidade, que não era mais a dança. Para criar uma estrutura rítmica dentro do clipe, Mafalda teria velocidade, Mariana teria os primeiros planos do rosto dela articulando toda a montagem e Grace seria esse movimento na luz. Um movimento mais telúrico, saindo do corpo dela. Não inventei nada, isso já existia. Só aproveitei o que cada uma dessas mulheres extraordinárias tinham. Todas elas eram apaixonadas pela Elza, então foi como um tributo. Foi um projeto muito forte, nunca trabalhei com tanta harmonia, tudo funcionava. Acho que ficou muito lindo. O processo de decupagem de cor e de movimento foram muito minuciosos. Aprendi demais. Fiz fotos de coisas que tirava da pesquisa do clipe da Elza, de planos de cor, para pontuar o ritmo, isso me guiou. Um dia vou mostrar isso para vocês, são lindos. Fiz a montagem, deu muito certo. [risos]

O mais assustador foi que nunca tinha visto o show do disco A Mulher do Fim do Mundo (2015). Elza foi cantar no Circo Voador (Rio de Janeiro) quando eu já estava quase finalizando o clipe. Fui convidada para ver o show um dia antes de apresentá-lo para equipe. Já conhecia a Elza, ela é um amor, mas nunca tinha visto um show dela com público. Fui sozinha para o Circo, me tremendo. Subi para o segundo andar, o espaço estava lotado. Todo mundo estava dançando, mas eu fiquei petrificada. O show começou com a música que dá título ao álbum e a casa de festas quase caiu. Olhei para isso, fiquei com medo, com dor de barriga, congelada, aterrorizada! [risos de todos] Umas duas senhoras, que estavam dançando perto de mim, viraram e falaram: “Minha filha, dança! Se mexe!” [risos de todos] E eu completamente parada. Fiquei paralisada, parecia um zumbi! Parecia que tinha tomado algo pesado. 

As pessoas gritavam e dançavam e aquela música era impressionante. Pensei: “Tô ferrada, se esse clipe não funcionar, vou passar a maior vergonha! Agora que saquei que é a Elza, saquei o tamanho da responsabilidade! E eu aqui fazendo cinema experimental: luzinha pra cá, luzinha pra lá, botando umas bolinhas e toda essa teoria do movimento.” [risos de todos] Peguei um táxi, voltei para casa correndo, com muito medo. Fiquei até às três da manhã revisando o clipe. Revisava, olhava, os gatos perto de mim miando, todos enlouquecidos. Quando Guilherme Kastrup [diretor musical de Elza Soares] chegou lá em casa e viu, ele ficou meio “o que é que é isso?” E eu: “É o clipe como imaginei. Me desculpa!” E ele respondeu: “É lindo! Estou emocionado! Que coisa maravilhosa! Vou levar para Elza.” Ela se apaixonou, só pediu para trocar um plano que achava que não estava tão bem.

Ah, uma coisa: fiquei em dúvida se colocava figura masculina no clipe. Havia feito alguns planos com o Renê [Ferrer] de máscara, um amigo cubano, um puta músico, que é um colosso, lindo. Tem os planos dele, né? Aquela parte da máscara e do corpo dele, não como se fosse um homem… Porque, para mim, a mulher do fim do mundo é a mulher do devir. Um devir político, histórico. É uma mulher devir, a potência da mulher. Então, a figura masculina aparece mais como mito, como a representação do homem. 

Lorenna Rocha: Uma aparição? 

Paula Gaitán: Quase como se fosse uma entidade. Acho que ficou no ponto certo. Elza adorou, foi um sucesso. Nós fomos juntas para São Paulo, lançamos o clipe. Foi uma relação linda, ela ficou muito grata. Depois fui para Nova York filmar a Elza, porque eles queriam que eu fizesse um documentário. Só que eu falei que não, já havia dado o que tinha que dar para esse videoclipe. Não queria fazer um documentário seguindo a Elza em shows. Esse foi um tipo de montagem que se deu procurando e aprendendo sobre o ritmo, porque é um videoclipe. O caso do É Rocha e Rio, Negro Leo é diferente.

Ele é um filme de tripé. O que acontece nele, que gosto muito, é algo que encontrei na hora da montagem. Queria sintetizar e, ao mesmo tempo, deixar o plano extenso, para ter todo o processo reflexivo do Léo, para se aproximar do processo de construção filosófica, do pensamento dele. Léo me falou que achava que estava muito longo. Mas, o que me interessava era expandir, para ver como é que ele se contradiz. A montagem é muito precisa, muito minimalista. A câmera vai girando. Tem alguns momentos de câmera na mão, mas, em geral, a câmera está no tripé e vai rodando no apartamento. A ideia era que o filme fosse feito numa tarde e que a câmera estivesse rodando pela casa. O ordenamento do material é cronológico.

Renan Eduardo: Rodando quase junto com o sol, né?

Paula Gaitán: Com o sol e a cronologia. A montagem foi por onde começamos, como prosseguimos, até que fomos tendo uma intimidade enquanto equipe, ele começou a tocar em questões muito mais fortes até passarmos a trabalhar com planos frontais: Léo olhando para a câmera como se estivesse falando com o público. Tem aquela sequência da música, né? Que ele começa a ouvir música e há um corte interno. No começo, no dia da filmagem, o Léo ainda não estava pronto, então percebi que era interessante filmar o movimento de fora do apartamento. Achei isso lindo, mas só descobri no momento da filmagem. Como sou parente do Léo [Negro Léo é companheiro de Ava Rocha, filha de Paula Gaitán], passava muito por lá, mas muitas vezes não subia, só falava pela sacada: “Oi, Léo! E aí? Como é que tá a política?” Virou uma conversa meio Street View. Ele adora isso, já tinha visto Léo falando com pessoas na varanda. Tinha gente que nem subia, ele ficava falando da rua. Algo que acontece muito no interior, né? Você fica falando na porta de casa, na janela.

Esse filme parece simples, mas a montagem é que define esse tempo interno, tem sua peculiaridade. Não é um filme jornalístico. É sobre pensamento. O filme propõe um tempo dilatado, onde tudo esteja à luz, coisa que qualquer documentarista vai detestar. O documentário sintetiza as coisas, é o procedimento dele. Tudo bem. Mas, aqui não. Depois termina com aquela linda performance do Léo, que nunca mais vai se repetir, porque ele fez de improviso num show. Cada filme é diferente, então ele toma o tempo necessário para existir e passa voando. 

Dei uma torção no material. Ele é mais complexo do que parece. Quase não falo nesse documentário, porque achei que não fazia sentido minha voz aparecer. Vejo esse filme também como um filme-manifesto. Várias coisas aconteceram quando eu estava repassando o material. Me pareceu muito mais rico. Era maravilhoso, não dá para fazer isso com todo mundo. Tem que ter a força do Léo, daquelas ideias. Ele é dialético, né? Ele fala uma coisa, depois se contradiz, depois vai… Essa coisa dialética me pareceu muito interessante.

O Canto das Amapolas é como se tudo já estivesse predestinado. Como se o som que existia antes, na hora de colar… Parecia que tudo dava certo. Foi um filme meio feito num estado de inconsciência, porque foi o filme mais livre, mais solto, que já fiz na minha vida. Não lembrava que minha mãe, por exemplo, falava que meu avô só se comunicava em alemão. Não fiquei com o texto do áudio, ouvindo e filmando. Fiz primeiro a filmagem. Na hora da montagem, eu achava tudo uma loucura. Ela falava que estava correndo e as imagens estavam no mesmo fluxo. Tinha algo divino me acompanhado. 

Tenho premonições e, às vezes, a vontade me leva a lugares insuspeitos, a momentos de iluminação. Não falo isso como se tudo se desse ao acaso, ou como se tivesse um espírito iluminado, que tudo estivesse para acontecer. Esse filme saiu muito rápido, brotou um pouco como Memória da Memória. Foram duas experiências que eu estava inteira, despojada de preconceitos, muito aberta. Por isso saiu tanto sentimento. É como se algo atravessasse, algo que estava escondido, como layers escondidos debaixo do filme, que perpassa todo o filme. Da mesma forma que acontece entre o sonho e o despertar. Como se chama esse estado?

Renan Eduardo: Sonambulismo?

Paula Gaitán: Isso, sonambulismo! Essa palavra é linda. Como se fosse um estado de sonambulismo, sem saber para onde eu iria. Algo meio labiríntico, né? Tem uma coisa da repetição, porque tem acontecido muito. Tenho achado que estou ficando repetitiva até falando, que repito a mesma palavra. Isso vai se tornando hipnótico, né? O filme tem essa beleza de conduzir um discurso em um estado de consciência que você não tem. Não vou usar a palavra “transe”, porque vão dizer que estou falando de fenômenos associados ao Glauber. São fenômenos mais delicados, do feminino. Fico pensando que não é tão fácil, porque todos nós temos uma mãe e falar da mãe é falar do interior de nós. É também falar do ventre, da voz da mãe, desde que estávamos no líquido amniótico, na placenta. Falar da subjetividade, da intuição, do desejo, de todas essas camadas da mulher e da memória. É mais ou menos isso que sinto, são processos muito diferentes.

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